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Imagens do feminino em Florbela Espanca
Cristina Melo
(Universidade de Coimbra)
cris@ci.uc.pt
Resumo:
Num momento em que os estudos sobre a representação da imagem feminina na literatura escrita em língua portuguesa têm vindo a adquirir cada vez maior consistência teórica, a poesia de Florbela Espanca assume um lugar central na investigação.
Inicialmente marcada por uma cosmovisão negativa, que se estrutura a partir de uma ambiência simbolista e decadentista, Florbela Espanca intenta um processo de superação do mal de viver, vindo a conhecer mesmo a pulsão libertadora, tão característica do vitalismo neo-romântico. Neste contexto evolutivo se justifica reflectir sobre o processo de constituição textual do sujeito feminino, a partir de movimentos de recusa da condição de objecto e de afirmação da condição de protagonista activo.
Palavras-chave: Florbela Espanca; poesia neo-romântica; sujeito feminino
Résumé:
A une époque où les études sur la représentation de l'image féminine dans la littérature écrite en langue portugaise acquièrent une consistance théorique de plus en plus grande, la poésie de Florbela Espanca prend un rôle central dans les études littéraires de nos jours.
Au début marquée par une cosmovision négative, qui se structure à partir d'une ambiance symboliste et décadentiste, Florbela Espanca intente un processus pour surpasser le mal de vivre qui lui fait connaître la pulsion libératrice, si caractéristique de la vitalité néo-romantique. Dans ce contexte évolutif, il convient de réfléchir sur le processus de constitution textuel du sujet féminin, à partir de mouvements de renonciation à la condition d'objet et d'affirmation de la condition de protagoniste actif.
Mots-clés: Florbela Espanca, poésie néo-romantique, sujet féminin.
De acordo com estudos sobre a evolução poética de Florbela Espanca, a sua trajectória é marcada por uma cosmovisão negativa – o mal de viver - que se estrutura a partir de uma ambiência simbolista e decadentista. Um assomo de superação dessa pulsão negativa pode ser observado em poemas em que se entrevê uma pulsão libertadora, característica do vitalismo neo-romântico.
Um dos poemas mais significativos na expressão da possibilidade de superação do mal de viver é o soneto IV de Charneca em Flor : “És tu! És tu! sempre vieste, enfim! / Oiço de novo o riso dos teus passos! / És tu que eu vejo a estender-me os braços / Que
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Deus criou pra me abraçar a mim! // Tudo é divino e santo visto assim ... / Foram –se os desalentos, os cansaços ... / O mundo não é mundo: é um jardim! / Um céu aberto: longes, os espaços! // Prende-me toda, Amor, prende-me bem! / Que vês tu em redor? Não há ninguém! / A terra ? – Um astro morto que flutua ... // Tudo o que é chama a arder, tudo o que sente / Tudo o que é vida e vibra eternamente / É tu seres meu, Amor, e eu ser tua!” (ESPANCA, 1997, p. 315).
O que permite a afirmação positiva da vida é, em primeiro lugar, a chegada do amado, qual acontecimento epifânico, como nesta afirmação jubilosa, com que se inicia o poema “És tu! És tu! Sempre vieste, enfim!”. A partir desse acontecimento, o sujeito experimenta a comunhão entre corpo e alma e ainda com o cosmos. Mas note-se que a comunhão só é possível pela mediação de Deus, que, na sua condição de criador do Homem e de todas as coisas, permite o júbilo amoroso. É ao conhecer o poder de Deus que se pode dizer “Tudo é divino e santo visto assim…”. Precisamente nessa percepção do divino reside o sentimento vitalista, tipicamente neo-romântico, aqui expresso pelo viés da religiosidade.
Mas até conhecer esse impulso libertador, Florbela percorre uma trajectória poética marcada pela dor, da qual faz um culto literário. Esta é a problemática central da sua escrita. Como escreve Cecília Barreira, “é porque se é poeta que se alcança a dor. A poesia é uma base de definição de sofrimento”. (BARREIRA, 1992)
Pela forma titânica como Florbela elaborou esta dimensão essencial da sua personalidade – a vocação para a dor -, a mesma volveu-se em mito literário.
