Artigos
Pessoa ortônimo e Ricardo Reis Tanto lá quanto cá, ainda assim, nem
cá nem lá...
Marcelo Antônio Ribas Hauck
Mireile Pacheco França Costa
Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG)
Resumo
Este texto tem o objetivo de discorrer acerca da questão do sujeito literário a partir da análise de alguns poemas de Fernando Pessoa ortônimo e de algumas odes de Ricardo Reis, apontando algumas confluências na obra de ambos.
Palavras-chave: Fernando Pessoa; Linguagem;
Poesia; Ricardo Reis; Sujeito literário.
Abstract
This text aims to discuss Ricardo Reis’s odes and Fernando Pessoa ortonym’s poetry according to the matter of literary being. It looks for confluences and divergences in their work.
Key words: Fernando Pessoa; Language; Poetry;
Ricardo Reis; Literary being.
Nunca escrevi senão para dizer que jamais fiz nada, que nada poderia fazer e que, ao fazer alguma coisa, na realidade eu não fazia nada. (Maurice Blanchot)
Eça de Queirós, José Saramago, Almeida Garrett contribuíram para consolidação da literatura portuguesa e entre eles há Fernando Pessoa que passou a ser conhecido e reconhecido.
Fernando Pessoa é o poeta do verbo ‘ser’ e de seus desdobramentos, ele
era tudo ao mesmo tempo, sua singularidade paradoxal é ter tantos e nenhum
completamente, explodindo num desespero metafísico, que nos deixa com
a respiração suspensa. Portanto, está por se saber quem é Fernando Pessoa.
Ao escrever sobre Fernando Pessoa não há como não indagar sobre a identidade.
Identidade essa multifacetada em eus, identidade que não é possível apreender,
pois subside na falta. É justamente tal falta que move Pessoa em sua obra
literária, essa falta é estruturante na medida em que funciona como uma
mola mestra para a composição de toda a sua poesia.
A obra de Fernando Pessoa é uma “experiência da alteridade absoluta” (PERRONE-MOISÉS,
1990, p.3); pois, ao explodir em heterônimos, ele circunda a falta, em
vez de apenas falar sobre ela. Essa multiplicação de eus: Alberto Caeiro
(mestre bucólico), Ricardo Reis (um neoclássico estóico), Álvaro de Campos
(um poeta futurista), Bernardo Soares (semi-heterônimo) e Pessoa ‘ortônimo’
são formas de falar do sujeito tomando-se sempre por um outro, assim temos
um “sujeito estourado em mil sujeitos, para se tornar um não-sujeito”
(PERRONE-MOISÉS, 1990, p.12
48
A produção literária pessoana é extensa, portanto faz-se necessário um recorte que procurará enfocar a questão do sujeito literário em algumas das odes e alguns dos poemas de dois dos sujeitos de Fernando Pessoa: Ricardo Reis e Pessoa ortônimo.
RICARDO REIS: sujeito como significante da falta...
Ricardo Reis nasceu em 1887, não me lembro do dia e mês
(mas tenho-o algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil
(...) É um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco [que
Alberto Caeiro]. (...) de um vago moreno mate (...) Foi educado num colégio
de jesuítas, é, como disse, médico: vive no Brasil desde 1919, pois se
expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação
alheia, e um semi-helenista por educação própria.
(Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro)
Ricardo Reis é, em pleno século XX, representante da poética clássica e do paganismo. Além de adepto do pensamento alto e defensor de teses estóico-epicuristas, Reis prega a indiferença solene do homem diante do arbítrio e do poder dos deuses, diante do destino inelutável e da morte como termo definitivo de toda vida. Inerme em face de tais forças, segundo ele, cabe ao homem apenas a sabedoria de viver a vida de forma equilibrada e serena, sem desassossegos grandes e também sem grandes alegrias, já que tudo passa e tudo perde o sentido diante da morte inevitável.
Assim, o que importa é somente a experiência desapegada do momento presente
e de pequenos prazeres, que não deixam traço nem saudade e, portanto,
não são capazes de provocar nenhum abalo ou desvio descentrador.
Os poemas de Reis são odes, poemas líricos de tom alegre e entusiástico,
cantados pelos gregos, ao som de cítaras ou flautas, em estrofes regulares
e variáveis, possuem uma linguagem clássica, usa um vocabulário erudito
e, muito apropriadamente, seus poemas são metrificados e apresentam uma
sintaxe rebuscada. As odes de Reis, como as de Píndaro, recorrem sempre
aos deuses da mitologia grega. Esse paganismo, de caráter erudito, afirma
que os deuses estão acima de tudo e controlam o destino dos homens.
