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O Naufrágio das caravelas
Izabela Guimarães Guerra Leal
Centro Universitário Moacyr Sreder Bastos
Resumo
Camilo Pessanha, residente em Macau, publica no jornal A pátria um texto intitulado "Macau e a gruta de Camões", comparando o momento em que o autor d'Os Lusíadas escrevera a sua epopéia marítima com o momento presente, em que os poetas cantam apenas as ruínas da pátria ausente. A evidência das ruínas, tão comum nos versos de Pessanha, atesta, num primeiro olhar, a decadência de Portugal, mas é também a constatação de que a linguagem é incapaz de atingir um sentido pleno e eterno, o que aponta para a presença da temporalidade e da morte no cerne de toda tentativa de significação.uto
Palavras-chave: morte; alegoria; decadência; fragmentação; tempo.
Abstract
Camilo Pessanha, living in Macau, publishes in the newspaper A Pátria a text entitled "Macau e a gruta de Camões", in which he compares the moment when the author of Os Lusíadas wrote his maritime epopee with the present moment, when the poets sing only about the ruins of the absent homeland. The evidence of the ruins, so common in Pessanha's verses, confirms, at a first glance, the decadence of Portugal, but beyond that, it is also the realization that language is uncapable of reaching an absolute and eternal meaning, which points at the presence of temporality and death at the core of every attempt at signification.
Key-words: death; allegory; decadence; fragmentation; time.
Em 7 de junho de 1924, Camilo Pessanha publica no jornal A pátria um texto intitulado "Macau e a gruta de Camões". As considerações que o poeta, residente em Macau, desenvolve em tal texto, passam pelo debate acerca da possível estadia de Camões na mesma província, local em que, como reza a lenda, teria escrito, numa gruta de frente para o mar, algumas estrofes d'Os Lusíadas, o grande poema mítico da cultura portuguesa. Entretanto, a questão de saber se Camões de fato lá residiu ou não, e se lá escreveu alguns de seus mais memoráveis versos, é apenas o pano de fundo para que Pessanha trace um paralelo entre a época atual e a época em que viveu Camões, o que determinaria a própria atividade poética realizada no passado e no presente.
De acordo com Pessanha, "a inspiração poética é emotividade, educada, desde a infância e com profundas raízes, no húmus do solo natal" e acrescenta "É por isso que os grandes poetas são em todos os países os supremos intérpretes do sentimento étnico." Ora, se Camões, mesmo exilado de sua pátria, perdido em terras distantes, foi capaz de escrever uma epopéia, algo muito distinto ocorre no presente, quando
os poucos que vagueiam e se definham por longínquas regiões, se acaso escrevem em verso, é sempre para cantar a pátria ausente, para se enternecerem (os portugueses) ante
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as ruínas da antiga grandeza da pátria e, sobretudo, para dar desafogo à irremediável tristeza que os punge. (p. 304)
Em tempos de pós-ultimatum – o grande "trauma" português já apontado por Eduardo Lourenço –, em tempos de profunda decadência, a pátria não pode alimentar com sua seiva o espírito dos poetas. Assim, aqueles que se encontram no exílio sofrem uma espécie de atrofia, de esterilidade, ao contrário do que aconteceu com Camões:
Mas a terrível acção depressiva do clima e do ambiente físico e social dos países tropicais, se não tiveram poder contra a assombrosa vitalidade criadora do poeta máximo, têm-no, todavia, não só para esterilizar em cada um de nós, os pigmeus que a quatro séculos de distância o contemplamos, o pouco de aptidão versificadora que algum tivesse, mas ainda para destruir, mesmo nos melhores dotados, a comezinha parcela de imaginação de que é indispensável dispor quem intente evocar a estatura do gigante, o seu esbelto perfil e a sua augusta figura. (p. 305)
Assim, se a grandeza do poeta está em relação direta com a grandeza da pátria, esses poetas pigmeus, entre os quais Pessanha se inclui, o são porque a própria pátria também é raquítica, e não o poderoso império do século XVI. Os poetas do presente são, dessa forma, não mais cantores da glória, das conquistas e dos triunfos, mas sim das ruínas, da fragmentação e da morte. Notável, a esse respeito, é o poema "San Gabriel", datado do quarto centenário do descobrimento da Índia. O título do poema evoca, de acordo com Paulo Franchetti e Maria Helena Nery Garcez (1993, p. 52), tanto o arcanjo da anunciação à Virgem Maria, como também o nome da nau capitânia de Vasco da Gama. Ironicamente escrito numa data comemorativa, o poema não pode ser, de forma alguma, visto como uma homenagem ou um escrito de celebração, já que se apresenta na forma de um olhar nostálgico em direção a um passado irrecuperável, manifestando-se como uma súplica a São Gabriel para que ele devolva aos portugueses a grandiosidade perdida:
Inútil! Calmaria. Já colheram
As velas. As bandeiras sossegaram
Que tão altas nos topes tremularam,
– Gaivotas que a voar desfaleceram.