O culto do amor abrange tudo o que existe e reporta-se também ao transcendente e ao infinito. A gama de estados de espírito (significativa de uma pronunciada instabilidade) compreende a euforia, a serenidade, a apatia, a dor e podem ser notados tanto num diálogo intimista, como em poemas com uma referencialidade externa marcada pela presença de elementos da natureza.
Tem-se dito que o sujeito feminino na poesia de Florbela recusa a condição de objecto e afirma sua condição de protagonista activo. Talvez a manifestação mais evidente desse processo de afirmação dos poderes do sujeito feminino resida na tomada de consciência do corpo, que, na sua sensualidade e erotismo, afirma a força de Eros.
Sobre a função estruturante do elemento feminino na poesia de Florbela, escreveu
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António Ferro: “este processo de conscientização textual da feminilidade constitui, a nosso ver, o fio condutor da auto-formulação do eu lírico de Florbela. E, enquanto agente de criação poética, as suas coordenadas definem-se, em grande medida, através do comprometimento intertextual em que a sua obra repetidamente se coloca” (apud RECTOR, 1999, p. 192).
Com efeito, desde as primícias poéticas, observa-se em Florbela uma consciência da condição do sujeito feminino. Tal consciência mostra-se inicialmente tingida de uma aura simbolista, marcada pela presença do vago, do mistério e do sonho.
Nos versos “Tu vinhas ver-me misteriosamente / A horas mortas quando a terra é monge” observa-se a atracção pelo mistério e pelas horas crepusculares. Esta indefinição há-de contaminar a percepção dos lugares dos amantes no envolvimento amoroso: “Li um dia, não sei onde, / Que em todos os namorados / Uns amam muito, e os outros / Contentam-se em ser amados. // Neste mistério encantado… / Digo para mim: de nós dois / Quem ama e quem é amado? ...” (ESPANCA, 1997, p.66). A impossibilidade de compreender quem mais investe no amor não é um sinal negativo, já que este mistério constitui motivo de encantamento.
A força da imaginação sonhadora leva a poetisa a reclamar-se da condição de “Princesa encantada da quimera” (ESPANCA, 1997, p. 226).
A ambiência simbolista fica ainda patente na convocação textual de elementos da natureza caracterizados pelo estatismo, que, por sua vez, reflectem o estatismo do sujeito, sua tendência para se fixar na tristeza e no tédio – aspecto que é por demais evidente num verso que evoca outro de Camilo Pessanha: “Caem as folhas mortas sobre o lago” (ESPANCA, 1997, p. 283).
A complexidade do imaginário poético de Florbela, tanto na sua dimensão egótica, como dramática, apta a encenar jogos e figuras, foi analisada por Maria das Graças Martins nos seguintes termos: “Do simbolismo, Florbela Espanca, herdou a revivescência do gosto romântico pelo vago, pelo nebuloso, pelo impossível; o amor pela paisagem melancólica, outonal ou crepuscular dominada pelas sombras; a visão pessimista da existência que se alicerça no tédio e na desilusão; o alheamento em relação ao mundo real que a rodeia e em cujos valores se não encontra; o egotismo aristocrático da Princesa do Desalento que se desdobra na análise de experiências sensoriais e afectivas; a preferência pelo poder
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sugestivo de estados de alma abstraídos do contexto biográfico que lhes serve de cenário”. (MARTINS, 1990)
Incapaz de se manter fiel à experiência da vitalidade do amor, e embora essa experiência possa ter assomos significativos, Florbela não resiste a uma figuração das possibilidades do amor, quer em instantes de desabrida força, quer em momentos de pura contenção, ou ocultação. No processo de camuflagem, o amado esconde o amor (“Por me fugires, sim, talvez me queiras mais” (ESPANCA, 1997, p. 154), é frio, distante; o seu olhar é gélido e mente (ESPANCA, 1997, p. 250); “Mesmo a beijar-me a tua boca mente...“ (ESPANCA, 1997, p. 347); sob a aparência falsa de um olhar doce esconde-se um “peito de granito” (ESPANCA, 1997, p. 141).