Ricardo Reis apresenta-se então como um sábio que tem lições a transmitir;
já que a morte é tão certa e tão definitiva, o importante é estar sereno
e satisfeito e conter sempre o desejo, fonte de todos os males. Por isso
ele aconselha a sua repressão, que se refere também ao desejo amoroso,
o que se pode comprovar pelo trecho dessa ode:
Ode 315
[...] Desenlacemos as mãos, porque não
vale a pena cançarmo-nos.
Quer gosemos, quer não gosemos, passamos como o rio.
49
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassocegos grandes.
Sem amores, nem odios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento de mais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.[...] (PESSOA, 1994, p.99)
Nessa ode fica explícito o fato de que não vale a pena viver intensamente, pois, independente do que se faça, o fim é o mesmo: a morte. Sendo assim, o poeta metaforiza essa mensagem através do rio que sempre vai ao encontro do mar, dessa forma é melhor não ter desassossegos e “passar silenciosamente”. Nota-se um tédio ao refletir sobre a vida.
É interessante observar o amoldamento dos versos de Ricardo Reis a essa
filosofia, pois também eles são contidos, racionais, equilibrados, curtos.
Assim,adéquam-se à expressão das sensações e das emoções reprimidas. Sua
construção sintática, de inspiração clássica, reflete a racionalização
do poeta e o predomínio da elaboração consciente em sua poesia.
Ricardo Reis seria, portanto, uma ironia de Fernando Pessoa: máscara de
tranqüilidade e contenção a esconder o medo e a angústia. Para esse poeta
a solidão é deslocar-se de seu tempo, é anular os problemas através do
recalque do desejo. A ode abaixo exemplifica isso:
Ode 431
Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas -
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada. (PESSOA, 1994, p.174)
50
De acordo com a temática da ode acima, pode-se notar o trágico lema que perpassa essa poesia de Ricardo Reis: viver a vida com a nobre e aristocrática lucidez dos grandes indiferentes, que sabem que tudo tem seu fim e que tudo já está irremediavelmente traçado. Logo, o poeta por ter consciência da morte e da inutilidade da vida é um ser angustiado, dividido, descentrado, disperso e sem unidade; incapaz de unificar-se, sabe-se ninguém e conhece a falta de si, um sujeito reduzido ao nada.
O grande ensaísta mexicano Octavio Paz afirma que “o labirinto em que Reis se perde é o de si mesmo. A mirada interior do poeta, algo muito distinto da introspecção, aproxima-o de Pessoa” (PAZ, 1976. p.56). Considerar a obra de Reis como algo diferente de uma introspecção é interessante para a questão do sujeito literário, pois ascende justamente por se colocar fora da intimidade do eu.
Parafraseando Perrone-Moisés, o sujeito literário ou poético pode ser
pensado aqui enquanto linguagem que, com a modernidade, deixou de ser
vista como representação da presença, para ser encarada como falta-de-ser;
logo sujeito e desejo são, desde a origem, faltas. As odes de Ricardo
Reis evidenciam que é preciso repreender o desejo, porém essa tentativa
é frustrada, pois é inerente ao ser a falta, a ausência de completude,
a angustia e a morte. Mesmo tendo ciência que o desejo é a origem de todos
os males, tal tentativa de contenção é inútil.
Na modernidade a poesia passou a ter como temática a própria linguagem
poética, sendo assim um exercício metalingüístico. De acordo com Perrone-Moisés,
a partir desse movimento metalingüístico, o sujeito literário passa a
ser o primeiro a desmascarar-se como falta e ausência. (PERRONE-MOISÉS,
1990, p.94)
Maurice Blanchot trata de forma insistente a questão do sujeito literário,
sujeito que é estruturado como linguagem, pois “a palavra literária é
fundadora de sua própria realidade. Essa realidade tem como característica
ser obscura, ambígua, desconhecida” (LEVY, 2003, p.19). Assim, em seu
uso literário, a linguagem desvela seu poder de criar, de "fundar
um mundo". Logo, Fernando Pessoa configura sua poética fazendo uso
dos heterônimos; ele sabe que o único real do poeta é o seu texto, e Ricardo
Reis é um dos simulacros que se tece por uma prática extrema da linguagem,
destacando que todo sujeito pessoano é ficção.
