Primeiros Ensaios
O homem inclassificável (e outras imperfeições):
a dissolvição do sujeito contemporâneo
No hibridismo LITERATURA-CINEMA-FOTOGRAFIA
André Carneiro Ramos
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ )
andremacartney@hotmail.com
Resumo:
Tentaremos refletir a condição nossa de “não-sujeitos”, desaparecidos em meio a signos que nos forçam a uma solidão real-ficcional. E a literatura persiste transmutando-se, qual encontro “afetivo” e indagador, “desmanchando-se no ar”: “Bolor”, de Augusto Abelaira, referenciaria tal abismo num viés catártico que ampara e extermina. E pelo cinema ou pela fotografia, tal processo igualmente se dissiparia, conjurando-se com a literatura. Feito matéria híbrida.
Palavras-chave: Literatura Portuguesa, Augusto Abelaira, Modernismo.
Resumen:
Intentaremos refletir sobre la condición nuestra de “no sujetos”, desaparecidos en medio a los signos que nos forzan a una sola real ficcional. Y la literatura persiste transmutandose, cual encuentro “afectivo” y indagador, “disolvendose en el aire”: “Bolor”, de Augusto Abelaria, referenciaria tal abismo en un bies catártico que ampara y elimina.Y por el cine o por la fotografía, tal proceso igualmente se disiparía, conjugandose con la literatura. Hecho materia híbrida.
Palabras clave: Literatura Portuguesa, Augusto Abelaira, Modernismo.
A palavra ‘bolor’, segundo dicionários, refere-se gradualmente a um estado de mofo, decadência, decomposição. Logo, conclui-se pela semântica do termo a evidência de uma idéia de ‘dissolvição’, ou seja, algo semelhante à anulação, extinção e desaparecimento da matéria, ainda mais pelo caráter biológico que o vocábulo vem a denotar. Junto a isso, um preceito de finitude acabaria por acompanhar tal definição, instituindo elementos configuradores de uma visão acerca do sujeito contemporâneo na medida em que a realidade, perfazendo-se na condição de fenômeno imagético visceralmente ‘real’, funcionaria como cenário para todo um processo de apagamento do homem, que feito “o bolor nas paredes de um quarto deserto”, deixar-se-ia vencer, imerso em imagens que a modernidade passaria a lhe apresentar, sob a forma de mídia e multimídia ‘universal’.
O estigma de tal brutalismo acabaria por afligir mais ainda aspectos ontológicos, epistemológicos e formais desse ‘ser-ausente’, que em suas crises e cruzes acabaria por se construir isolando-se, escondendo-se, inclusive de si mesmo, em uma individualidade incondicional e geradora da ruína de suas idiossincrasias. Vestígios de uma (pós)-modernidade que esse vórtice problemático seguiria traduzindo, pois, ao se efetivar como “não-sujeito” (Lucchesi, 1997), sua identidade confusa se esfacelaria, bem como
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a capacidade de valoração das coisas e dos fatos que o cercam. Essa imprópria realidade (uma pseudo-realidade?) tornar-se-ia cada vez mais um obstáculo, absorvida pela linguagem em sua face mais ferina, justamente a que sustenta a idéia de Poder. Desse modo, acreditamos que o dilema da representação midiática do real prosseguiria se instaurando num acontecer que circunda o não-sujeito – e o oblitera, já que o problema da imagem e o da não-representação da realidade, bem como sua parcela de culpa no imbróglio psicológico do homem, comporta inúmeras alegorias.
Sendo moderna ou pós-moderna, a idéia de ‘dissolvição’ do sujeito acabaria por entorpecer o real, que “desaparece sem deixar pistas” (Baudrillard, 2000) no instante em que se efetiva pelos meios midiáticos, sobretudo na configuração de um universo pseudo-real. Eis o paradoxo escamoteado pelo próprio conceito de realidade, onde nada mais existiria numa camada utópica. Trata-se da renitência do “simulacro”: ao deixar de pensar em si mesmo, de vislumbrar-se em possíveis e necessárias fantasias, o não-sujeito promoveria uma individual ‘des-referencialização’, frente a um mundo que não mais consegue tolerar. Assim, uma idéia de “simulação” se revelaria
(...) naquilo em que se opõe à representação. Esta parte do princípio de equivalência do signo e do real (mesmo se esta equivalência é utópica, é um axioma fundamental). A simulação parte, ao contrário da utopia, do princípio de equivalência, parte da negação radical do signo como valor, parte do signo como reversão e aniquilamento de toda a referência. (BAUDRILLARD, s/d., p. 13).