Em outras ocorrências é o próprio sujeito feminino que pratica o disfarce: “No gelo da indiferença ocultam-se as paixões / (....) Assim quando eu te falo alegre, friamente / Sem um tremor de voz, mal tu sabes que estranha / Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!” (ESPANCA, 1997, p. 103).
Com frequência se afirma a impossibilidade da realização carnal do amor, como patenteia esta quadra: “Há beijos na tua boca / Pode colhê-los quem quer. / Só eu não posso. Vê tu / Que desgraçada mulher!” (ESPANCA, 1997, p. 80).
Como se vê, a poetização da proximidade física fixa-se mais no plano da imaginação do que no da realização: “Que a boca da mulher é sempre linda / Se dentro guarda um verso que não diz!” (ESPANCA, 1997, p. 232).
Uma outra manifestação do jogo amoroso é o exercício da vassalagem. Como nota Maria Lúcia Dal Farra, tal comportamento lembra a postura do sujeito masculino nas cantigas de amor, operando-se no entanto uma inversão de papéis. Num gesto de sacrifício, o sujeito lança apelos ao amado para o encontro sensual e erótico: “olha para mim amor”; “Vem para mim amor… Ai não desprezes / A minha adoração de escrava louca” (ESPANCA, 1997, p. 110).
Definindo-se a mulher como “Um ente de paixão e sacrifício, / De sofrimentos cheio (…)” (ESPANCA, 1997, p. 90), os estados psicológicos são objecto não só de uma afirmação como também de uma demonstração: “Oh mulher! Como és fraca e como és forte! / “Como sabes ser doce e desgraçada” (ESPANCA, 1997, p. 91).
Considerando a semântica do verbo saber, fica claro que a mulher utiliza o seu
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conhecimento com o propósito de se revelar doce na infelicidade.
Na figuração do amor, os pólos que se estruturam de modo antinómico são o da suavidade e o da ardência. A expressão mais realizada da suavidade é conseguida pela imaginação de um amor rústico, idílico e feliz, como no poema “Rústica”: “Eu q´ria ser camponesa; / Ir esperar à tardinha / Quando é doce a Natureza / No silêncio da devesa, / E só voltar à noitinha…” (ESPANCA, 1997, p. 159). Na mesma tónica de suavidade, os lábios do amado são de cetim (p. 74) e sua voz “gorjeio de ave” (ESPANCA, 1997, p. 199).
No movimento oscilante dos estados de alma, o sujeito pode ficar ferido pelo fulgor dos “olhos de oiro” (ESPANCA, 1997, p. 313). O seu olhar queima e por isso não o consegue encarar: “Abaixo sempre os meus olhos / Quando encontro o teu olhar; / De ver o sol de frente / Ninguém se pode gabar!” (ESPANCA, 1997, p. 101).
Também no corpo da amada se podem notar sinais do amor que arde e queima. Os seus olhos, de tanto sofrer, trazem olheiras roxas e a boca é cor de sangue: “Deus fez os nossos braços pra prender, / E a boca fez-se sangue pra beijar!” (ESPANCA, 1997, p. 260).
A explicação possível para a oscilação da sensualidade entre suavidade e ardência pode encontrar-se, no que diz respeito à primeira categoria semântica, ao pendor da alma portuguesa para a tristeza, a melancolia, pendor cuja expressão mais forte é a saudade.
Quanto à segunda categoria - a ardência amorosa -, a sua presença é frequentemente marcada pela negatividade, o que ocorre, aliás, na poesia portuguesa, do lirismo trovadoresco à poesia de Natália Correia. De acordo com essa tradição, talvez se possa compreender a ardência erótica que atravessa a poesia de Florbela: ela resultaria mais frequentemente da não realização do desejo.
Mas atentando na fecundidade do imaginário decadentista na formação da sensibilidade poética de Florbela, encontramos também uma hipótese de compreensão da erótica amorosa, sugerida pelo comprazimento em sentimentos eróticos caracterizados pela incompletude. Nesse sentido, a exploração de uma erótica marcada pela falha, encaixar-se-ia numa lógica decadentista.