Pararam de remar! Emudeceram!
(Velhos ritmos que as ondas embalaram).
Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?
(PESSANHA, 2003, p. 106)
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A decadência do presente ganha corpo na imagem das caravelas de agora, que não são mais os veículos dos conquistadores, mas embarcações estéreis, paralisadas na calmaria do oceano. Se as caravelas, símbolo máximo da nação portuguesa, são agora barcos sem vigor, não é de se estranhar que os seus tripulantes estejam marcados pelo signo da melancolia e da morte. Assim, os que atravessam os oceanos embalados por um canto de cisne são os tais pigmeus, essas "[...] almas tristes, severas, resignadas, / De guerreiros, de santos, de poetas." (PESSANHA, 2003, p. 107)
Do mesmo modo, a Vênus de Pessanha não é mais a deusa poderosa que n'Os Lusíadas tanto contribuiu para o sucesso dos portugueses e recompensou os seus esforços com os prazeres divinos na Ilha dos Amores. Em tempos de decadência, a deusa é apenas a figura de uma mulher afogada, como no poema intitulado "Vênus": "Pútrido o ventre, azul e aglutinoso, / Que a onda, crassa, num balanço alaga, / E reflue (um olfato que se embriaga) / Como em um sorvo, múrmura de gozo." (PESSANHA, 2003, p. 110). Ou ainda, na segunda parte do poema, em que o corpo já decomposto perdura apenas em suas estruturas calcáreas – "Róseas unhinhas que a maré partira... / Dentinhos que o vaivém desengastara..." – e repousa como uma figura peregrina no fundo do oceano. Esses restos, observados a distância, não podem mais evocar nenhum ideal de glória; o tempo das caravelas e das grandes realizações há muito que já é passado, e as ruínas desse tempo, ao serem avaliados pela acuidade do olhar do poeta, remetem apenas a um horizonte de ilusões: "E a vista sonda, reconstrói, compara. / Tantos naufrágios, perdições, destroços! / Ó fúlgida visão, linda mentira!" (PESSANHA, 2003, p. 111)
Interessante também é que mesmo o ato heróico da conquista aparece contaminado, nos versos de Pessanha, por uma aura de decepção. É como se entre o desejo e o instante da sua realização houvesse um intervalo intransponível, um toque mágico que transforma em meros dejetos os objetos outrora revestidos de encanto:
Depois da luta e depois da conquista
Fiquei só! Fora um ato antipático!
Deserta a Ilha, e no lençol aquático
Tudo verde, verde, – a perder de vista.