Partindo dessas verificações, tenho como objetivo refletir sobre o conceito de uma condição nossa de “não-sujeitos”, desaparecidos que estamos em meio a signos que nos obrigariam a vivenciar uma solidão antes real e ficcional. A literatura contemporânea proporcionaria desse modo uma espécie de encontro afetivo e indagador, aqui representado pelo romance “Bolor”, do escritor português Augusto Abelaira, cuja narrativa referenciaria tal abismo num viés catártico ao mesmo tempo aquiescente e instigador. Posteriormente, lançaremos um breve olhar por sobre os semelhantes efeitos ocorridos a partir da interação inflexível do homem contemporâneo para com o universo das imagens – aqui representadas pelo cinema e a fotografia –, em que tal processo de ‘dissolvição’ igualmente viria a se admitir.
Cabe perguntar que diferença há entre a ‘fragmentação’ – que se define pela redução em partes somente – e o conceito de um desaparecimento gradual do sujeito, frente às crises contemporâneas. O momento mais ‘fragmentado’ do homem seria aquele sobre o qual se recai a idéia de morte, mas sua nulidade não seria reiterada inúmeras vezes em vida, num perecer cruel de sua existência? A escapatória para este dilema quem sabe consiste exatamente na tentativa de se fazer coincidir a configuração da modernidade com um processo de enfrentamento que esse “não-sujeito” pode vir a ter consigo mesmo, ao ponto que, desse modo, sua existência definir-se-ia como autêntica e superior a qualquer juízo de imprópria realidade, tecida pelo mundo atual.
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Por assim dizer, vemos que uma mera ‘fragmentação’ não comportaria o juízo de extinção gradual e individual que a idéia de um ‘bolor’ generalizado mais profundamente reitera. Pretendemos indagar, nesse ínterim, uma possível alternância dessa poliédrica temática, sugerindo questões no âmbito de uma discussão contemporânea acerca da modernidade/pós-modernidade, haja vista que os pontos de interrogação investigados resvalam em ambos os conceitos: alia-se tanto às questões universais (modernidade) quanto a um tom vanguardista que estenda essa universalidade (pós-modernidade). E uma autoridade do moderno se instalaria a partir desta condição de ruptura. É o que acontece quando se pensa na fragilidade da existência, algo referendado no ‘descompasso’ realidade/representação, seja na literatura, por exemplo, como em qualquer outro âmbito da linguagem. Nesse ponto, Marshall Berman sugere que o modernismo
(...) contém suas próprias contradições e tensões dialéticas interiores; que determinadas formas de pensamento e visão modernistas podem solidificar-se em ortodoxias dogmáticas e tornar-se arcaicas; que outras formas de modernismo podem ficar submersas por gerações, sem chegar a serem suplantadas; e que as mais fundas feridas sociais e psíquicas da modernidade podem ser indefinidamente tampadas, sem chegar a cicatrizar de fato. (BERMAN, 2007, p. 203).
Tais contradições viriam a se instaurar, de modo bastante claro até, justamente naquilo que denominei como ‘descompasso’, sendo que sua gênese estaria ligada à destruição dos referenciais que nortearam a humanidade até bem recentemente. Faz-se interessante mencionar que a preocupação para com o registro do real (figurativismo) era o principal eixo das artes plásticas – da segunda metade do século XIX até o período posterior às duas grandes guerras do século XX –, e o que passou a ocorrer então foi uma valoração de todos os discursos, exacerbados que estavam com a desmistificação dos padrões limitados de representação da realidade, dado que resultou na crise ética e estética que conhecemos.