No livro Aquém do eu, além do outro, Ricardo
Reis é considerado a ‘ficção da renúncia’ (PERRONE-MOISES,
1990, p.91), pois através de sua racionalização congela os prazeres e
reduz o desejo, mantendo-o distanciado. Reis reitera que o vazio subjetivo
provoca grande angústia ao sentir individual, portanto é necessário abster-se
do desejo, renunciá-lo, negá-lo. Assim, expõe que o ser só pode viver
‘bem’ quando consegue tal proeza, porém o poeta tem consciência de que
a tentativa de renúncia já causa dor; por isso, recorre muitas vezes aos
deuses, acreditando que eles possam auxiliar o ser nessa tarefa.
Segue-se uma ode que exemplifica a consciência de que nem mesmo quem é
pode-se saber, e é na generalização filosófica que encontra um conforto
ilusório. Essa ode alude a uma marcação temporal: “agora/ enquanto dura
esta hora”; mesmo nesse instante de (im) possibilidade de paz ele sabe
que não pode ser. O poeta tem a certeza de que ele nunca se conhecerá,
nunca conseguirá produzir uma obra, nunca será alguém, ou seja, traços
explícitos de incompletude, impossibilidade e vazio. De forma alguma,
em instante algum ele poderá ser, por isso nota-se uma angústia, um tédio
e até mesmo uma melancolia.
Ode 399
SIM, sei bem
Que nunca serei alguém.
51
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.
(PESSOA, 1994, p.168)
De acordo com Blanchot, a palavra literária (linguagem), possui dois movimentos essenciais: a negação e a realização. Movimentos que se tornam evidentes nas odes de Ricardo Reis, porque “a palavra literária só encontra seu ser quando reflete o não ser do mundo. Ela só se realiza em sua própria falta e, por isso faz dessa falta sua possibilidade”. (BLANCHOT, 2001, p.23)
Possibilidade que se torna evidente por meio da ambigüidade e do caráter
paradoxal que caracteriza a própria linguagem literária, linguagem movediça.
Assim “a obra só se torna obra quando se desobra” (p.24), ou seja, só
se faz no seu desfazer. Logo, Blanchot em L’Entretien
infini (1969) citado por Tatiana Salem Levy afirma que:
Desobrar exige o abandono das certezas que constituem nossa cultura e dos princípios que regem nossa história. Escrever, nesse sentido, supõe uma mudança radical de época-a própria morte, a interrupção[...]. Escrever, desse ponto de vista, é a maior violência, pois transgride a Lei, toda a lei e sua própria lei.(p.25).
A afirmativa acima vai ao encontro da postura de Ricardo Reis, pois o heterônimo pessoano desobra suas odes, coloca em questão as certezas, vê com outro olhar, joga o leitor num mundo de estranhamento, onde não é mais possível se reconhecer. Essa impossibilidade vem acompanhada de uma enorme angústia. Nesse instante não há como congelar os sentimentos, conter; pois o sofrimento nos impele a experimentar o “outro de todos os mundos”. Desse modo, Reis usa seu grande poder de fingir, de enganar, tornando sua ficção não representativa de uma verdade absoluta, mas da possibilidade única de ambigüidade. Seu texto aponta para a chance de “se vivenciar o outro do mundo”.
Segundo Perrone-Moisés, Ricardo Reis não se pergunta ‘quem sou’, mas ‘quem
somos’?(PERRONE-MOISES, 1990, p.91) O que traz uma diferença, pois mostra
que a literatura é um não-lugar, um mundo de estranhamento, onde não é
mais possível se reconhecer.
52
Reis torna-se mais um múltiplo heterogêneo em processo circular de significância.
Em O espaço literário(1987) Blanchot afirma
que: “A obra exige do escritor que ele perca toda natureza, todo caráter,
e que, cessando de relacionar com os outros e consigo mesmo, pela decisão
que o faz eu, ele se torne o lugar vazio onde se anuncia a afirmação impessoal”
(p.58) reiterando a idéia da autora. Toda a obra pessoana é marcada por
esse esvaziamento.
Nas odes de Reis é perceptível que o poeta carrega essa questão, no entanto
é como se ela não fosse dele, apenas o perpassa, assim nota-se um discurso
sem eu, um discurso de ninguém e/ou um discurso de todos. Há então uma
recusa das formas institucionalizadas pelo conhecimento como a unidade,
a identidade, o mesmo, a presença.
