Resenha
O Quase fim do mundo de Pepetela
Pepetela. O Quase fim do mundo. Lisboa: Dom Quixote, 2008, 381 p.
Robson Dutra
(Universidade do Grande Rio Prof. José de Souza Herdy - Unigranrio
robson.dutra@oi.com.br
Os leitores de Pepetela se surpreenderão com as diversas nuanças narrativas de O Quase fim do mundo, romance publicado em 2008, sobretudo por ser antecedido por O Terrorista de Berkeley, Califórnia, visto que essa obra, dada a informalidade de haver servido de passatempo ao escritor durante sua estada nos EUA, reduz um pouco o impacto causado pela produção literária com que temos sido brindados nas últimas quatro décadas.
Tal não se dá com a obra em questão. A partir de uma necessidade existencial do ser humano, ou seja, saber de onde veio e para onde vai, Pepetela cria, por vias aparentemente insólitas, uma narrativa centrada no desaparecimento de toda a vida animal, ou seja, homens, animais e até aquelas que nos passam despercebidas. Os poucos sobreviventes encontram-se numa localidade africana compreendida na intersecção do triângulo traçado entre a nascente dos rios Nilo, Congo e Zambeze.
A surpresa de Simba Ukolo, médico e narrador principal da obra, aumenta na medida direta em que uma breve parada durante uma viagem entre Calpe e uma aldeia vizinha torna-se a razão de sua sobrevivência ao grande clarão que resultou no apagamento coletivo de que não restou absolutamente nada. Em meio à desordem de carros e montes de roupa, únicos remanescentes dos desaparecidos, despontam personagens, como D. Geny, uma religiosa ultra-radical com quem Ukolo se depara após realizar um dos muitos delitos da obra, como o roubo de milhões a um banco, numa tentativa de assegurar um futuro ainda pensado de acordo com o mundo recém-desaparecido. Geny, por sinal, é apresentada de posse de uma arma de fogo e de grande quantidade de dinheiro igualmente subtraído, traço que irá, pela via da ironia, opor seus atos às suas convicções religiosas e atitudes preconceituosas. Se Pepetela conclui A Geração da utopia narrando o culto frenético no Templo do Dominus, é a faceta repressiva e alienadora de seitas religiosas dali resultantes que desponta em O Quase fim do mundo.No romance em questão é a crença nos
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ensinamentos da igreja dos Paladinos da Coroa Sagrada que faz com que a personagem torne-se antagonista de quase todos os demais sobreviventes, sobretudo por acreditar-se única guardiã de valores ético-morais, bastante subjetivos, por sinal.
Ao trazer à cena as demais personagens, Pepetela expõe tipos emblemáticos do universo africano, nova metáfora do mundo. Convoca, além de Ukolo e Geny, Isis, uma historiadora somali; Nkunda, uma criança, sobrinho de Ukolo; Jude, uma adolescente no apogeu da puberdade; um jovem tresloucado que assume vários nomes; Julius, um mecânico masai; Riek, um kimbanda etíope; Janet, uma americana que se dedica ao estudo de chimpanzés; Kiboro, um ladrão de residências, que age como uma espécie de Robin Hood; um pescador anônimo e Jan, um misterioso mercenário sul-africano. É através delas que o microcosmo enunciado aborda algumas das diversas questões inerentes à África, como confrontos seculares entre algumas etnias. A estas se associam outras, de cunho universal, como o imperialismo e o individualismo que terão de ser vencidos para que o grupo possa suplantar as dificuldades decorrentes das diversas nuanças do isolamento a que foi conduzido.