De acordo com a natureza melancólica de Florbela, os sentimentos de tristeza e dor constituem um seu estado natural. Deles faz o seu castelo poético. Por isso, a saudade que a toca não deixa de conjugar tristeza, beleza e prazer: "Que até adoro a saudade / Quando
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por ti é causada" (ESPANCA, 1997, p. 76). No elogio ao sentimento que define a alma portuguesa, reitera a propensão para o sonho e a tristeza - "Nossa alma de sonho e de tristeza" (ESPANCA, 1997, p. 114) e destaca o sentido por vezes divino da saudade: "Como nas folhas tristes dum missal / Se sente Deus! E tu és Deus, saudade!..." (ESPANCA, 1997, p. 114).
Sendo António Nobre o poeta emblemático no tratamento desse tema, é com ele que mais se identifica, exprimindo um sentimento deveras materno: "Amo-te como não te quis nunca ninguém / Como se eu fosse a tua própria mãe / Beijando-te já frio no fundo do caixão" (ESPANCA, 1997, p. 124). Comparando o seu drama com o de António Nobre, sublinha a incapacidade de o expressar como conseguira o seu émulo espiritual e literário, uma vez que, por mais que fale da sua dor, sente que a mesma permanece calada: “Os males d’Anto toda a gente os sabe! / Os meus ... ninguém... A minha Dor não cabe / Nos cem milhões de versos que eu fizera!...”(ESPANCA, 1997, p. 211).
A elaboração da imagem do amor não realizado em Florbela constitui uma das motivações para escrever. Com efeito, é porque não se alcança o amor que se é poeta. Ao não encontrar correspondência no amado, escreve que ele pode encontrar pela vida fora muito amor noutras mulheres mas que nunca encontrará, diz Florbela, “Amor assim como este amor que chora / Neste beijo de amor que são os meus versos!…” (ESPANCA, 1997, p. 148). Apesar do sofrimento causado pela não correspondência amorosa, a poetisa conclui sempre pelo amor, mesmo quando ele possa ser motivo de ódio. Só a morte (segundo alguns, voluntária) a livrou de uma vida de sofrimento.
Refira-se uma outra manifestação do amor em Florbela, associada ao culto do sofrimento. Em O Livro d’ele, surge uma significativa manifestação do serviço amoroso, agora implicando o suplício físico. “Toda a terra que pisas, eu q’ria, ajoelhada, / Beijar terna e humilde em lânguido fervor / Q’ria poisar fervente a boca apaixonada / Em cada passo teu, ó meu bendito amor! // De cada beijo meu, havia de nascer / Uma sangrenta flor! Ébria de luz, ardente!” (ESPANCA, 1997, p. 155).
No estertor do desespero, Florbela chama a figura do divino, não sendo capaz, no entanto, de encontrar o lenitivo desejado: “Busco a mortalha minha até no alto céu! / E nem a cruz para mim tem braços que m´estenda!” (ESPANCA, 1997, p. 123).
Do exposto, conclui-se que a vida pesa a Florbela, e por isso, a tendência para,
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imaginariamente, desejar a morte, torna-se uma obsessão, embora tenha pena de morrer tão nova: “É tão triste morrer na minha idade”; “sou tão nova!”. (ESPANCA, 1997)
Num estudo que é um texto clássico na bibliografia sobre a poesia de Florbela, e a propósito da multiplicidades de estados interiores vividos pela autora, escreveu José Régio: “Florbela viveu a fundo esses estados quer de depressão, quer de exaltação, quer de concentração em si mesma, quer de dispersão em tudo, que na sua poesia atingem tão vibrante expressão”. (RÉGIO, 1989)
Vejamos a expressão desses estados em outros poemas. O Livro de Mágoas abre com versos de Eugénio de Castro e de Verlaine. Do primeiro: “Procuremos somente a Beleza, que a vida / É um punhado infantil de areia ressequida, / Um som d´água ou de bronze e uma sombra que passa ...”. Do segundo: “Isolés dans l’amour ainsi qu’en bois noir, / Nos deux coeurs, exalant leur tendresse paisible, / Seront deux rossignols qui chantent dans le soir” (ESPANCA, 1997, p. 173).
