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A PERTINÁCIA DE SÍSIFO: E TUDO COMEÇA DE NOVO
Mirian da Silva Pires
(Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ)
mspires@click21.com.br
Resumo:
Os mitos vivem no imaginário humano e podem, sempre que haja necessidade, atualizar-se, ainda que travestidos em formas diversas. Dentre os mais presentes, apontamos Sísifo, conhecido com aquele que escala um rochedo empurrando enorme bloco de pedra. O mito de Sísifo comparece na literatura, quer seja no embate permanente entre o poeta e a palavra, quer tematizado no drama da luta pela sobrevivência. Em prosa ou em verso, o mito nos incita a recomeçar, sempre.
Palavras-chave: Sísifo, mito, literatura.
Abstract:
Myths live in human imaginary world and might be, as necessity, up to date even if myths appear in different forms. Between the most presents myths, there has been Sisyphus, known as the one who climbs a hill carrying a huge block of stone, the myth of Sisyphus appears in literature, sometimes in a challenge between poet and word, and others, theme of a struggle for survival. In prose or in verse, the myth tells what is need to begin again and again.
Key words: Sisyphus, myth, literature.
1 – Os mitos – deuses, semideuses, heróis excepcionais – encarnam arquétipos, preenchem lugares privilegiados na psique humana. Eles escapam a qualquer definição precisa e apresentam diferentes versões. Os mitos são tratados de acordo com as épocas, conforme as necessidades destas, mas não se prendem à história porque são atemporais. Assim, eles se transformam, se renovam, às vezes ficam esquecidos, envelhecem, para ressurgirem vigorosos tempos depois. Diferentemente dos ídolos, que são projeções temporárias, historicamente situadas, os mitos podem ser sempre atualizados.
Aqueles, cujas narrativas nos são mais familiares, vêm da era pagã, difundidos entre os gregos e os romanos. Devemos lembrar que, na Antiguidade Clássica, prevalecia a questão da justiça, do equilíbrio, da justa medida, enfim. Toda falta, ou hybris, deveria ser punida, ainda que essas faltas fossem cometidas pelos deuses – haja vista o castigo infringido a Prometeu, que ousou levar aos mortais o conhecimento do fogo. Quantos aos homens comuns, os efêmeros por natureza, deveriam submeter-se às determinações divinas ou poderiam ser fulminados ou condenados a castigos terríveis. Não bastaria morrer, já que os gregos concebiam a imagem de uma vida subliminar, sob a forma de sombra, no Hades. Lá entrariam os mortais carregando o peso de sua desmedida para sempre.
A mitologia oferece uma seara fértil para a pesquisa, podendo ser rastreada pelos séculos, nas diferentes expressões culturais de um povo. Nesse trabalho, porém,
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restringiremos a matéria a uma abordagem tópica, abrindo a possibilidade de um aprofundamento a posteriori.
Posto isso, é no Hades que vamos encontrar a imagem do mito que ora nos interessa, já habitando no vale das sombras: trata-se de Sísifo, rolando eternamente um enorme bloco de pedra morro acima, para vê-lo despencar, lá do alto, morro abaixo.
Apesar de mortal, Sísifo tem ascendência divina, é filho do deus do vento Éolo. Dentre algumas versões, corre que ele era muito inteligente, e que usava dessa virtude para trapacear homens e deuses. Brandão (1991) refere-se à hipótese de o nome Sísifo estar semanticamente ligado a sofhós, “sábio, instruído, inteligente, hábil”, virtudes tais intensificadas na reduplicação da sílaba inicial (REINACH apud BRUNEL, 1998). Eis como o herói é apresentado por Brandão (1991, p.390), “Sísifo, o mais astuto e inescrupuloso dos mortais”, descrito na Ilíada como “o mais solerte dos mortais”.
Conta-se que Sísifo foi fundador e rei da cidade de Corinto. A pedra que ele carrega simbolizaria, nesse caso, seu ofício de construtor. De acordo com Brunel, os imensos blocos de mármore que se elevam, formando Sisypheion, nas ruínas da antiga Corinto, conferem associação toponímica à etimologia do nome do herói.
Atribui-se a Sísifo a paternidade do engenhoso Ulisses. Estaria aquele hospedado na casa de Autólico, pai de Anticléia, na véspera do seu casamento com Laerte. O pai da noiva, de índole duvidosa, teria facilitado o encontro fortuito do casal para conseguir um herdeiro com tamanhas qualificações (BRANDÃO, 1991, p. 390).