(PESSANHA, 2003, p. 132)
Trata-se da presença de algo que deforma os objetos em que toca, que retira a consistência das coisas, transformando-as em projeções, meras imagens de sonho. A percepção da precariedade do mundo conduz o poeta a uma série de interrogações: "Porque vos fostes, minhas caravelas, / Carregadas de todo o meu tesoiro?" ou ainda "Quem vos desfez, formas inconsistentes, / Por cujo amor escalei a muralha, / – Leão armado, uma espada nos dentes?" (PESSANHA, 2003, p. 132)
E é justamente aqui, na percepção aguda da inconsistência dos desejos, no intervalo que assinala de forma explícita a presença de uma força que submete tudo o que se encontra no mundo à mudança, é justamente nesse intervalo que enxergamos nitidamente a ação de um tempo destruidor, de um tempo que desgasta e altera todas as coisas à sua volta, e é também aí que se delimita um ponto essencial da poética de Pessanha, pois, para além da decadência da pátria, e portanto da impossibilidade dessa de alimentar com seu húmus o espírito dos poetas, há, em seus versos, uma problemática muito mais ampla, que não se restringe apenas ao solo português, e que foi compartilhada por muitos outros poetas de sua época. A percepção de uma impotência generalizada, que não é somente a lamentação de um sujeito entediado ou insatisfeito, assume a forma da constatação de que não é possível fazer cessar a finitude e a temporalidade.
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No caso de Pessanha, penso, primeiramente, no poema que dá a ver de forma emblemática a transitoriedade do mundo, representada pela metáfora da água, cujo fluxo incessante aponta para o movimento de passagem do tempo:
Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...
Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
- Porque ides sem mim, não me levais?
Sem vós o que são os meus olhos abertos?
- O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...
Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
- Estranha sombra em movimentos vãos.
(PESSANHA, 2003, p. 102)
É a partir da impossibilidade de fixar as imagens, de captá-las numa forma definitiva e imutável que o último terceto do poema aponta para as mãos, nossos instrumentos da escrita. Se a escrita representa, por um lado, a possibilidade de fixação de algo, se o poema pode ser uma tentativa de escapar um pouco da temporalidade, por outro lado, ele só existe devido à finitude do mundo, ou seja, só existe diante da presença da morte.
Se há tensão entre a transitoriedade do mundo e o desejo de fixação, a morte despontará também, nos versos de Pessanha, como o único modo de manter-se fora da ação corrosiva do tempo, uma vez que ela é a própria anulação do tempo. Mas a morte não poderá jamais ser um lugar de chegada efetiva, ela é
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uma promessa que não se cumpre, um horizonte imaginado e almejado, mas não verdadeiramente atingido. A famosa (e impossível) síntese que Pessoa tão bem expressou nos versos da Ceifeira – "ter a tua alegre inconsciência / e a consciência disso" (PESSOA, 1986, p. 144) – é como um sonho de morte também revelado por Pessanha:
Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim
E nada me doer! [...]
Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranqüilas,
Em brutos pugilatos
Fracturam-se as maxilas...
E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada."
(PESSANHA, 2003, p. 128)
O que causa estranheza nesses versos é que o espaço da morte é por demais familiar, e não uma pura ausência de sensações; donde se conclui que não é possível dizer a morte, já que ela vem contaminada com algo da vida. Por isso a morte não pode libertar-se de seu estatuto de promessa; ela é, paradoxalmente (ao menos nos versos de Pessanha), o lugar da própria eternidade, mas de uma eternidade impossível de atingir. A poesia de Pessanha inscreve-se, portanto, nessa tensão entre um desejo de apagamento e a constatação de sua impossibilidade, o que evidencia que a linguagem é incapaz de uma auto-anulação, ela sempre fala demais, fala além do desejado. Ou melhor, a linguagem fala sempre demais ou de menos; por um lado é excessiva, por outro, insuficiente.
É esse caráter sempre falhado que remete a uma compreensão da linguagem enquanto alegoria que procuro assinalar aqui, isto é, uma forma de significação sempre marcada pela arbitrariedade, incapaz de alcançar um sentido último e verdadeiro, ao contrário do símbolo, que revelaria um ideal de plenitude e totalidade.