É neste circuito que imperaria o tal ‘descompasso’ dos meios de representação, pois que estariam fadados a uma sociedade reconhecida como globalizada e onde nenhum conhecimento individual deveria ser descartado, haja vista que um comportamento etnocêntrico que seja pode hoje em dia resultar em algo impensável: a exclusão de mercados consumidores. Desse modo, uma unanimidade capitalista, pós-moderna por sua essência universal, seguiria imperando e delimitando caracteres culturais diversos, ampliados justamente por uma multiplidade informativa que o poder da imagem segue disseminando, algo que enfatizaria ainda mais o consumismo do qual fazemos parte, mesmo sem desejarmos.
Curiosamente, o conceito de ‘hibridismo’ nas artes se refere a um diálogo modernamente estabelecido entre o artista e o mundo globalizado. Penso, para falar de modo que todos me entendam, na existência de uma possível relação híbrida existente entre a literatura contemporânea e a era das imagens. A liberdade de criação se torna hoje em dia refém dos processos de exposição e comercialização da arte, o
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que reitera a questão do ‘descompasso’ até aqui discutido. Nesse caso, a arte se tornaria muito menos confessional, intimista e subjetiva, no intuito de se efetivar mais e mais ainda experimental e transgressora de tais limites, hoje a nós convencionados. No meu entendimento, nesse diálogo para com o capitalismo o artista se entregaria em livres experimentações, muitas vezes intertextualizando com trabalhos do passado. Nessa feita, seu esforço é ‘híbrido’ por excelência, sendo que nessa liberdade de criação a citação ao passado é o que prevalece como traço sensitivo e vislumbrante de coisas que, obrigatoriamente em tempos de exaltação do real, tornam-se ocultas por imposição. Daí, nesse paradoxo, um manifesto é invocado contra o modernismo/pós-modernismo, que a essa altura seria retratado como declínio nessa crítica para com sua unanimidade ideológica.
Um exemplo seria o convívio incessante com os meios de representação mais populares, como os veículos de comunicação de massa, que serviria para confirmar a atual oposição ao que o cânone no início do século XX impregnava. As noções de realismo, realidade e real trabalhavam como norteadoras de uma representação pura e simples. Na Literatura Brasileira, a transgressão pregada pelos modernistas ilustra a tentativa de des-referencialização em relação às vanguardas européias, pregando-se a quebra de paradigmas ao se criarem outros. Essa negação da idéia mimética acabou se revertendo em uma nova tendência, espécie de supra-realismo, perpetrado pela indústria cultural vigente e se renovando em meio às visceralidades necessárias para a libertação artística. Como se comprova, o real, definitivamente, passaria hoje a não se efetivar apenas num mero efeito representativo. Por seu turno, Karl Erik afirma que
(...) estes efeitos sensuais alcançaram extremos de concretude, que nos permitem falar de um novo ‘realismo afetivo’. Nesta perspectiva é possível analisar a literatura e a arte contemporâneas como expressão de uma estratégia alternativa de representação, em que a tendência experimental modernista de criar formas heterogêneas e híbridas entre diversos regimes expressivos – literatura, arte, fotografia, cinema etc. – visa a ressaltar uma concretude afetiva do signo até o limite de sua representatividade. (SCHOLLHAMMER apud OLINTO, 2002, p. 78)
Na criação literária, essa “estratégia alternativa de representação” passaria a reproduzir uma nova percepção do real na medida em que a literatura e as artes – mergulhadas nas atuais tendências expressivas – renegam o realismo tão-somente histórico, isto no momento em que se coloca na ordem das coisas a preocupação para com uma nova referencialidade¹.
E nesta cena o hibridismo imperaria vigoroso, pois o contemporâneo, o “não-sujeito” desaparecido em meio a reclames performáticos, tende a se fechar na solidão dos encontros consigo mesmo e a realidade ficcional propagada pela mídia. Na falsidade corroborada pelo stablishment, a arte se mostra referencial (e real) no momento em que reverbera encontros “afetivos”, que se esgotariam feito ‘dissolvição’. Esse choque pode ser relacionado a uma espécie de cobiça pelos momentos que sonhamos vivenciar... E a arte, a realidade e a ficção empurrariam o homem moderno para esta nulidade.
