Artigos
O NOVO HOMO ECONOMICUS
(do assujeitamento à servidão efetiva)
Mário Bruno
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
Universidade Federal Fluminense -UFF )
mariobrunouerj@yahoo.com.br
http://mariobruno-popfilosofia.blogspot.com
Resumo:
Este artigo analisa a questão do valor nas sociedades dominadas pela informação (sociedades pós-industriais).
Palavras-chave: capital, informação, trabalho, valor.
Résumé:
Cet article fait une analyse de la question de la valeurs dans les sociétés dominées par l’information.
Mots-clés: capital, information, travail, valeurs.
1. Eclats du capital
O que é uma crise econômica? E o capitalismo, como vai? De quantas metamorfoses ele é capaz? Com essas interrogações, Eric Alliez e Michel Feher começaram um artigo que precisa ser revisitado, chama-se “Os estilhaços do capital”. De acordo com os dois autores, tanto o liberalismo clássico quanto a teoria econômica marxista entendem a crise como um período transitório. Os liberais consideram a crise
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um problema de regulação mercantil, em que pesa a lei do equilíbrio automático entre a oferta e a procura. Os marxistas acreditam que o capitalismo esteja exprimindo as contradições que o levarão ao fim. Ou seja, para uns, a crise é um acidente; para outros, a crise é teleologicamente uma fatalidade. De qualquer modo, configura-se um tempo de espera. Uns esperam o “capitalismo sadio”, outros anseiam pelo advento do socialismo.
Alliez e Feher, no já referido artigo, ao falarem de tal crise, fazem referência a uma moral “neopuritana” do trabalho que se combina com o novo regime de acumulação de capital. Seria isso a própria crise?
2. O fim do Outro do Capital
O século XIX foi marcado pelo imperativo de construir uma sociedade de escoamentos laminares purificados de qualquer acontecimento, de qualquer possibilidade de turbulência. A cidade ideal seria como um moto-contínuo que girasse sobre si e se alimentasse de seus próprios produtos. O fluxo sem turbulência era o modelo ideal e técnico das cidades. Tratava-se de um paradigma espacial e funcional que visava a suprimir os atritos e as fontes de perda de energia.
Isabelle Stengers (1988, p.6) nos diz que o princípio de conservação de energia permitiu, no século XIX, estender ao conjunto dos processos naturais a utopia técnica do moto-contínuo. A grande questão era assimilar tudo que fosse perda de energia mecânica: conservação de energia em formas qualitativamente diferenciadas. Por isso, o mundo oitocentista viu no “trabalho” a possibilidade de um valor, de uma medida neutra para as diferentes formas qualitativas de energia. Segundo Stengers (Ibidem, p.6), existe uma relação direta entre a medida “valor-trabalho” e os ideais oitocentistas de transformação conservativa da energia. Fora isso, o princípio de conservação da energia necessitava de precisas diferenciações funcionais e espaciais. Sendo assim, o surgimento das grandes fábricas permitia, através de uma racionalização apaziguada, a conjugação entre valor-trabalho e os ideais de circulação conservativa. A ordem de inteligibilidade era o princípio de conservação, o imperativo racional tentou colocar tudo “sob o signo da razão suficiente, da igualdade quantitativa entre a causa e efeito” (Ibidem, 1988, p.6). Neste sentido, A dialética da natureza, de Fredrich Engels (1979, p. 34-41), visava a subsumir as ciências naturais nos estudos sobre as transformações qualitativas do movimento. Parece-nos que o princípio geral de conservação inseriu a física na dialética e ao mesmo tempo serviu à economia política. A redução dos fenômenos à energia contribuiu para a elaboração de uma medida geral das mercadorias através da noção de tempo de trabalho.
Sob uma perspectiva marxista, podemos dizer que o trabalhador, subsumido na lógica da mercadoria, tornou-se suporte de uma quantidade mensurável e este processo se efetuava através da cristalização do tempo em que o sujeito fica inserido nos próprios dispositivos de produção. O trabalho humano fez-se homogêneo em decorrência da “trapaça da troca desigual” (Ibidem, p. 10). Com isto, nos
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deparamos com a redefinição do trabalho, passando a estar separado dos processos naturais como atuantes nos processos de produção.
Entretanto, diz-nos Stengers (Ibidem, p.10) que nas sociedades pós-industriais o capital não mais se limita “a vampirizar o trabalho vivo, mas redefine o processo de produção de tal maneira que ele não tenha exterior” (Ibidem, p. 10). É o capitalismo sem justificativas racionais, sem o Outro do capital. O capital passa a maquinar sobre si mesmo produzindo suas próprias linhas de fugas e estranhos vetores de afrontamento.
3. A fábrica difusa
Sabemos que o capitalismo, na primeira metade do século XX, se quis de massa, era a forma que encontrou para enfrentar os riscos da superprodução e da insurreição operária, mas a massificação generalizada acabou por se configurar como nefasta, ela trouxe consigo um enrijecimento das relações sociais. As manifestações políticas da década de 60 marcaram bem isso. A revolta estudantil, precedida por uma franja da classe operária, denunciava as relações de produção capitalista enquanto relações de poder. Voltavam à cena o problema da extorsão da mais-valia, o que o processo de produção “faz” o trabalhador “fazer”; o embrutecimento a que se vê submetido o trabalhador; a submissão cega ao movimento das máquinas. As contestações agitaram mundialmente o final dos anos 60. Foi um verdadeiro surto político envolvendo minorias étnicas e culturais – inclusive o movimento feminista. Pedia-se igual salário e igual proteção. Os movimentos minoritários queriam ampliação de acordos de produtividade; já não aceitavam mais serem excluídos de seus direitos. Como conseqüência, o capitalismo passou a uma postura mais “flexível”. As grandes fábricas cederam lugar a um espaço produtivo disseminado pelo tecido urbano. O capitalismo com isso invadiu o espaço doméstico. É preciso que entendamos melhor essa acomodação que foi capaz de produzir um novo homo economicus.
