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PENSAMENTO PRIMITIVO E PALAVRA MÁGICA NA ESCRITA DE MIA COUTO
Maria Helena Sansão Fontes
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ)
mhsansao@terra.com.br
Resumo:
Leitura de três romances de Mia Couto, tendo em vista os elementos míticos e a herança do pensamento primitivo na cultura dos povos africanos.
Palavras-chave: literatura africana; mito; magia
Résumé:
La lecture de trois romans de Mia Couto, basée sur les elements mytiques et la héritage de la pensée primitive dans la culture de peuple africain.
Mots-clés: littérature africain; mythe; magie
Mia Couto faz uso do elemento insólito em seus romances, para repensar as relações do homem no meio social, dando ao leitor a sensação de que alguma coisa está fora da ordem, pois estar fora da ordem é o que realmente nos propõe o autor. Repassadas de mitos e crenças ancestrais, as narrativas de Mia Couto resgatam o pensamento do homem primitivo presente no inconsciente coletivo do povo africano. Segundo Lévi-Strauss:
Longe de serem, como muitas vezes se pretendeu, obra de uma “função fabuladora” que volta as costas à realidade, os mitos e os ritos oferecem como valor principal a ser preservado até hoje, de forma residual, modos de observação e de reflexão que foram (e sem dúvida permanecem) exatamente adaptados a descobertas de tipo determinado: as que a natureza autorizava, a partir da organização e da exploração especulativa do mundo sensível em termos de sensível. (LÉVI-STRAUSS, 2008, p.31)
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Acrescenta ainda o autor, que essa “ciência do concreto”, substrato de nossa civilização, não foi menos científica e seus resultados foram tão reais quanto os esperados pelas ciências exatas e naturais.
Em Terra sonâmbula, a narrativa se passa em Moçambique pós-independência, durante a guerra civil que devastou a ex-colônia, mergulhando a população no medo e no desassossego. É assim, que se apresentam as principais personagens do romance: seres errantes que, em sua viagem, encontram abrigo num ônibus incendiado à beira da estrada. A mala achada ao lado do ônibus é que vai fornecer todo o clima estranho e onírico da narrativa. Alternando os capítulos com os “cadernos de Kindzu” encontrados na mala, a narrativa propõe dois tempos diferentes: o tempo cronológico da ação das personagens Muidinga e Tuahir e o tempo mítico que se circunscreve nos cadernos de Kindzu. Extrapolando, porém, o limite dos “cadernos”, a narração de Kindzu se confunde na cabeça de Muidinga:
Os cadernos de Kindzu se tinham tornado o único acontecer naquele abrigo. Procurar lenha, cozinhar as reservas da mala, carregar água: em tudo o rapaz se apressava. O tempo ele o queria apenas para mergulhar nas misteriosas folhas. O miúdo, em si, se intriga: quem seria o autor dos escritos? O homem de camisa sanguentada, estendido ao lado da mala, seria o tal Kindzu? (COUTO, 2007, p.34)
As duas narrativas, tecidas paralelamente, acabam por se completar, na medida em que Muidinga e o velho Tuahir encontram nos “cadernos de Kindzu” o alimento para seus sonhos e fantasias. A terra sonâmbula faz parte das duas histórias porque a matéria mítica, repleta de crenças africanas ancestrais, está presente no inconsciente das personagens que lêem os cadernos. É a mesma terra, marcada pelas guerras e desmandos, assolada pelo medo e por fantasmas do passado que não encontra descanso. Foi-lhe negado o direito ao sono.