Segundo José Carlos Seabra Pereira, as duas epígrafes compõem uma direcção de leitura do livro: a de Eugénio de Castro, “com suas marcas de pessimismo existencial e de esteticismo compensatório, projecta sobre a obra um intermitente matizar da continuada colocação sob o signo de Anto. Com efeito, no princípio do Livro de Mágoas,encontram-se sugestões de mitificação da figura de António Nobre, a partir da qual se torna clara a elaboração, no feminino, de uma imagem de poeta maldito. Florbela convida os desgraçados, os que são torturados pela dor a ler este livro porque só eles o podem compreender. “Este livro é de mágoas. Desgraçados / Que no mundo passais, chorai ao lê-lo! / Somente a vossa dor de Torturados / Pode, talvez, senti-lo ... e compreendê-lo…” (ESPANCA, 1997, p.174). As reticências deixam em dúvida se os destinatários convocados serão capazes de sentir e compreender esse livro.
Quanto à epígrafe de Verlaine, fica a sugestão de que o amor pode participar na motivação da forma de ser e de poetar de Florbela. No entanto, como anota José Carlos Seabra Pereira, essa sugestão só muito de longe fica confirmada na leitura do livro. Para Florbela, a poesia serve de lenitivo para a dor amorosa: “Sonho que um verso meu tem claridade / Para encher todo o mundo! E que deleita / Mesmo aqueles que morrem de saudade! / Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!” (ESPANCA, 1997, p. 175).
Não se reconhecendo nessa vida, imagina uma outra em que fora feliz – “Em que ri
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e cantei, em que era q’rida” (ESPANCA, 1997, p. 180). Numa subjectivação do mal que experimenta no presente, vem-lhe à memória a nostalgia de um passado dourado e irreal: “Andam em mim fantasmas, sombras, ais... / Coisas que eu sinto em mim, que eu sinto agora; / Névoas de dantes, dum longínquo outrora; / Castelos d´oiro em mundos irreais ...” (ESPANCA, 1997, p. 218). E novamente, no poema “A minha dor” surge a expressão do requinte no sofrimento, atitude tipicamente decadentista: “A minha Dor é um convento ideal / Cheio de claustros, sombras, arcarias, / Aonde a pedra em convulsões sombrias / Tem linhas dum requinte escultural (…) A minha Dor é um convento. Há lírios / Dum roxo macerado de martírios, / Tão belos como nunca os viu alguém!” (ESPANCA, 1997, p. 182).
Florbela assume-se incapaz de explicar o seu mal de viver: “Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!” (ESPANCA, 1997, p. 190). Em parte, esse mal fica a dever-se à impossibilidade de realização do amor, como já foi assinalado. Um dos seus queixumes é justamente o não ter conhecido o amor: “Sou velha e triste. Nunca o alvorecer / Dum riso são andou na minha boca!” (ESPANCA, 1997, p. 197). Compreende-se, assim, que a comunhão amorosa e o desfrute sensual não passem de uma idealização, já que as suas manifestações (beijos, abraços, olhares, carícias) ocorrem apenas no plano do sonho.
A despeito de não ter conhecido o amor, de amor ser sinónimo de dor, o sofrimento continua a ser coroado de uma aura de beleza e prazer. Na dor encontra Florbela motivos de requinte e encanto, como quem experimentasse o sumo prazer ao acariciar uma ferida. No entanto, a tortura a levará a explicitar piedade de si própria. Imagina-se velhinha e diz que os outros, se a virem bem, também terão pena dela.
No que diz respeito ao espaço social representado nessa poesia, o universo que se desenha é o de um Portugal rural e tradicionalista; as atmosferas humanas sugeridas caracterizam-se pela religiosidade, pela contenção e harmonia. As tardes de novena, as doces rezas ao entardecer, o fim do dia nos povoados, os sinos das igrejas sugerem uma atmosfera passadista, para cuja configuração contribui a imagem das noras nos quintais, das mulheres à janela e das raparigas no campo. Como se depreende, esses elementos compõem um quadro impressionista à Cesário Verde.