Formado gradativamente, visto que os sobreviventes vão surgindo paulatinamente, o grupo tenta contornar seus conflitos através de um processo de (re)aprendizagem que vai desde a preparação de alimentos a tarefas mais elaboradas como pilotar pequenos aviões, o que lhes permite perceber que a vida está basicamente restrita a Calpe. Por isso, seduzidos pelo vazio de quem sobrepujou a morte, parte deles inicia uma viagem que mescla, ainda, a curiosidade em conhecer a verdade dos fatos e, ao mesmo tempo, visitar um mundo outrora interditado. Assim, a rota a ser percorrida assume um novo traçado, posto que se origina na África, até chegar a uma nova Europa, livre agora da Fortaleza de Schengen, isto é, do acordo político que cerceava a entrada daqueles que não se conformavam aos padrões do mundo de então, numa reação em que a diferença interroga o cânone.
Numa alusão a textos pós-coloniais, como os de Edward Said e Homi Bhabha, constata-se que as diferenças entre as personagens comprovam que o conceito de identidade pura inexiste e que, por isso, deve-se valorizar o multiculturalismo resultante do hibridismo, o contato e o diálogo entre as diversas culturas que integram a África, tornada,
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no romance, metáfora do mundo. Esta é, nos parece, a razão por que, desde O Terrorista de Berkeley, Califórnia, Pepetela tenha optado por lançar mão de um novo locus enunciativo que se afasta de Angola, sem, contudo, deixar de tematizar a África, tampouco o diálogo das diferenças ou a volta crítica ao passado. Em O Quase fim do mundo, tal se dá de modo acentuadamente irônico, visto que o mundo deixa de existir, fazendo com que possíveis marcas do passado sejam revistas pelos sobreviventes.
Por isso, é importante frisar a preocupação de Pepetela em não se fixar apenas na África banto, em que Angola se insere, mas apontar sua multiplicidade, como fez em Mayombe, em que Prometeu, o titã que roubou o fogo sagrado de Zeus, é posto em pé de igualdade a Ogum, a divindade iorubá que representa o fogo e a guerra. Em O Quase fim do mundo, essa plurivalência se dá no fato de todos se comunicarem, ao menos minimamente, em suahili, idioma falado por milhões de habitantes nos países que constituem a União Africana, como Quênia, Tanzânia, Uganda, Congo, Ruanda, Burundi, Somália, Moçambique, Ilhas Comores, além de ser o único com raízes exclusivamente africanas. Desse modo, a unidade se dá a partir de um traço comum que faz com que outros que não o dominam sejam alijados da narrativa principal e, consequentemente, do movimento de reorganização do espaço proposto pela enunciação.
A possibilidade de revisão do “legado à memória coletiva” descrito por Le Goff incita os sobreviventes à viagem que faz com que a “gente remota” citada por Camões, em meio à qual os portugueses edificaram seu império, parta rumo a uma Europa desabitada e cada dia mais distante do fulgor de outrora, propiciando o estabelecimento de um novo corpo cultural. Logo, a viagem não resgatará necessariamente o que ficou de um passado cristalizado por aquilo que Bakhtin denomina “cultura oficial”, mas, sim, o que os viajantes elegerão para ser recordado e recuperado no futuro pela memória coletiva, numa revisão crítica e revitalizadora da história.
Para tanto, Pepetela volta a um locus recorrente e plurissignificante em sua obra ao fazer com que a enunciação gire em torno de Calpe, cidade que funciona como um amplo projeto cuja proposta não se dá num lugar sujeito a limitações espácio-temporais. Esta passa a ser especificada pela consciência do saber e da previsão do futuro que se abre diante dessa nova referência à cidade, visto que, após o cataclismo que encerrou a vida
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humana, diminuíram as condições de habitabilidade numa localidade que, tal qual outras cidades do mundo, vai, gradativamente, se desertificando.
Torna-se premente um reinício que traga em si novas configurações não apenas para Calpe, mas para a África e para o mundo, que fará com que o centro torne a ceder espaço a margens que convergirão para novos rumos e significações que o leitor de O Quase fim do mundo, prazerosamente, descobrirá.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero10/resenha.html
Número 10 (2009) - ISSN 1981-870X