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Dicotomicamente, essa mesma arte pode vir a amparar e a exterminar esse anti-herói, já que tal idéia integra o prazer à dor e a compaixão ao temor. De acordo com Hal Foster, podemos refletir então sobre
(...) uma mudança em relação à conceituação tradicional do real, do “real entendido como efeito de representação ao real entendido como um evento de trauma” (Foster, 1994: 147). Desta maneira, ele percebe, nas artes e na cultura contemporâneas, uma manifestação da modernidade, no seu extremo, como uma experiência traumática da história ou como a emergência de uma verdadeira “cultura da ferida” (Seltzer, 1996). (Idem, p. 81)
Este ‘sangramento’ privilegiaria um desconhecer dos mitos pretéritos, cujos efeitos catárticos se ‘dissolveriam’ do mesmo modo que o homem, em detrimento da mencionada supra-realidade. E o trágico, nesse caso, passaria a ser vendido feito mercadoria. Não obstante, o real, sendo mais calamitoso que a ficção, tornar-se-ia perceptível no despertar dos temores contemporâneos, e seguiria, sem abalar o efeito da catarse, suscitando comiserações no sujeito-observador...
II.
Podemos pensar nesse ‘caos moderno’ como tendencioso a se transformar num questionamento também, onde certas ‘verdades’ poderiam até mesmo ser invalidadas. As metanarrativas, por exemplo, já amplamente criticadas por Lyotard, continuariam a se revigorar esterilizantes hoje em dia, propagadoras que são das chamadas ideologias universais. No entanto, são cada vez mais repudiadas justamente por isso, pelo simples fato de serem estruturas totalizadoras de um viés exclusivista e absolutista de uma pseudo-sociedade. Por isso a noção pós-moderna de ficção prezaria a expressão das emoções particulares, intersubjetivas, consagradas por imagens religiosas, mitológicas, poéticas... Uma evidência ‘afetiva’ e imediata do já referido ‘sangramento’ que, entretanto, induz à reflexão.
Como que numa confirmação disso tudo, Augusto Abelaira assevera em seu romance Bolor (1968), pela voz da personagem de Humberto: “(...) Já não sei estar sozinho (eis talvez o segredo deste diário: a tentativa de encher os momentos em que sou obrigado a estar sozinho).” (ABELAIRA, 1999, p. 34).
O desejo aí percebido de se descobrir parte de um todo que se dilui, pode ser lido como uma tentativa do “não-sujeito” de seguir adiante, investigando a solidão e o seu efeito de retraimento para com o outro. Como se vê em Bolor, a personagem de Humberto se debruça por sobre um ‘eu’ ainda mais perdido exatamente por ‘ser’ moderno e portador de uma ‘ideologia’ que o induz à condição quase de pseudo-humanidade. Tudo isso ocorrendo num devir que, apesar do colapso referido, nunca cessa.
Em cada esguelha de solidão, os “não-sujeitos” de Bolor se desvendam a nós ao mesmo tempo em que esvaecem rumo ao perecer. É fato que esta insuperável certeza acabaria por isolá-los em meio a
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tantos fragmentos de anotações, pela forma de diário que o romance possui, mas creio que sendo nostálgicas e irônicas, ou até mesmo cruéis (pseudo-reais), as existências dos personagens passariam a se justificar vasta e misteriosamente na angústia da morte...