Quanto ao motivo do castigo, uma das versões conta que Zeus raptara Egina, filha do deus-rio Asopo. Ao fugir com a moça, passa por Corinto e é visto por Sísifo, que delata Zeus em troca de receber de Asopo uma fonte permanente de água para a sua cidade. Furioso, Zeus envia Tânatos com a missão de trazer Sísifo para o Hades. Sempre ardiloso, Sísifo convence a Morte de experimentar as próprias algemas e livra-se da punição. Quando o pai dos deuses se dá conta do embuste, interfere e Sísifo morre. Entretanto, mais uma vez o herói, solerte, consegue livrar-se do Hades através de outro ardil: tendo pactuado com a esposa para que não o enterrasse após a morte, Sísifo chega ao Hades sem o que deveria ser a réplica de seu corpo. Hades considera o fato um sacrilégio e lhe dá permissão para voltar ao mundo dos vivos, a fim de providenciar a inumação do próprio corpo. Uma vez livre do Hades, ele não retorna mais, até idade avançada, quando então sofrerá o castigo pelas faltas cometidas.
2 - Viver se compara, assim, com o esforço contínuo de rolar pedra, tomando-se a pedra como metáfora de dificuldades. De pronto, lembramos a versão poética de Sísifo traduzida no poema de Carlos Drummond de Andrade: “No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho.” (DRUMMOND, 1969). Como nos relacionar com a pedra posta diante de nós, no meio do caminho? Precisamos da força do mito para deslocá-la e, talvez, edificarmos com ela alguma conquista. Noutro poema de Drummond, “O lutador”, a pedra reaparece na forma de palavra:
Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
e lutar com palavras não requer força, não prescinde, no entanto, de muita habilidade.
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O poeta, agora Sísifo, vai tentar trapacear:
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
(...)
Insisto, solerte,
busco persuadi-las
Apesar de não obter sucesso, ele persevera na luta inglória de rolar palavras-pedras. Essa é a condição mesma de se construir o poema:
Luto com o corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.
Assim como o mito se constitui na ação, a poesia também exige o esforço diuturno do poeta, já que não pode se realizar na pura contemplação. Potência e ato, para lembrar Aristóteles, numa singular manifestação. Sísifo-Poeta não morre, não dorme, não descansa:
O ciclo do dia
ora se conclui
e o inútil duelo
jamais se resolve.
(...)
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.
3 – O mito não morre porque se atualiza na vida do homem. Talvez seja Sísifo um dos mais presentes no nosso cotidiano, expressado de diversas maneiras. Ele fala de astúcia, astúcia para driblar obstáculos. E fala, principalmente, de perseverança, pois o que se mantém da sua performance é o eterno rolar pedras. Para apontar a referida permanência, podemos começar pela influência redentora do mito de Sísifo na vida de Albert Camus (1913-1960). Existencialista, Camus não crê em Deus nem na transcendência, nem em nada que pudesse justificar a vida, abatida sob a decepção e o sofrimento, mas encontrou em Sísifo uma razão para resistir. Desencantado com a política, com o casamento, com tudo, ele pensa no suicídio, mas se reanima ao escrever Le Mythe de Sisyphe e descobre que a
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vitória humana está no desafio de aceitar a sua própria condição, com responsabilidade, com ética, com solidariedade. Extremamente consequente, aceita a tragédia humana de rolar pedras primeiro para, só depois, então, construir valores e dar sentido à vida absurda, uma vez que, na visão existencialista, a existência precede a essência.
Transfigurado na literatura, o mito está presente na fala de Ulisses, o professor de Filosofia, personagem de Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Nesse romance, Ulisses procura encorajar Lóri a aceitar os riscos inerentes à vida., a Lóri que economizava os próprios sentimentos, mesquinha, a que não se permitia ser feliz para não ter que aceitar a dor, a que não se entregava porque o amor não dá garantias. Com disposição homérica de não desistir da jornada, Ulisses tem acesa a chama do mito, como se lê nas suas palavras:
Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. (LISPECTOR, 1982, p.25)
Também seria pertinente a correlação do personagem de Clarice Lispector com o seu homônimo, o Ulisses, da Odisseia de Homero. Na verdade, a proximidade entre os dois se confirma além da homonímia: em ambas as narrativas, Ulisses vai se ver às voltas com sereias. Na Odisseia, as Nereidas cantam para a morte, mas o engenhoso guerreiro, prudentemente amarrado no mastro de sua nave, não sucumbe. Em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, é o professor quem seduz Lóri (“quem seduz você sou eu” – p.106), a ela, que tem nome de sereia (Loreley), só que agora com um canto para a vida (PIRES, 1990, p.178). Outra afinidade, ainda mais consistente para o propósito desse nosso trabalho, é aquela que agrega os três personagens envolvidos no mesmo paradigma: considerando-se a paternidade bastarda do herói homérico, os dois Ulisses partilham da virtude herdada de Sísifo, qual seja, a inteligência ou sabedoria. No que diz respeito ao personagem do romance, a sabedoria é o pressuposto inerente a um professor de Filosofia.