Para Mircea Eliade, “Se tentarmos compreender o significado autêntico de um mito ou de um símbolo arcaico, somos forçados a concluir que esse significado revela a tomada de consciência de uma determinada situação no Cosmos e que, por consequência, implica uma posição metafísica.” (ELIADE, 1985, p.17-18)
As aventuras de Kindzu são assim repassadas de elementos insólitos, que, de
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acordo com a coerência interna do romance, não causam espanto, antes revelam a riqueza das crendices e superstições presentes no imaginário africano, importantes marcas na viagem da personagem. Kindzu, contrariando os desígnios do fantasma paterno, que lhe aparece nos sonhos, aceita os conselhos de velhos anciãos e parte em busca de respostas que possam livrar sua terra e seus conterrâneos da agonia em que vivem: “Sem que eu soubesse começava uma viagem que iria matar certezas da minha infância”, diz o narrador no Primeiro caderno de Kindzu
A viagem mal começava e já o espírito do meu velho me perseguia.(...) Lembrei do conselho do nganga e tirei a ave morta debaixo do meu assento. Estava preparado para essa batalha com as forças do aquém. Em cada pegada deitei uma pena branca. No imediato, da pluma nascia uma gaivota que, ao levantar voo, fazia desaparecer o buraco. O voo das aves que eu semeava ia apagando meu rasto. Dessas artes, eu vencia o primeiro encostar de ombros com os espíritos. (COUTO, 2007, p.40)
Acompanhar os doze capítulos do romance, entremeados com os doze cadernos que constituem a viagem de Kindzu, é ter contato tanto com a cultura tradicional de Moçambique, quanto com as consequências das guerras pela independência e os conflitos civis que castigaram a terra. por anos e anos, mergulhando a população num pesadelo sem fim. As palavras do feiticeiro da aldeia, nas páginas finais de Terra sonâmbula,cumprem o papel de enunciar o destino da população. Num longo discurso que revela sua posição de guia espiritual, ele discorre sobre a condição subumana a que se converteram os moçambicanos, alertando-os para que não deixem a terra, “porque esta guerra não foi feita para vos tirar o país, mas para tirar o país de dentro de vós” (COUTO, 2007, p 201):
No final, porém, restará uma manhã como esta, cheia de luz nova e se escutará uma voz longínqua como se fosse uma memória de antes de sermos gente.(...). Tudo isso se fará se formos capazes de nos despirmos deste tempo que nos fez animais. Aceitemos morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra
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nos converteu. (COUTO, 2007, p.201-2)
A figura mítica do feiticeiro, sempre presente também nas narrativas dos povos primitivos, revela em sua fala a necessidade de abolir o tempo presente, o tempo histórico, e resgatar um tempo primordial, repetindo o gesto cosmogônico da criação do mundo. A renovação implica morte e renascimento.
Porque o cosmos e o homem se regeneram constantemente e por todos os meios, o passado é consumado, os males e os pecados eliminados, etc. Múltiplos nas suas formas, todos estes instrumentos de renovação tendem para o mesmo objetivo: anular o tempo passado, abolir a história através de um retorno contínuo in illo tempore, pela repetição do acto cosmogônico. (ELIADE, 1985, p. 95)
Uma história de amor percorre toda essa narrativa paralela, o amor entre Kindzu e Farida, que, envolto em mistérios, não chega a realizar-se, restando apenas a poesia que sobrevive ao seu desenlace. Kindzu, somente nas linhas finais da narrativa consegue cumprir a promessa feita, a de encontrar Gaspar, o filho de Farida. E nesse ponto as histórias paralelas se encontram definitivamente, nas mãos do menino Gaspar, o Muidinga da outra história, que efetivamente está de posse dos cadernos. É um final epifânico, já que além da revelação da identidade de Muidinga, tão embalado pela narrativa da sua própria história sem o saber, observa-se a mítica analogia da narrativa com a própria terra que lhe serve de matéria prima: “Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão transformando em páginas de terra”. (COUTO, 2007, p 204)
Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra é outro romance em que o insólito se manifesta como recurso, para acentuar a cultura africana, marcada pela tradição e por conflitos de ordem política. Aqui, a magia da linguagem de Mia Couto seduz o leitor do início ao fim com sua oralidade e musicalidade, que reafirmam, como nos outros romances do autor, sua admiração por Guimarães Rosa, pela semelhança de seu estilo..
O retorno do jovem Mariano à terra natal por motivo da morte do avô é o pretexto
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para o desenrolar da história, fazendo emergir as crenças, superstições e tradições do povo da Ilha Luar-do-Chão. Cumprir os rituais que lhe são destinados faz Mariano observar o quanto se sente estrangeiro em sua própria terra. A morte também aqui protagoniza o romance. É em torno dela que vai se revelando o desconforto de uma terra, em que as ruínas se anunciam aos olhos atentos de Marianinho.
