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QUE SIGNOS DAR A SI PRÓPRIO?
Mário Bruno
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
Universidade Federal Fluminense – UFF
Resumo
Esse trabalho apresenta algumas considerações sobre a noção de autor e suas relações com a dissolução da transcendentalidade do sujeito na literatura a partir de uma experiência do fora.
Palavras-chave: autor; sujeito; fissura; diferença; fora.
Resumé
Ce travail présente quelques considérations sur notion d’auteur et ses relations avec la dissolution de la transcendentalité du sujet dans la littérature a partir d’une expérience du dehors..
Mots-clés: auteur; sujet; fissure; différence; dehors
Sou um nómada da
consciência de mim.
Fernando Pessoa*
Vejamos a falha do tempo
listrar o sujeito kantiano
Michel Foucault**
A escritura moderna produz um desligamento, a narrativa não é mais assumida por uma pessoa. Seguramente, há uma incompatibilidade entre a aparição da linguagem em seu “ser” e a consciência de si em sua identidade. A palavra se move sem conteúdo e alastra-se em direção ao Fora. O autor deixa de ser o sujeito de sua escrita e o texto assume que é escrito a todo instante. Abandona-se a função transcendente da Autoria. O autor não pode mais prover o texto de um significado último. A literatura moderna não tem fundo, tem somente a superfície de seu sentido.
Quanto a essa questão, gostaríamos inicialmente de observar o que nos diz Roland Barthes num ensaio denominado A Morte do Autor. Segundo Barthes1, o autor é uma personagem ainda presente nos manuais de história literária, nas biografias dos escritores, nas entrevistas dos periódicos e na consciência dos literatos que procuram juntar, através de diários íntimos, obra e autor. Contudo – de acordo com Barthes2 –, a Modernidade nos oferta também uma impessoalidade prévia na qual é a linguagem que age e performa, e não o “eu”. A Modernidade suprime o Autor em proveito da escritura. A linguagem não conhece a pessoa, mas o sujeito sem existência fora da enunciação.
A noção de autoria pertence a uma fé personalista da Idade Clássica. Nessa perspectiva, o autor é o dono de sua voz e a sua voz é uma substância regida pelo princípio de identidade (não-contradição).
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Todavia a Idade Moderna nos diz que as palavras não conhecem uma voz única, elas oscilam soltas como se circulassem sobre o impessoal. A escritura é, entre outras coisas, o que torna vã a identificação do autor, separando a voz de sua origem e constituindo o neutro na linguagem3 .
No plano da literatura, diremos que a função-autor, além de pertencer a uma relação jurídica, foi desempenhada a partir da Idade Clássica por um sujeito – supostamente mais sensível que os outros – capaz de captar as impressões da realidade e que, dominado por um certo estado de ânimo, devia expressá-la de modo eficaz ao leitor. Dessa feita, o leitor não poderia depreender a obra de sua autoria. Havia uma identidade, um rosto, por trás do texto, que não se apagava. Portanto, desenhava-se uma conexão intrínseca entre os signos escritos e a individualidade da palavra autêntica do escritor. A função-autor pressupunha uma adequação entre o que eu digo e o que eu sou. A reflexão é adequada ao refletido, pois há uma transparência possível de se efetuar no plano do enunciado. O autor é o agente cuja linguagem representa uma exterioridade e uma interioridade. A função-autor se efetua em virtude da reflexividade da consciência que pressupõe uma relação direta entre dizer e pensar. Com efeito, não há uma ruptura entre enunciado e enunciação, as palavras que digo têm que se adequar ao que eu sou.
É claro que o esmaecimento da noção de autoria liga-se a um fato maior: a dissolução da idéia de sujeito idêntico a si.
Se observarmos a notável “autobiografia” de Roland Barthes, veremos que ela é aberta com uma frase muito marcante: “eu nunca me pareço comigo”4. O que seria essa não identidade consigo? Para Barthes, a própria impossibilidade de falar de um “eu” coerente e centrado. Aqui a biografia se mostra como um paradoxo. A escritura nos leva para além das representações produtoras de indivíduos civis. Assim sendo, Roland Barthes por Roland Barthes é iniciado por um discurso de fascinação perante as imagens que retornam, por algum motivo, recortadas. Seria essa obra uma autobiografia ou um outro artifício visando a não subjugar a escrita? Uma forma de apresentar a literatura e a teoria como experiências não separadas? Acreditamos que tudo isso ocorra em perfeito equilíbrio nesse texto de Barthes. Parece-nos que Roland Barthes por Roland Barthes é um percurso em busca do que poderíamos nomear de CsO do livro.
Roland Barthes por Roland Barthes é uma autobiografia discutindo as verdades possíveis na linguagem: o que a linguagem finge dizer nos seus códigos. Essa biografia é também um complexo jogo intersubjetivo. Quando Barthes nos diz “tu és isto”5, “tu” é apenas um shifter que nesse enunciado garante o “impreciso da diferença”6.
O leitor abre a página e vê-se no espelho, mas essa imagem especular é a daquele que escreve, situado em algum ponto imaginário fora do livro. A enunciação é, portanto, um processo vazio, não precisa de autoria; aquele que pronuncia a palavra “tu”, referindo-se a um “eu” no espelho, não é uma pessoa ou um cidadão civil: o texto não mais se explica quando descobrimos o autor.