– Que é gostar um do outro? De resto, o meu caso talvez não seja inteiramente igual ao teu. Casaste uma vez, eu duas... E quem sabe se eu não teria medo de envelhecer sozinho? Não é isso... Casei contigo para nascer de novo. Mas qualquer coisa fracassou e não sei onde está a causa. A culpa não é tua, não é minha. Ou é minha. Porque desejava eu nascer de novo? Não me sentia satisfeito. Ouve: sabes, o meu primeiro casamento foi uma catástrofe. Não, não interessa... Deixa-me repetir: casei contigo porque não estava satisfeito com a minha vida e pensava poder renová-la, poder renovar-me. Ou renovar o tempo, voltar ao dia da criação. São muitos os povos primitivos que fogem uma vez por ano ao viver quotidiano para voltarem ao tempo da criação. Nós, civilizados, sabemos somente caminhar a direito, isto é, envelhecer.
Ela interrompeu-me:
- Desejas nascer de novo ou desejas morrer? –
Sorria, brincava sem brincar, nítida e azul no fundo esfumado da sala. – Porque queres morrer? (ABELAIRA, 1999, p. 91-2)
Constatando que a idéia da morte habita o âmago do Ser desde o início de tudo, com ares de coisa inabalável, o triângulo Humberto-Maria dos Remédios-Aleixo reitera um dado que se torna sucessivamente mais e mais ‘real’, a partir de suas descobertas: o perecer é a nulidade.
Essa verificação sintetiza o vazio perante os mistérios que o homem institui por intermédio de sua existência. Traição, dificuldades de relacionamento, sensação de marginalidade, impotência frente aos desmandos político-sociais... A solução encontrada por Abelaira para esse Tudo, essa ordem problemática contemporânea, feito uma religião que a abrandasse, acaba se firmando como fato ficcional, registrado em diário – e a essa altura, diga-se de passagem, espécie de rascunho de uma realidade procurada:
– Nós que depois de mortos nos temos revelado tão egoístas... Acreditas que em vida tivéssemos sido bons, tivéssemos merecido este paraíso? Tão egoístas, tão indiferentes ao mundo, tão interessados somente no que mais de perto nos toca...
– Ora, não compreendes? Chama-se a isso um mistério e sempre assim foi: resolvem-se os mistérios com um novo mistério.
– Mortos e no paraíso... Ah, essa religião dispensa-nos dos problemas de consciência: se a minha mulher-a-dias sofre, é porque na outra vida...? – disse ela a rir inserindo uma lã amarela (o amarelo é a cor da ironia) no nosso tapete, longo de muitos quilômetros.
Com a farpa da minha agulha, roubei-lhe a lã amarela:
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– Decerto. É uma religião... (Idem, p. 59)
Sob a forma de metonímias do mundo moderno, a concorrência entre os conceitos de pseudo-imagem e alter-referência desabrocha nos personagens Humberto, Maria dos Remédios e Aleixo, que se misturam e esfacelam-se por completo perante a tensão percebida neste quebra-cabeça textual. O diário passa a assemelhar-se à condição de ‘nódoa’, num registro que tende a desaparecer em meio aos fracassos pessoais dos personagens e suas contradições. E seria a partir dessa não-simetria individualidade-relacionamento que o leitor passaria a se integrar à obra, numa espécie de auto-aceitação, identificando-se com os descaminhos dos personagens. Pela escrita do diário transmutado em romance, surge-nos a noção de que, para nos descobrirmos, abrirmo-nos às ressonâncias do passado, torna-se necessária a devastação que o ato da escritura e da leitura insanamente provoca, promovendo nossa introspecção na totalidade do tempo, bem como no rastro de uma descoberta: a escritura e a leitura não nos pacificariam apenas, mas, sim, tornar-nos-iam cientes de uma responsabilidade para com o mundo.
E a cada passagem em que a escritura se firma como um ato de devastação, nota-se que Humberto/Maria dos Remédios/Aleixo, na procura de suas ‘verdades’ por meio da palavra, tentam compreender o cerne de cada um, na divisa entre pensamento e verbo, essência misteriosa obrigada a coexistir, promovendo ‘dissolvições’.