Nos poemas com uma explícita referencialidade externa (e considerando o conjunto da obra poética), os motivos mais significativos são a natureza úbere e as atmosferas
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humanas, marcadas pela religiosidade: “Tardinha ... Ave Maria, Mãe de Deus / E reza a voz dos sinos e das noras ... / O sol que morre tem clarões de auroras, / Águia que bate as asas pelo céu” (ESPANCA, 1997, p. 259).
É curioso notar o processo de elaboração dos sentimentos, marcado sistematicamente pela transformação de estados. Assim, a experimentação de sentimentos bucólicos, numa atmosfera crepuscular, dá lugar à opressão, logo conduzida ao desejo fogoso patente em “beijos rubros e ardentes”, “beijos languescentes” em “noites de volúpia, noites quentes” (ESPANCA, 1997, p. 253).
Que imagem Florbela elabora de si própria? A de uma mulher sensível, fantasista, sonhadora, dorida, amargurada, desprezada, torturada por fantasmas e sombras: “Minha alma é a Princesa do Desalento / Como um Poeta lhe chamou, um dia. / É revoltada, trágica, sombria, / Como galopes infernais de vento!” (ESPANCA, 1997, p. 255).
O Livro de Soror Saudade prolonga os temas do Livro de Mágoas. Um trecho da epígrafe de Maeterlinck dá o mote ao livro: “Il n’a pas à se plaindre celui qui attend / Un sentiment plus ardent et plus généreux. / Il n’a pas à se plaindre celui qui attend / Le désir d’un peu plus de bonheur, d’un / Peu plus de beauté, d’un peu plus de justice” (ESPANCA, 1997, p. 223). O império da tortura continua, pois aquele que espera um sentimento mais ardente e mais generoso experimentará os espinhos da dor.
Florbela explicita a sua concepção depressiva do amor ao afirmar que não sabe compor outro amor “Mais santamente triste, mais perfeito” (ESPANCA, 1997, p. 225) e sente orgulho na solidão: “Sinto que valho mais, mais pobrezinha: / Que também é orgulho ser sozinha, / E também é nobreza não ter nada” (ESPANCA, 1997, p. 231). Do mesmo modo, não lamenta a dor que a anima e aos seus versos: “Tu invejas a dor que vive em mim! / E quanta vez dirás a soluçar: / ‘Ah, quem me dera, Irmã, amar assim!...’” (ESPANCA, 1997, p. 233). O comprazimento na dor a levará a fazer da ansiedade o seu reino - “meus Reinos de Ansiedade” (ESPANCA, 1997, p. 266) -, imaginando-se castelã da tristeza. Na plenitude do conhecimento sobre a vida reflecte sobre a efemeridade do amor: “E este amor que assim me vai fugindo / É igual a outro amor que vai surgindo, / Que há-de partir também ... nem eu sei quando ...” (ESPANCA, 1997, p. 237). Noutro poema, sublinha a natureza perecível do amor: “É vão o amor, o ódio, ou o desdém; / Inútil o desejo e o sentimento / Lançar um grande amor aos pés d´alguém / O mesmo é que lançar
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flores ao vento” (ESPANCA, 1997, p. 252).
A lucidez não impede a sua natural tendência para idealizar um amor maior, numa desmesurada ânsia de viver. Florbela mantém-se fiel ao caminho escolhido e, mesmo na dor, experimenta um assomo de libertação, quando, em mais um gesto de desprendimento da razão, afirma: “Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos / Como um divino vinho de Falerno! (....) Que importa o mundo e as ilusões defuntas?... / Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?... / O mundo, Amor? ... / As nossas bocas juntas” (ESPANCA, 1997, p. 238).
Tem-se dito que a incapacidade de atingir a plenitude, nas múltiplas manifestações do sentimento amoroso, traduz a ânsia de absoluto. Creio que poucos poetas como Florbela conseguiram representar esse anelo de forma tão visceral. A autenticidade e a força que põe na expressão desse pathos, traduz, afinal, uma sede maior, de algo que não se pode exprimir através da razão: “Estonteante fome, áspera e cruel / Que nada existe que a mitigue e a farte!” (ESPANCA, 1997, p. 314).
