Resenha
Bruno Cattoni.
Osso (na cabeceira das avalanches).
Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. 81p
Nadiá Paulo Ferreira
Prof. Titular de Literatura Portuguesa/UERJ
Psicanalista/Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, Seção Rio de Janeiro
À noite, em 21 de Junho de 2005, fui conhecer Bruno Cattoni, que lançava um livro de poesias, que girava em torno de um homem que “escrevia com os ossos”, porque só assim as palavras expressavam a dor de existir.
Esse homem que “escrevia com os ossos”, com a precisão do corte de um cirurgião experiente, arrasta Bruno aos enigmas do tempo, onde vida e morte se tocam atravessadas pelo desejo.
Esse homem “de existência óssea”, que escolheu “sofrer até o talo”, invade a alma de Bruno, acossando-o a desenterrar o “passado que não se esgotou”. Assim se inicia uma luta entre criador e criatura, em que Bruno, apesar de “tão esmagado”, em vez de sucumbir à dor, desperta das ruínas para reescrever com palavras “o que foi escrito com os ossos”.
Assim o amor tecido letra a letra pelo desejo de escrever origina a criação de uma obra que causa a repetição de mais uma história de amor…
Mas, leitores, prestem atenção! Não se trata do amor que nasce da captura de corpos traídos pelo olhar.
Há muito tempo atrás, eu escrevi um artigo sobre os trovadores: Esses poetas que falam do amor como se fossem mulheres. Nele, retomo as considerações de Jacques Lacan sobre o amor cortês. Ele é o único amor verdadeiro, na medida em que indica o que há de paradoxal no próprio amor: não é possível de dois se fazer Um. A tão almejada Completude nunca é encontrada, porque o que falta ao amante nunca é o que o objeto amado tem para lhe oferecer. Nas Cantigas de Amor, a Dama, como amada, só pode ser abordada pelo trovador como um objeto que resvala, que escapa, apontando dessa forma para um vazio, cuja referência é o indizível.
Na época em que Bruno fazia seu livro, leu esse artigo e se encantou com alguma coisa que não sei bem o que é. Começou a procura. Ele me achou:
— Sou Bruno Cattoni. Acabei de escrever um livro de poesia que está no prelo. Li seu artigo sobre poesia medieval na Internet. Quero que você faça a apresentação do meu livro.
Eu estava me recuperando de uma delicada cirurgia e não queria nenhum compromisso com a escrita. Mas não disse isso. Perguntei pelo prazo e Bruno me disse que esperava o tempo necessário. Acertamos que a editora me mandaria o livro por e-mail. Fiquei bastante apreensiva. E se fosse desses que escrevem mal pra caramba, mas acham que são poetas? Não faço parte da lista dos “famosos” (pensava), então ele deve mesmo ter gostado do meu texto. Enfim uma sensação esquisita me acompanhou durante alguns dias. Cheguei inclusive a comentar esse fato com alguém na universidade em que trabalho. Mas depois de um
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monte de perguntas, as quais obviamente eu não sabia responder, achei melhor não falar mais disso, até porque eu só tomaria qualquer decisão depois de ler o livro. É certo que liguei para a editora para saber algumas informações sobre o autor. Mas nada disso aliviou a sensação de estranhamento diante de tal convite.
Foi com um frio no estômago que abri o anexo do e-mail que a editora me mandou. Apaixonei-me pelo livro. Li e reli várias vezes. O osso como alicerce é metáfora do nada. O osso como resto é metonímia da morte. O que vem em suplência a essa dupla experiência de horror é o desejo. Amar e sonhar, entrelaçados pelo desejo, interrogam a existência: “O enigma do homem levita no vazio”.
Aconteceu — como diria Fedro, o primeiro interlocutor de O Banquete de Platão — o milagre do amor: a transformação do amado em amante. Sim, pois foi como amante que sentei no computador para começar a escrever a apresentação do livro.
Nadiá Paulo Ferreira
E-mail: nadia@corpofreudiano.com.br
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero7/resenha.htm
Número 7 (2006) - ISSN 1981-870X