Na ode que se segue, a questão que o poeta carrega é a morte. Seu discurso
é de ninguém e/ ou de todos que se contentam com o mundo, e, ao beber,
não se recordam da fragilidade que é a vida “Mas ele sabe fazer que a
cor do vinho esconda isto”, porém sabe-se que a morte é inevitável “Corta
à flor como a ele/ De Atropos a tesoura”; contudo, ainda deseja adiá-la
“Que a abominável onda/ O não molhe tão cedo”.
Ode 320
Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.
Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta à flor como a ele
De Atropos a tesoura.
Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto às horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.
E ele espera, contente quase e bebedor tranqüilo,
E apenas desejando
53
N’um desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo. (PESSOA, 1994, p.95)
É importante mencionar que “a literatura não se fixa em nada, nem a um sujeito, sua fala é essencialmente errante, móvel, se coloca sempre fora de si mesma”. (LEVY, 2003, p.29). E, nesse trajeto segue Ricardo Reis, um sujeito que vê a morte como única certeza, pois tudo é transitório. Reis não conseguirá um olhar sereno sobre o mundo, pois tem ciência e representa em sua poesia as angústias e descontentamentos. Pode-se afirmar que nem a ‘sábia indiferença’ conseguiu fazer com que ele superasse a marca de seu próprio tempo.
FERNANDO PESSOAORTÔNIMO: Pai fictício...
Quanto a Fernando Pessoa ortônimo, este segue, formalmente, os modelos da poesia tradicional portuguesa, em textos de grande suavidade rítmica e musical. Poeta introvertido e meditativo, anti-sentimental, reflete inquietações e estranhezas que questionam os limites da realidade da sua existência e do mundo.
“A arte não é mais capaz de portar a necessidade de absoluto.”
(Maurice Blanchot)
Já com relação Fernando Pessoa “ele mesmo”, a pessoa, o poeta, o homem, seria possível atribuirmos a ele a completude, a voz maior cantadora de todos os seus heterônimos? Seria ele a junção dos estilhaços espalhados pela sua explosão em outros eus? Segundo Perrone-Moisés – não. “[...] é preciso cessar de sorrir diante do grande mistificador, disfarçado com nomes postiços, bem a salvo num ‘ele mesmo’ reconfortante.[...] Deixemos de encarar Pessoa como o centro pleno e fixo de um círculo giratório, como o pai verdadeiro de uma linhagem falsa.” (PERRONE-MOISES, 1990, p.12). Ela afirma ainda: “Pessoa é um poeta fictício, tão irreal quanto os heterônimos que inventou.”(p.12). Fernando Pessoa ortônimo, o ser completo, criador dos seus poetas (heterônimos) que poderia ser considerado o ser da completude é, assim como suas “criaturas” um ser fictício, contraditório, que perambula no interlúdio, na interseção, na fenda (palavras sempre recorrentes em sua poesia), um ser da falta.
Fernando pessoa é ser que habita o entre-lugar conforme se pode perceber
no verso a seguir. “Fui-o outrora agora” (PESSOA,1995,p.141). Para Perrone-Moisés
esse verso representa um “extraordinário ideograma do tempo coagulado”
(p.29). Acreditamos que além do tempo coagulado
trata-se de um lugar coagulado, um lugar ao qual pertence e despertence
esse poeta. Fui-o – verbo conjugado no tempo passado; o - pronome que
distancia o narrador dele mesmo, ou seja, foi, em um passado remoto (outrora),
alguém que já não é mais, foi um outro. Palavras essas contrastadas com
o agora do poema criam a sensação de estarmos lidando com um eu poético
que se fixa em lugar nenhum. Foi alguém que não ele (um terceiro) que
o é agora. Esse exercício de reflexão para encontrarmos de quem, de onde
e de quando trata essa poesia, nos remete a um lugar que não é lugar algum,
tanto é lá (passado), quanto é agora (presente), no entanto não é lá (passado),
nem agora (presente). O narrador foi um outro e o não mais é, mas é, hoje,
aquele que foi um dia, outro. Sendo assim esse narrador encontra-se exatamente
aqui e lá, e ao mesmo tempo nem aqui, nem lá. Encontra-se em lugar algum,
ou melhor, em um lugar que não é lugar algum; um não-lugar. Essa falta
de
54
lugar seguro já começa a nos dar pistas da tessitura poética travada por Fernando Pessoa. Poeta que expressa a impossibilidade da certeza, a possibilidade única da falta.