Florbela nada pôde fazer para eliminar o seu mal de viver, já que ele estaria enraizado na sua própria circunstância biográfica: “Sou filha da charneca erma e selvagem / Os giestais, por entre os rosmaninhos, / Abrindo os olhos d´oiro, pelos caminhos, / Desta minh´alma ardente são a imagem” . (ESPANCA, 1997)
Euforia e disforia, amor e morte são outras categorias semânticas nas quais se inscreve o discurso amoroso. Atentemos nestes versos: “Hora em que o teu olhar me deslumbrou.../ Hora em que a tua boca me beijou.../ Hora em que fumo e névoa te tornaste...” (ESPANCA, 1997, p. 244). Neles perpassa uma pulsão de morte inerente ao amor - na hora do máximo prazer o amor desaparece, em fumo e névoa se tornou, como se evaporasse, como se fenecesse.
A leitura que se pode fazer desse impulso para a morte no amor está de acordo com a interpretação consagrada pela psicanálise ao erotismo, segundo a qual as pulsões de morte se enredam indissoluvelmente nas de Eros.
A epígrafe com que Florbela abre o livro Charneca em flor, publicado um ano após a sua morte (1931) é de Rubén Darío. Trata-se de um grande louvor ao amor: “Amar, amar, amar, amar siempre y con todo / El ser y con la tierra y con el cielo, / Con lo claro del sol y lo obscuro del lodo. / Amar por toda ciencia y amar por todo anhelo. // Y cuando
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la montaña de la vida / Nos sea dura y larga, y alta, y llena de abismos, / Amar la inmensidad, que es de amor encendida, / Y arder en la fusión de nuestros pechos mismos...“ (ESPANCA, 1997, p. 263). O texto sugere precisamente a ausência de limites para o amor. A intensidade e amplitude são uma condição intrínseca ao amor; não há limites para o que ele possa recobrir nem para a sua profundidade.
Nessa ordem ideias, fica claro que, no entendimento de Florbela, a arte nasce de um grande sofrimento: “Enche o meu peito, num encanto mago, / O frémito das coisas dolorosas... / Sob as urzes queimadas nascem rosas... / Nos meus olhos as lágrimas apago... (...) Olhos a arder em êxtases de amor, / Boca a saber a sol, a fruto, a mel: / Sou a charneca rude a abrir em flor!”. (ESPANCA, 1997) Do frémito das coisas dolorosas surge a possibilidade de criação da arte; e, assim, a charneca rude se abre em flor. A poesia que se escreve tem as raízes no mal de viver. Note-se a influência baudeleriana nessa concepção de poesia e a atitude tipicamente decadentista. Ora, a atitude daquela que diz andar no mundo perdida e incompreendida tem muito de pose romântica que o fim de século retomou sobretudo através dos escritores com algum tipo de inscrição na estética decadentista. Nessa perspectiva compreende-se que Florbela orgulhosamente diga: “O mundo quer-me mal porque ninguém / Tem asas como eu tenho!” (ESPANCA, 1997, p. 265).
A propósito dessa tendência para “abraçar” o Infinito, o intangível, Cecília Barreira escreveu que “a paixão em Florbela é um estádio que tem de ser vivido num arrebatamento místico, mesmo que não haja qualquer correspondência com o real. De pathos se trata na ânsia de se chegar a uma perfeição, limbo existencial que toca um lirismo profundo”. (BARREIRA, 1992)
À luz desse arrebatamento que abre espaço para a comunhão com o que não cabe nos limites do amor físico e imanente, creio encontrar-se uma explicação para os versos: “Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços... / São os teus braços dentro dos meus braços: / Via Láctea fechando o infinito!...” (ESPANCA, 1997, p. 265).