Trata-se Bolor de um exemplo especulativo da existência (re)criada pela literatura, espelho ficcional/real de uma falsa totalidade que se revela nesse universo. O ‘real’ seria hoje uma espécie de algoz, já que para muitos a concepção da morte é algo dificílimo de ser examinado, ainda mais pelo último gole do pensamento sempre se reverter em horror, pois que não existe qualquer abstração que possa idealizar o que venha a ser o tal Mistério. De acordo com Blanchot, é numa espécie de antemanhã da existência que o nosso direito a ela se concretiza:
O Sagrado é o dia: não o dia opondo-se à noite, nem a luz resplandecendo de cima, nem a chama que Empédocles vai buscar embaixo. É o dia, mas anterior ao dia e sempre anterior a si mesmo, é um antedia, uma claridade de antes da claridade e da qual somos os mais próximos, quando percebemos o despertar, o longínquo infinitamente afastado do amanhecer, que é também o que nos é mais íntimo, mais interior do que qualquer interioridade. (BLANCHOT, 1997, p. 121)
É de um lugar-limite como esse que brotam certas angústias do homem. E a possibilidade de sua configuração no devir pode ser revelada aos olhos do ‘não-sujeito’ facilmente, mas a morte ainda se oculta numa realidade ulterior, quem sabe a única que lhe restará. Ao longo de Bolor, percebe-se o esforço que as personagens realizam, no intuito de obterem uma palavra-chave acerca desse Sagrado, em que cada um se transformará um dia.
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Voltando à questão da alteridade no romance, ao vasculhar sua relação com Maria dos Remédios, percebe-se que Humberto se abre para a personificação do outro, questionando sua atitude enquanto fenômeno meramente psicológico; um dos elementos que se configura a partir daí é a dúvida sobre o quão vencido acaba se tornando o (não)-sujeito que ama, contrariando a crueza finita da existência que, paradoxalmente, sendo pulsante, amadora e amante, extrapola-se em instintos, pensamentos, palavras e ações. Assim, a presença que se oculta por dentro de um ‘eu’ como o de Humberto (amador e amante) esvai-se em tal dúvida; porém, subsiste ao perecer, por meio de lembranças real-ficcionais, escritas em seu diário, que à sombra de pseudo-recordações adquire uma força peculiar na medida em que mais verdadeiramente for sentida na comunhão com a realidade, algo que não se esgota até mesmo sob a égide fracassada de um amor acabado, sequela, como se verifica no romance, de uma convivência em desamor.
De acordo com Homero, é imprescindível para o homem perder-se para se encontrar. E a título de garantia, a partir de um viés investigativo como o de Abelaira – elevado pela escrita a um tom quase que performático – a ‘dissolvição’ dos personagens passaria a ter uma justificativa, haja vista ser necessária para a compreensão das imperfeições humanas.
Viver, desabrochar, permanecer, amar. A dor de cada um se oculta em meio a inúmeras máscaras, e essa ‘inclassificação’ pode ser verificada de modo particular nos personagens de Bolor, que, paradoxalmente, transformam-se no outro com um propósito de desvendamento. Nessa entrega, ocorrem artifícios de ‘dissolvição’, ‘fragmentação’, ‘transparência’, seja lá o que for. No entanto, nestes tempos de modernidade/pós-modernidade, nem o enfraquecimento da linguagem verbal (estrago causado pela deturpação da imagem), nem a ontologia instável dos escritores contemporâneos, nem o desaparecimento do sujeito, nem a ruína celebrada da representação mimética, muito menos o colapso das relações atuais, impedem a acirrada permanência da palavra enquanto signo em constante reinvenção.
III.
Obstinações híbridas que sobrevivem em meio a essa ‘desordem’, as palavras e as imagens acabariam, por destino, vinculando-se entre si. Desse modo, faz-se importante mencionar que Albert Camus afirmava “ser o romance uma filosofia posta em imagens”, idéia que nos permite agora delinear uma aproximação da literatura com outra importante linguagem, que desde o final do século XIX segue reinventando-se e arrebatando multidões, além de consagrar-se já na época de seu aparecimento como uma das maiores inovações artísticas do homem.