Alliez e Feher (1988, p. 153) afirmam que o capitalismo sofreu, nas últimas décadas, muitas inflexões. A noção de espaço produtivo é uma delas. O espaço dominado pelas grandes fábricas tende a se desfazer no tecido urbano. É o que se denomina incremento da noção de informação no processo do valor de troca. O domínio da informação é também subsunção integral do tempo sob a lei da troca desigual. Não é mais essencial a organização do espaço em esferas funcionais. O capitalismo procura o limite máximo da monetarização do tempo, revendo as relações entre tempo de trabalho e tempo de valorização.
O domínio da Informação é o desaparecimento do respeito aos limites das esferas funcionais. É uma espécie de mudança nas relações entre espaço e tempo no seio do capitalismo. Como nos mostram Alliez e Feher, são novos circuitos de valorização. O novo regime de assujeitamento compreende uma identidade formal do trabalhador com o empresário, ambos como partes integrantes do capitalismo. O trabalhador informado ideal é aquele que se sente atraído a usufruir da acumulação, ele não se rebela contra a forma-mercadoria.
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Como nos aponta “Os estilhaços do capital” (Ibidem, p. 176-8), as figuras do movimento neoconservador como Fredrich Von Hayek e Stigler são os mais significativos defensores da teoria da Informação. Apoiados na cibernética, nas ciências da comunicação e na aplicação eletrônica pretendem fazer da informação uma mercadoria plena em nome da maximização da eficiência e da minimização dos entraves de difusão. De acordo com essa perspectiva, a informação torna-se um recurso raro e um fator de produção com efeitos pragmáticos sobre os conhecimentos. O Estado-policial, com seus aparelhos ideológicos, que controlava as informações exteriores, começava a parecer obsoleto frente à submissão das informações ao critério e desempenho das mercadorias. É a renovação do capitalismo com o fito de uma influência que infiltrava-se livremente em todas as malhas do tecido social. O que a “Informação” realiza nos grandes complexos industriais é uma verdadeira revolução nas relações entre tempo de trabalho e tempo de produção. O taylorismo e o fordismo submetiam o ritmo de trabalho ao ritmo da produção e vice-versa. O neoconservadorismo procura estabelecer uma independência entre ritmo de trabalho e ritmo de produção. O tempo de produção não é mais determinado pelo tempo de trabalho vivo. A produção passa a depender de cadeias integradas de autômatos. Neste processo, os operários não acionam máquinas; mas supervisionam a produção, através das informações que são fornecidas pelos robôs.
Na ótica de Alliez e Feher (Ibidem, p.199-201), o neoconservadorismo é a passagem para um novo plano de assujeitamento social que modifica as relações entre homens e máquinas e substitui o sistema de compartimento do tempo no espaço articulado pelo capital por um empreendimento de subsunção do espaço ao tempo. A descentralização do espaço produz um novo modo de hegemonia: a idéia de “fábrica difusa” em contraposição a era das “fábricas-fortalezas” e das “cidades-dormitórios”. A fabrilização social é uma extensa multiplicação de oficinas de subcontratação. Esta invasão do espaço-tempo doméstico é um curto-circuito nas formas clássicas de assujeitamento, é a sofisticação “telemática” da fábrica em casa como um terminal instalado. O tempo supostamente livre torna-se capturado por microempresas futuristas livres numa espécie de “economia subterrânea”. Nesta confusão, as esferas produtivas se infiltram nas esferas reprodutivas maximizando a rentabilização do espaço e do tempo livre.
Não se trata de um estádio fractal do valor, mas de novas subjetividades e novos objetos a partir de condições mediáticas de valorização que transformaram a informação em mercadoria e produzem comportamentos rentáveis em virtude de informações vendidas. A confusão produtiva é também a estratégia de produção de um outro homem. O homem economicus passou a conhecer outros modos de sujeição em todos os poros do corpo social.
4. Dar o tempo
Sim, o capitalismo hoje se liga à “noção de informação”. A informação passa a ocupar o centro do processo de valorização capitalista, gozando de um duplo estatuto: recurso escasso e mercadoria. Alliez e
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regime de escravização em tempo integral. O que não é tempo rentável, na engrenagem do capital, escoa como tempo perdido.
A nova grande trapaça é fazer do trabalhador e do capitalista partes integrantes do capital, como se os dois pudessem, de modo equivalente, usufruir do que é acumulado.
Vivemos um regime de acumulação extremamente perverso, propiciando por desativação espaços e corpos vacantes e/ou vagantes. E com isso uma multiplicação antes não imaginável de guetos, favelas, mendigos, pedintes etc.. Muitos desses vacantes/vagantes passam a pertencer ao que cinicamente se chama de “economia informal”. Os espaços desativados são “bolsões” de miséria, mas acabam se tornando rentáveis.
Referências bibliográficas:
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BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal; ensaio sobre fenômenos extremos. São Paulo: Papirus, 1990.
BUARQUE, Chico. Fazenda modelo: novela pecuária. São Paulo: Círculo do Livro, 1976.
ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. São Paulo: Paz e Terra, 1979.
STENGERS, Isabelle. Introdução. In: ______ Contratempo. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense, 1988.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero10/mario.html
Número 10 (2009) - ISSN 1981-870X