No continuum da errância do discurso amoroso de Florbela, encontramos, episodicamente, um assomo de impulso vitalista, como quando convida o amado para um passeio no campo, e a beber a hora que passa dentro dela, descrevendo-se atraente e bela (a cinta “esbelta e fina” e a pele “doirada de alabastro antigo”). (ESPANCA, 1997)
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Um outro aspecto da poesia de Florbela é o donjuanismo feminino, isto é, a não fixação num único sujeito, mas o investimento em vários: “Eu quero amar, amar perdidamente! / Amar só por amar: Aqui... além.../ Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente .../ Amar! Amar! E não amar ninguém! (...) Quem disser que se pode amar alguém / Durante a vida inteira é porque mente” (ESPANCA, 1997, p. 287). Depreende-se, assim, como uma concepção tradicionalista do amor - a que valoriza a fidelidade ao objecto amoroso -, é preterida a favor de uma outra que privilegia o sentido do acto de amar. Desse modo, como ainda disse Cecília Barreira, “de um franciscanismo ingénuo passa-se a uma atitude radical onde se torna indiferente quem se ama” (BARREIRA, 1992).
Também no poema “Mistério” se destacam essas sensações: “Pelo meu rosto branco, sempre frio, / Fazes passar o lúgubre arrepio / Das sensações estranhas, dolorosas” (ESPANCA, 1997, p. 274).
Penso poder concluir, de tudo o que ficou dito, que a grande mensagem sobre o amor na poesia de Florbela Espanca é a de que só o amor sem amarras pode completar o Homem. No entanto, a poetisa não foi capaz de experimentar tal dimensão salvífica do amor. Incapaz de constância na fé, relativiza o mais intangível e universal dos sentimentos, chegando mesmo quase a negá-lo: “Neste mundo vaidoso o amor é nada / É um orgulho a mais, outra vaidade” (ESPANCA, 1997, p.351), depois do que, se encaminha para chamar a morte com veemência.
Desse relance sobre as manifestações da temática amorosa em Florbela, um modo de falar do feminino na sua poesia, fica evidente a ambiguidade, a oscilação que não me parece resolver-se. A errância amorosa seria, então, uma característica que também o amor feminino pudesse reclamar. É a inconstância opondo-se à fixidez. Como afirma Silvina Rodrigues Lopes, ao referir-se à motivação da escrita de Florbela, “ela deriva da textualização de motivações sensoriais, a qual desvia o investimento libidinal da tendência para a fixidez, pela criação de um espaço de indeterminação que é possibilidade de oscilação entre masoquismo e sadismo, passividade e actividade, feminino e masculino”. (LOPES, 1986)
Essa fuga à fixidez talvez explique a incapacidade do autoconhecimento, ponte para o conhecimento dos sentimentos e do outro, incapacidade expressa no poema “Minha culpa” (Charneca em flor ): “Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem / Quem sou?! Um fogo-fátuo,
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uma miragem... / Sou um reflexo ... um canto de paisagem / Ou apenas cenário! Um vaivém...” (ESPANCA, 1997, p. 308).
A sua mensagem última talvez seja a lição do desprendimento: “Eu não sou de ninguém... Quem me quiser (..) Há-de ser Outro e Outro num momento! / Força viva, brutal, em movimento” / Astro arrastando catadupas de astros!” (ESPANCA, 1997, p. 350).
Gostaria de terminar evocando dois outros poetas, cujo sentido do amor tenho presente ao ler Florbela. O primeiro é Camões, o poeta do amor na sua natureza contraditória; o segundo é Eugénio Andrade, porque nele o amor é sempre a expressão de uma sede antes da fonte. Em ambos, como em Florbela, permanece o canto da miragem do amor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DAL FARRA, Maria Lúcia, “Estudo introdutório, estabelecimento do texto e notas” in Florbela Espanca, Trocando olhares, Lisboa, 1994, I.N.-C.M..
LOPES, Silvina Rodrigues, "Florbela Espanca. Poesia". In: Colóquio/Letras,
92, 1986 (Recensão crítica a Obras Completas de Florbela Espanca, Lisboa,
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RECTOR, Mônica “A Jornada das escritoras”, in Mulher objecto e sujeito da literatura portuguesa, Porto: Universidade Fernando Pessoa, 1999.
RÉGIO, José, “Introdução”, in Florbela Espanca, 23ª ed., Sonetos, Venda Nova: Bertrand, 1989.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero10/cristina.html
Número 10 (2009) - ISSN 1981-870X