Proveniente da fotografia, tal gênero passaria a ser valorizado justamente no Modernismo: eis que surge o cinema, manifestação artística que ainda hoje consegue iludir o espectador, ou melhor, encantá-lo, fazendo-o esquecer das próprias agruras durante o seu contato com a sala escura. Prontamente, o homem deixou-se fascinar por este ‘jogo cinematográfico’. E desejou, mesmo que inconscientemente, aventurar-se nesse vislumbre e, para tanto, utilizando-se de um corpo que não era o seu, participando de uma
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realidade que também não era a sua. François Truffaut menciona em uma entrevista que, em se tratando da Sétima Arte, o essencial é
(...) emocionar o público, e a emoção nasce de como se conta a história, de como se justapõem as sequências. Portanto, tenho a impressão de ser um maestro, para quem um toque de trombeta corresponde a um close-up, e um plano ao longe sugere toda uma orquestra que toca em surdina; diante de belas paisagens, e utilizando cores e luzes, sou como um pintor. (TRUFFAUT, 2004, p. 333-4)
O espectador passaria, então, a fazer parte dessa revelação imagética, artística, outrora inimaginável. Entretanto, ainda não liberto dos modos tradicionais de narração – a oralidade e a escrita –, esse mesmo ser contemporâneo sentiu-se incapaz de usufruir plenamente da novidade, pois que sua atenção necessitava de preparo². Nesse ínterim, o escritor argentino Julio Cortazar afirmava que uma imagem era capaz de funcionar como meio de o homem suplantar sua percepção comum e cotidiana da vida. E o cinema, por se tratar de linguagem heterogênea e privilegiadora da concatenação de estruturas formadoras de um todo imagético – gestualidade, cenografia, diálogos, cromatismo, trilha sonora – conduziria o espectador rumo a esta percepção justo no momento em que se tornavam possíveis (e visíveis) algumas de suas ilusões: (...) a imagem – como toda cena visual olhada durante certo tempo – se vê, não apenas no tempo, mas à custa de uma exploração que raramente é inocente; é a integração dessa multiplicidade de fixações particulares sucessivas que faz o que chamamos de nossa visão da imagem. (AUMONT, 2000, p. 42).
Flores Partidas (Broken Flowers, 2005), de Jim Jarmusch, explora estas ilusões na medida em que a linguagem da realidade se transfigura com o auxílio da ‘realidade da linguagem’, forma híbrida com a qual os elementos textuais e imagéticos se mesclam evocando, inclusive, a questão lacaniana “do ver e do ser visto”.
No filme, a personagem Don Johnston é um ‘solteirão’ por escolha própria, que termina de modo abrupto mais um relacionamento. De repente, Don recebe uma misteriosa carta transmissora da seguinte revelação: ele possui um filho de 19 anos. Surpreso e ao mesmo tempo curioso, decide então viajar de volta ao passado em busca do filho desconhecido numa tentativa até mesmo de fugir ao marasmo em que se transformara sua vida.
Cabe ressaltar num outro pólo, que na fotografia, matriz do cinema e início da consagração imagética da contemporaneidade, efetiva-se mais uma correlação entre o processo ótico de reprodução da imagem (como captadora de um instante, fração perpetuada da realidade) com sua transmutação em som e movimento. Na visão apurada de Roland Barthes, uma forma instigante de se ‘ver’ o significante fotográfico e a sua evolução, enquanto o cinema seria a transformação do olhar em uma “câmara clara”, algo cuja percepção das imagens arregimentaria a sensibilidade física e emocional (juntamente com o
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processo químico e físico que lhe é pertinente) do observador como fenômeno contemplativo. Nesse caso, a sua idéia acerca do que ele próprio denomina de punctum é esclarecedora:
(...) Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete também à idéia de pontuação e em que as fotos de que falo são, de fato, como que pontuadas, às vezes até mesmo mosqueadas, com esses pontos sensíveis; essas marcas, essas feridas são precisamente pontos. A esse segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei então punctum; pois punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere). (BARTHES, 1984, p. 46)
Partindo dessa premissa, podemos improvisar um entendimento sobre o filme em questão: mesmo que não aconteça nada, que se estabeleça um marasmo e o devir possa reduzir-se a um efeito de nulidade que o enredo evoca, cria-se uma resistência, uma contra-ação, uma não-narrativa que, por se constituir desse modo, ocupa o espaço (fotográfico/cinematográfico, logo imagético) e o tempo do espectador, informando-lhe em tom de metalinguagem o quanto a personagem Don é um homem ‘dissolvido’, ‘fragmentado’, ‘transparente’ e ‘inclassificável’ em si mesmo e na vida. A idéia de punctum se constrói ao se observarem as pequenas coincidências cômicas que tornam seu caminho um tanto absurdo e destituído de resolução. É nessa altura que se defrontam os indícios que resvalam na desconstrução monológica incitada pela modernidade/pós-modernidade: um sujeito em trânsito à procura de si mesmo; casas padronizadas e pré-fabricadas, indícios de um sistema sócio-político-cultural castrador da liberdade do homem; ambientes excessivamente limpos na forma, porém grotescos no conteúdo; comportamentos frios como o contexto que os orienta; a sublimação das aparências; o tédio que se multiplica em várias máscaras, distribuídas e encaradas por Don em sua trilha-retorno para dentro do próprio universo...