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Jeanne Marie Gagnebin, em História e narração em Walter Benjamin, ressalta que é justamente "o choque entre o desejo de eternidade e a consciência aguda da precariedade do mundo que, segundo Benjamin, está na fonte da inspiração alegórica." (GAGNEBIN, 2004, p. 37) Essa é, ainda de acordo com Gagnebin, uma das questões da modernidade, e a literatura contemporânea configura-se como um esforço por "dizer a morte em obra, inaugurando esta relação de combate contra a morte e de conivência com ela". (p. 52) Daí o caráter melancólico da poesia de Pessanha, o que aponta para um sujeito distanciado de si mesmo, incapaz de afirmar sua identidade, como fica evidente "na estranha sombra em movimentos vãos" que se revela no último terceto do poema "Imagens que passais pela retina...". Ora, a estranha sombra a que o poeta alude é a sombra de suas próprias mãos, que já não pode ser vista e assimilada como algo que lhe pertence, pois no ato da escrita, na tentativa de significação, já vem revestida por um acabamento estranho, estrangeiro.
Do mesmo modo, os objetos que são tocados pelo poder desagregador do tempo não aparecem mais em sua inteireza, mas brilham apenas como fragmentos e ruínas, apontando no presente para um passado irremediavelmente perdido. E, ao contrário das caravelas de outrora que atravessavam bravamente os oceanos, agora "passam, / Se despedaçam, / No rio os barcos." (PESSANHA, p. 119) O apreço pela fragmentação, pela desestruturação dos objetos, e até mesmo o gosto um tanto mórbido de acentuar a putrefação e a decomposição dos corpos, que não está só em Pessanha, mas em muitos outros poetas de seu tempo, tudo isso diz respeito à necessidade de encarar de frente o poder do tempo e da morte, de dar um lugar à sua ação.
A inspiração alegórica repousa, pois, num processo de significação que não pode prescindir da morte. O poeta sabe que, para escrever, é necessário negar a indolência do repouso na eternidade, é necessário acatar a finitude e a temporalidade, de modo que a escrita seja uma tentativa de negar a morte ao mesmo tempo em que é a consciência do malogro de tal projeto. Para escapar dessa angústia, da tensão irresolúvel entre essas duas posições, a poesia moderna, como observa Octavio Paz, torna-se uma crítica da experiência poética, crítica que se manifesta na renúncia à palavra. A poesia pode assumir então a forma de uma negatividade, que Paz traduziu como um desejo do poeta de "escrever o poema final que seja também o fim da poesia, sua negação e culminância." (PAZ, 1982, p. 314)
Não é de se espantar, portanto, que Pessanha tenha escrito para fechar o seu livro um poema que prega justamente a quietação absoluta e que acabou sendo batizado de "Poema Final". Basta dizer que seu último verso é uma incitação completa ao repouso: "Adormecei. Não suspireis. Não respireis." (PESSANHA, 2003, p. 136) Mas para que o poeta atenda a um tal conselho, só há de fato uma solução: parar de escrever. Apenas nesse ato radical, na recusa total e obstinada à escrita é que o poeta poderia, talvez, tentar situar-se no horizonte da morte. Entretanto, dessa experiência silenciosa não teríamos uma única palavra.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FRANCHETTI, Paulo e GARCEZ, Maria Helena Nery. “A viagem de Vasco da Gama na virada do século”. In: Estudos portugueses e africanos, n.22, Campinas, jul. / dez. 1993, p. 51-64.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982
PESSANHA, Camilo. Clepsydra (edição crítica de Paulo Franchetti). Lisboa: Relógio d’água, 2003.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986
PIRES, Daniel (org.). Camilo Pessanha prosador e tradutor. Lisboa: Instituto Português do Oriente / Instituto Cultural de Macau, 1992.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero7/izabela.htm
Número 7 (2006) - ISSN 1981-870X