Poderíamos permanecer nesse caminho, insistindo na idéia do sujeito dividido entre enunciado e enunciação. Mas seria ir muito longe, sem a certeza de poder voltar. De qualquer maneira, o problema da cisão nos interessa. Não sob o preço de considerá-la apenas na forma do discurso (enunciado/enunciação). Com efeito, o que parece um progresso para a psicanálise, não é exatamente nossa direção. Certamente, o sentido da fissura do sujeito, que buscaremos em nosso texto, é outro.
Retomemos, na Idade Clássica, as palavras operadoras da redução cartesiana, “eu penso”, “eu sou”. No cogito cartesiano, o “eu penso” determina a existência indeterminada, o “eu sou”. Para pensar é preciso ser. Portanto, o representar cartesiano é fundamentado por dois valores lógicos: a determinação e a existência determinada.
Ninguém ignora que a Modernidade reformula o problema do sujeito da representação (o que reconhece a si mesmo na proposição “eu penso”, “eu sou”). Para Kant, não há continuidade entre pensar e ser; é preciso um terceiro termo entre a determinação e o que ela determina: a diferença transcendental. De modo mais detalhado, a determinação de nossa existência pressupõe a forma do sentido interno que é o tempo. Aqui cabe reproduzir as palavras de Gilles Deleuze:
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Com efeito Kant explica que o ‘moi’ ele mesmo está no tempo, e por isso não pára de se transformar: é um moi passivo, ou antes receptivo, que experimenta mudanças no tempo. Mas por outro lado o ‘je’ é um ato que não cessa de operar uma síntese do tempo e do que se passa no tempo, distribuindo, a cada instante, o presente, o passado e o futuro. O ‘je’ e o ‘moi’ são, pois, separados pela linha do tempo que os relaciona um ao outro, mas sob a condição de uma diferença fundamental7 .
Em suma, o eu transcendental se distingue do eu fenomenal e quem os distingue no interior do sujeito é o tempo. O eu como sujeito pensante conhece o eu como objeto pensado ou fenomenal. Nas palavras de Deleuze, como já observamos, o sujeito afeta a si mesmo, o je (eu transcendental) afeta o moi (eu fenomenal) pela forma do tempo. O tempo é a diferença transcendental que estabelece uma fissura entre o je e o moi. O paradoxo do tempo é que o eu (sujeito transcendental) só pode representar a si mesmo como sendo um outro (o eu fenomenal). Vejamos em que termos Deleuze expõe tais argumentos:
Assim o tempo passa ao interior do sujeito para distinguir nele o moi e o je. É a forma sob a qual o je afeta o moi, a maneira pela qual o espírito afeta a si mesmo. É nesse sentido que o tempo como forma imutável, que não podia mais ser definido pela simples sucessão, aparece como a forma da interioridade (sentido íntimo), enquanto o espaço, que não podia ser definido pela coexistência, aparece por seu lado como forma da exterioridade: ‘Forma de interioridade’ não significa somente que o tempo nos é interior, mas que nossa interioridade não cessa de nos cindir a nós mesmos, de nos desdobrar: um desdobramento que não vai até o extremo, já que o tempo não tem fim. Uma vertigem, uma oscilação que constitui o tempo8 .
Dir-se-á que assim como a identidade do “eu”, na filosofia do cogito, tinha como garantia a unidade do próprio Deus, Descartes confiava também o tempo a Deus. Por conseguinte, a morte especulativa de Deus não faz desaparecer a identidade do “eu”, mas desencadeia uma cisão (fissura), o “eu” foi cindido pela forma vazia do tempo. Eis a descoberta do transcendental.
Com certeza, a forma do “eu” kantiano não nos serve como modelo teórico na medida em que, através da identidade sintética (sem falar da moralidade da razão prática resgatando Deus e o Mundo), acaba por restaurar a finitude pessoal. Sabemos que, para Kant, o senso comum funda a identidade do “eu” e do objeto, garantindo o acordo de nossas faculdades. Aliás, esta é a face mais conhecida do filósofo de Königsberg, uma filosofia preenchida por distribuições sedentárias e identidades fixas. De qualquer modo, a obra de Kant, para além de seu puritanismo, é fascinante. Ele nos mostra que no bordo da fissura silenciosa do “eu” nasce o pensamento. Kant introduz na filosofia a forma vazia do tempo e abre o Ser à diferença9.
A partir de Kant encontramos uma nova intensidade para a arte (literatura, escultura, pintura ...). Descobrimos que o pensamento se efetua arriscando sua identidade ao percorrer a fissura do “eu” na sua amplitude. Talvez o próprio Kant não tenha percebido que isso já estava implícito na descoberta do transcendental.
Assim sendo, a literatura ganha, também, outras condições de dizer e ver que podemos expressar numa pergunta retórica: não seria a obra de Clarice Lispector, que faz advir o sentido pela proximidade do não-sentido, um percurso pela fissura? E por que não citar o exemplo clássico de Gilles Deleuze10: o mergulho esquizofrênico de Artaud na sua língua agramatical.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés, São Paulo: Cultrix, s.d.
------. O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeiras. São Paulo: Brasiliense, 1988.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1982.
------. A dobra; Leibniz e o Barroco. Luiz B.L. Orlandi, São Paulo: Papirus, 1991.
FOUCAULT, Michel. Ariana enforcou-se. In: --- Michel Foucault: uma analítica da experiência. Trad. Bárbara Pelicano Soeiro. Lisboa: Cosmos, 1993.
PESSOA, Fernando. Obra poética e em prosa. (introdução, organização e notas O. Pereira da Costa), Tomo II. Porto: Lelo e Irmão, 1986.
Mário Bruno
mariobrunouerj@yahoo.com.br
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero7/mario.htm
Número 7 (2006) - ISSN 1981-870X