Numa breve conclusão, podemos afirmar que as idéias de ampliação temática dessa ruína que extrapola as telas do cinema e vai de encontro a um ‘não-sujeito’ acabam sendo constatadas na dinâmica com que as linguagens literária, cinematográfica e fotográfica se mesclam. Assim sendo, a representação de uma realidade necessitaria ser capturada e percebida. Porém, seu enlace total é impossível. Seu perfil incondicional, como se constata, é impossível.
Todavia, por meio da arte e sua tentativa de esclarecimento é que esse homem ‘inclassificável’, ‘fragmentado’ em si e no mundo que o compõe, deve tentar se superar, encontrando nesta divina e clara recepção, ainda que longínqua, um esboço de representação de uma realidade mais próxima possível do verossímil, num algo que possa vir a norteá-lo rumo ao entendimento de suas próprias ‘dissolvições’.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ABELAIRA, Augusto. Bolor. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999.
BARTHES, Roland. Câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BAUDRILLARD, Jean. Significação da publicidade. In: THEODOR, Adorno et ali. Teoria da cultura de massa. Tradução: Luiz Costa Lima. 6. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2000.
___________________. Simulacros e simulação. São Paulo: Antropos, s/d.
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2007.
FLORES PARTIDAS (Broken Flowers). EUA/França, 2005, 106 min. Diretor:Jim Jarmusch. Com Bill Murray, Sharon Stone, Julie Delpy, Tilda Swinton, Jeffrey Wright, Jessica Lange.
FONSECA, Rubem. Diário de um fescenino. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SCHOLLHAMMER apud OLINTO, Heidrun Krieger, SCHOLLHAMMER, Karl Erik (org.). Artigo À procura de um novo realismo: Teses sobre a realidade em texto hoje. In: Literatura e mídia. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2002.
TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: entrevistas, edição definitiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
AUMONT, Jaques apud GARCIA, Wilton. Introdução ao cinema intertextual de Peter Greenaway. São Paulo: Annablume Editora, 2000.
¹Tal ‘alter-referência’ afluiria sob uma forma de transgressão da linguagem, que se valeria de um efeito “afetivo” nas palavras de Karl Erik. Surge, então, o aspecto do signo calcado na idéia de ‘desempenho’; a imagem, num efeito de intervenção-apropriação, vem a adquirir uma vigorosa fortaleza pouco então percebida, talvez um resquício do concretismo das décadas de 50/60/70; nesse comportamento pictórico, a palavra/imagem existiria a propagar-se.
²Curiosamente, nos primórdios do cinema, costumava-se manter ao lado da tela, durante toda a exibição, a figura de um homem cuja função era explicar a história mostrada/contada nas telas. Isso nos permite constatar a influência da Sétima Arte como aparelho transformador, apresentando o homem a uma revolução técnica e artística inovadora.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero10/andre.html
Número 10 (2008) - ISSN 1981-870X