As concepções cíclicas da humanidade desde o pensamento primitivo foram muito associadas às fases da lua – aparecimento, crescimento, decrescimento. “Com efeito, o ‘nascimento’ da humanidade, o seu crescimento, a sua decrepitude (o seu ”desgaste”) e o seu desaparecimento são identificados com o ciclo lunar.” (ELIADE, 1985, p. 102)
A volta de Marianinho pode ser comparada a esse ciclo, assim como o seria a morte do avô. Enquanto morre o avô, Marianinho regressa a terra, tornada caos e repete o ritual de iniciação necessário à sua reintegração. Não é por acaso que sua terra de origem tem o nome de “Luar-do-Chão”:
Na “perspectiva lunar”, a morte do homem, bem como a morte periódica da humanidade, são necessárias, como o são os três dias de trevas que precedem o nascimento da Lua. A morte do homem e da humanidade são indispensáveis à sua regeneração. Qualquer forma, seja ela qual for, pelo próprio facto de existir e de durar, enfraquece e gasta-se; para readquirir o vigor, ela tem de voltar ao amorfismo, nem que seja por um instante; tem que ser integrada na unidade primordial de onde veio; por outras palavras, tem de voltar ao “caos” (no plano cósmico), à “orgia” (no plano social), às trevas (no caso das sementes), à “água” (baptismo, no plano humano, “Atlântida”, no plano histórico, etc.). (ELIADE, 1985, p. 103)
O estranhamento maior da narrativa fica por conta das cartas misteriosas recebidas pouco a pouco por Mariano e atribuídas ao avô falecido, cujo corpo espera pelo enterro que acontecerá no final do romance. As enigmáticas cartas, reveladoras de segredos familiares, são como que um passar a limpo das tradições e costumes do povo de Luar-do-Chão. Desvendar esses mistérios é ao mesmo tempo um peso para a personagem e um resgate de si mesmo, de suas origens e de seu povo.
Os demais elementos insólitos reafirmam as crenças africanas ancestrais, sempre
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presentes no imaginário do povo. Como é o caso de Nyembeti, testemunha do assassinato que Marianinho tenta desvendar. A moça, tida como “atrasada” desde que nasceu e que toma venenos para sobreviver, tem assim relatada sua história:
Seu corpo escapou-se das mãos da parteira, tombando em plena areia. Foi quando do inesperado capim surgiu a cobra sombradeira. (...). A dita serpente fez mais do que passar: lhe espetou a dupla dentição e cravou nela esses líquidos que liquidam. Mas, surpresa. Pois que, nela, aquilo surtiu efeito inverso: a fatal mordedura a fizera renascer e florescer. Aquilo fora como um sopro, o beijo em sono de princesa. (COUTO, 2003, p 205-6)
O retorno de Marianinho às origens funciona como um aprendizado de vida, um crescimento existencial, como ele mesmo constata no final: “As cartas instalavam em mim o sentimento de estar transgredindo a minha humana condição. (...) Afinal, a maior aspiração do homem não é voar. É visitar o mundo dos mortos e regressar, vivo, ao território dos vivos.” (COUTO, 2003, p 257-8)
Em O último voo do flamingo, é com muito humor que Mia Couto tece o estranhamento na narrativa. A história se passa em Moçambique, após a guerra de independência. Um italiano, enviado da ONU, instala-se na pequena vila de Tizangara para investigar a origem de explosões que sucessivamente estariam matando soldados das Nações Unidas. O estranhamento maior, acrescido do aspecto cômico, é que cada homem explode, literalmente, restando de seu corpo apenas o pênis que se projeta como um objeto voador, no momento da explosão. A fala do feiticeiro reitera o aspecto hilário de que se reveste o episódio:
Analise bem: o que é que resta dos explodidos? Uma perna? Um olho? Uma orelha? Só sobram as pichotas dos gajos. Sim, o resto se evapora. Já me foi visto homem sem pila. Mas, agora, pila sem homem, me desculpe. O senhor me olha ziguezangado. Pergunto-lhe ainda: alguém consegue tirar a água toda do mar? É o mesmo, mesmérrimo. Não se tira o sangue todo de um corpo. Então lhe inquiro mais: por onde foi esse sangue dos arrebentados? Por onde, que nunca
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sobrou nem gota? O senhor que é branqueado, o senhor não conhece as respostas. (COUTO, 2005, p.154)
Tais acontecimentos, que na verdade são explosões de minas colocadas estrategicamente por autoridades com intuitos políticos, longe de serem aceitos com naturalidade, causam espanto na população, que, por suas crendices e superstições, tecem uma série de suposições, atribuindo tal fenômeno a bruxarias, entre outras possibilidades.