4 – No Dicionário de símbolos (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1988, p.903), o mito de Sísifo está relacionado ao número 13, “o poder gerador, seja bom ou seja mau”. O número 12 forma um ciclo completo – 12 meses do ano; 12 Apóstolos de Jesus; 12 Tribos de Israel; 12 trabalhos de Hércules -, de forma que 13 se torna o reinício do ciclo: 12 + 1. A idéia é a de refazer algo e representa “a eterna escalada do rochedo de Sísifo”. Essa associação nos conduz a outra expressão literária, a prosa de Graciliano Ramos em Vidas secas. O livro se compõe de 13 capítulos. A história, metonimizada na família de Fabiano, narra o drama do migrante sertanejo na sua jornada sofrida, fugindo da seca para sobreviver. Fabiano semelha Sísifo no vale das sombras, semimorto, condenado a recomeçar “apesar de”.
Em Vidas secas, o primeiro e o último capítulo se emendam, sugerindo a condenação da família a um ciclo irreversível e de alcance cada vez menor, tendo em vista as baixas sofridas ao longo do caminho. O primeiro capítulo, significativamente denominado “Mudança”, traz o sema do novo, do movimento, da esperança no devir; o último, “Fuga”, conota a urgência desolada de quem não tem mais escolha. Minguado, o grupo agora já não conta mais com dois elementos, o papagaio e a cachorra. A perda de ambos tem importância simbólica no universo rarefeito da família. A perda de ambos tem importância
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simbólica no universo rarefeito da família. A presença dos bichos marcava, mesmo que de forma irônica, um lugar de resistência, denunciava uma carência: a comunicação, já bastante prejudicada pela falta de competência linguística de seus membros - por questões óbvias que o texto denuncia -, reduz-se com a morte do papagaio que não falava, quanto à cachorra, esta evoca no seu nome, Baleia, as águas que não fertilizavam o sertão.
A marcha final de Fabiano com sua família será alimentada pela fantasia, uma vez que a realidade não os sustenta mais. No entanto, é imperioso que eles recomecem, mais uma vez, e outra, antes que sejam esmagados pelo destino duro como pedra:
Não sentia a espingarda, o saco, as pedras miúdas que lhe entravam nas alpercatas, o cheiro de carniças que empestavam o caminho. As palavras de sinhá Vitória encantavam-no. Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era (...). E andavam para o sul, metidos naquele sonho. (RAMOS,1896, p.126)
A anonímia dos filhos de Fabiano, designados apenas como “o menino mais velho” e “o menino mais novo”, nega-lhes a possibilidade de atuarem socialmente como sujeitos da própria história. Despersonalizados, os meninos apenas ocupam um lugar provisório, que será ocupado depois por outros meninos, igualmente anônimos, vítimas da fatalidade da fome, da sede, da miséria, da indiferença do meio geofísico e do humano. Essa escravidão sugere a continuidade do ciclo inscrita desde o título plural da obra, Vidas secas.
5 – Podemos atualizar ou não o mito em nós: se escolhermos não rolar pedras, ficamos aqui em baixo, parados, inúteis, sem realizarmos absolutamente nada. Se resolvermos escalar a rocha, mas desistimos no meio da empreitada, corremos o risco de fracassar e de sermos esmagados pelo peso da pedra que virá sobre nós. A cada vez que aceitamos o desafio e insistimos até o cimo do rochedo, fazemos uma conquista. Por instantes, podemos contemplar a paisagem lá de cima, mas só por instantes, pois a essência da vida é o movimento, o tempo não pára e a gravidade do mundo empurra a pedra montanha abaixo – vivemos sob essa lei.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião – 10 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
ARISTÓTELES. Tópicos; Dos argumentos sofísticos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores)
BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico de mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1991. v.2.
BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
CAMUS, Albert. Le mythe de Sisyphe. Paris: Gallimard, 1985.
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Nova
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Fronteira, 1982.
PIRES, Mirian da Silva. Clarice Lispector: A descoberta do óbvio. Rui de Janeiro, UFRJ, 1990 (Dissertação de Mestrado).
RAMOS, Graciliano. Vidas secas.São Paulo: Record, 1986.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero10/mirian.html
Número 10 (2009) - ISSN 1981-870X