Existe um vazio na poesia pessoana, mas segundo Blanchot “o vazio” é um
“vazio ativo”.”(BLANCHOT, 2005, p.54). Poderíamos pensar esse vazio como
algo relacionado ao desejo, desejo que só é possível devido à existência
da falta, da ausência. O vazio em Fernando Pessoa carece desesperadamente
de ser preenchido. A falta necessita urgentemente
de ser suprida, porém quando a falta primeira é preenchida uma nova falta
nos aflora, e essa também deseja ser preenchida e assim por diante. Para
explicitarmos melhor essa questão, recorremos à Conversa
infinita (2001) de Blanchot: “[...] a questão não se prossegue
na resposta, ao contrário, ela é concluída pela resposta e nela fechada”
(p. 44), mas, [...] “somente a resposta, respondendo, deve retomar em
si a essência da questão, que não é extinta por aquilo que lhe responde.”(p.45)
Ou seja, sempre que nos satisfazemos com alguma resposta, essa nos propõe
novas questões e essas novas questões nos trarão novas respostas que estarão
impregnadas com novas questões. Dessa maneira, a falta nunca é preenchida
completamente. A linguagem, em especial a linguagem poética, está carregada
de ambigüidade e essa ambigüidade pode ser encarada como representação
da falta. Fernando Pessoa utiliza essa linguagem, pois tem consciência
da impossibilidade de completude. Segundo Blanchot”:
O que é primeiro não é a plenitude do ser, é a fenda e a fissura, a erosão e o dilaceramento, a intermitência e a privação corrosiva. Ser é não ser, é essa falta do ser, falta viva que torna a vida desfalencente, inacessível e inexprimível, exceto pelo grito de uma feroz abstinência. (BLANCHOT, 2005.p.53)
No poema que se segue é possível averiguar essas questões acima mencionadas:
EMISSÁRIO DE UM REI DESCONHECIDO [73.13]
Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que a meu lado vêm
Soam-me a um outro e anômalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me o desdém
Por este humano povo por entre quem lido...
Não sei se existe o Rei que me mandou.
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas há! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
55
(PESSOA, 2001, p. 128)
Se considerarmos o Rei da poesia como representação da arte ou do pensamento, encontraremos um interessante viés de leitura no que diz respeito a Fernando Pessoa e ao sujeito literário. Fernando Pessoa potencializa palavras ao jogar com a ambigüidade da linguagem poética. No terceiro e quarto versos da primeira estrofe, percebemos essa impossibilidade do significado absoluto, fechado. As frases ditas pelo eu poético se transformam ao serem ouvidas por ele mesmo. Aos diversos leitores, os versos lidos se contaminam das mais diversas significações, tamanha a habilidade com a qual o poeta trabalha a escrita. A palavra e seu significado escorregadio, em Fernando Pessoa podem representar a falta, a incompletude, não se fecha em um único significado. Na segunda estrofe, o sujeito literário encontra-se mais uma vez aprisionado entre dois lugares, estacionado em um não lugar, representando a vida desfalecente e inexprimível mencionada por Blanchot. Ainda nos dois primeiros versos da segunda estrofe observamos a missão do artista de falar sobre algo, qualquer que seja, mas na impossibilidade da expressão absoluta. Já na terceira estrofe percebemos que a missão do poeta em escrever não é suficiente para completá-lo, é impossível exprimir-se absolutamente e só resta então o deserto, o oco, a falta. Na última estrofe o eu poético passa a não ter mais essa missão e tenta esquecê-la, e se orgulha de tê-la esquecido, no entanto a angústia e a luta são tamanhos, que “fecham” o poema, “desafirmando” aquilo que acabara de afirmar e se desloca novamente para o ponto em que há algo a ser dito. É o ser dilacerado, tensionado entre dois extremos, o ser do intermezzo.
A única possibilidade para Fernando Pessoa era transformar sentimentos
em pensamentos, pensamentos que seriam expressos através de linguagem
e o que acontecia era “perda do pensamento em linguagem...” segundo Perrone
Moisés (p.15). A linguagem não consegue dizer completamente. A autora
vai ainda nos dizer a respeito das máscaras heteronímicas criadas pelo
poeta, da relação entre o Um e o Múltiplo:
Esse “Um” e esse “Múltiplo” são apenas simulacros, máscaras de um ser indefinido. O “Um” em Pessoa é a primeira máscara do Vácuo-Pessoa. Essa máscara se multiplica em outras máscaras, provocando um movimento a vácuo, um movimento em falso. Como as máscaras não são os outros do Um (já que o próprio Um era apenas uma máscara do vazio). Elas não podem contribuir para a (re)construção do Um. (PERRONE-MOISES, 1990, p.27)
Tomando a afirmação acima e considerando cada um dos heterônimos como máscaras, poderíamos acreditar que, ao tirarmos cada uma dessas máscaras, encontraríamos Fernando Pessoa “ele mesmo”. No entanto, após a retirada da última delas, para nossa surpresa o que encontramos é o nada. O poeta dilacerado em vários já não mais se encontra, ele não é a junção de todos os outros. Mais uma vez percebemos a impossibilidade de completude, o que encontramos abaixo da última máscara será, no máximo, uma outra máscara. O sujeito se perdeu, só o que nos resta é a linguagem movediça e escorregadia, a busca constante de satisfação da falta, de suprirmos o desejo e, assim que esse desejo é suprido, novos desejos surgem. A angústia da incerteza e da verdade inatingível tornam-se a única possibilidade. O sujeito já não mais se encontra, é impossível voltar a um estado de completude (se é que esse estado algum dia existiu).
Podemos perceber em um dos poemas escrito em língua inglesa (existe uma
considerável produção do poeta nessa língua, pois foi esse o seu idioma
entre as idades de cinco a dezessete anos), a impossibilidade de completude
ao ser retirada a última máscara; “the true mask
feels no inside to the mask” (PESSOA, 2001, p.591). Os olhos que
olham através da(s) máscara(s) são olhos co-mascarados; “But looks out of the mask by co-masked eyes”(PESSOA, 2001, p.591).
Os olhos de Fernando Pessoa, na busca de obter as mais diversas possibilidades
de olhares através de seus heterônimos, ao tentarem se tornar novamente
olhos desmascarados, olhos do poeta “ele mesmo”, já não conseguem essa
proeza, pois:
56
quando aquele que empreendeu contornar-se a si mesmo, pelo desvio da linguagem, tenta voltar pra casa, a fim de desfazer a farsa, encontra vazio o lugar onde, em princípio, alguém deveria estar. Nesse percurso o sujeito perdeu-se.”[...] Arderá em mim eternamente, inutilmente, a ânsia (estéril) do regresso ao ser. (PERRONE-MOISES, p21).
Logo, é terrível essa sensação da impossibilidade de retorno; “Like a child frighted by its mirrored faces,/ Our souls, that children are, being thought-losing,/Foist otherness upon their seen grimaces.”(PESSOA, 2001, p.591)
CONCLUSÃO
Como pudemos perceber na produção tanto de Ricardo Reis quanto do ortônimo,
a poesia de Fernando pessoa é produto do homem moderno que não tem mais
a crença no absoluto. As utopias desfaleceram, o sujeito se sente perdido,
pois não acredita mais em verdades “puras”. O absoluto está perdido para
sempre. A linguagem não representa o real, mas o imaginário, pois “todo
o estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo estado de alma é não só
representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem” (PESSOA,
2001, p.101). Fernando Pessoa, ao tecer sua arte através de palavras,
de poesia, tem consciência da impossibilidade da palavra como representação
do real. A palavra é representação não do real, pois esse é inapreensível;
assim, a palavra é representação do imaginário, é fingimento; “o poeta
é um fingidor” (PESSOA, 2001, p.164). Palavra é contradição, assim como
o sujeito da poética de Fernando Pessoa – o sujeito literário –, ciente
da impossibilidade de completude, elege a palavra artística como expressão
maior da falta, da impossibilidade, daquilo que é essencial na tessitura
literária, a ambigüidade.
57
REFÊRENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
_____________. O livro por vir. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
_____________. A conversa infinita – A palavra final.
São Paulo: Escuta, 2001.
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional.
In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas
fontes. Trad. Heidrun K. Olinto e Luiz Costa Lima. V.2. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 955-987.
LEVY, Tatiana Salem. A experiência do Fora: Blanchot,
Foucalt e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
PAZ, Octavio. O Desconhecimento de si. In: Signo em Rotação. 2.ª ed., São Paulo, Editora Perspectiva,
1976.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa - aquém do
eu, além do outro. 2.ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1990.
PESSOA, Fernando. Obra poética. 17. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2001.
PESSOA, Fernando. Poemas de Ricardo Reis. Vol.III. Portugal. Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1994.
Marcelo Antônio Ribas Hauck
marceloarhauck@hotmail.com
Mireile Pacheco França Costa
mireilep@uol.com.br
58
O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero7/marcelo.htm
Número 7 (2006) - ISSN 1981-870X