Na nossa vila, acontecimento era coisa que nunca sucedia. Em Tizangara só os factos são sobrenaturais. E contra factos tudo são argumentos. Por isso, tudo ocorreu, ninguém arredou. E foi o inteiro dia, uma roda curiosa, cozinhando rumores. Vocabuliam-se dúvidas, instantaneavam-se ordens: (COUTO, 2005, p.15)
Como se trata de uma narrativa que prima pelo viés cômico, há vários episódios risíveis, que de certa forma contrastam com momentos em que se evidencia uma atmosfera que beira o trágico pelos acontecimentos nefastos que são resgatados pela memória do narrador. É o que se observa em suas evocações familiares cujos fatos constituem estranhamentos no romance:
Nessa noite, meu pai se adentrou no escuro após a refeição. Seguia para junto do rio, entre os capins mais altos. Pela primeira, vez eu o segui espiando, a espreitar a verdade de sua fantasia de pendurar o esqueleto. Foi então que, por trás dos arbustos, me surpreendeu a visão de arrepiar a alma: meu pai retirava do corpo os ossos e os pendurava nos ramos de uma árvore. Com esmero e método, ele suspendia as ossadas, uma por uma, naquele improvisado cabide. (COUTO, 2005, p.211)
O fato mais estranho da narrativa, entretanto, se dá no final. É um desfecho inusitado, que longe de fornecer explicações diretas, traz, qual nas narrativas saramagueanas, a marca do mistério, fundado numa grande alegoria. Enquanto o narrador se despede do pai, cujo corpo sobrevive sem os ossos, na “condição invertebrada”, velando-
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lhe o sono, se dá conta do enorme abismo que se abriu na terra, engolindo o continente africano. A explicação para o acontecimento insólito vem do próprio pai do personagem-narrador: “Vendo que solução não havia, os deuses decidiram transportar aqueles países para esses céus que ficam no fundo da terra.” (COUTO, 2005, p.216)
Essas palavras, partindo da sabedoria que advém com a velhice, revelam a ideologia que se faz representar através dos recursos alegóricos. Em várias terras da África, o destino das nações havia sido entregue a pessoas ambiciosas que “governavam como hienas”. Todas as formas para consertar esses governos foram tentadas em vão, como rezas, bruxarias e promessas aos santos. “Não havia melhora para aqueles países. Faltava gente que amasse a terra. Faltavam homens que pusessem respeito nos outros homens”. (COUTO, 2005, p.216)
Referindo-se aos ritos de renovação e às atitudes do homem arcaico em relação à vontade de desvalorização do tempo, Mircea Eliade afirma que todos os ritos e comportamentos poderiam restringir-se ao seguinte enunciado:
Se não lhe prestar qualquer importância, o tempo não existe; por outro lado, quando se torna perceptível (devido aos “pecados” do homem, isto é, quando este se afasta do arquétipo e mergulha na duração), o tempo pode ser anulado. (...) Tal como o místico e o religioso em geral, o primitivo vive num presente contínuo. (ELIADE, 1985, p. 100-1)
Noutras palavras, o abismo que surge engolindo o continente africano seria como a anulação do tempo e o retorno ao tempo primordial, ao caos, que, escatologicamente, anunciaria um novo nascimento, advindo da morte e da destruição: um novo cosmos.
Portanto, mais uma vez a marca essencial da obra de Mia Couto se inscreve nesse romance: o resgate da cultura africana, com suas crendices, superstições; ritos e magias, aliados à poesia e à consciência político-social para apreender o estigma de um povo colonizado, cuja independência política não implica mudanças na vivência de suas origens e de sua cultura.
Apesar desse final apocalíptico para o continente africano, o romance abre uma esperança com a alusão ao voo dos flamingos, que, segundo explicação do próprio Mia
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Couto, “os flamingos são os eternos anunciadores de esperança”, de acordo com uma tradição do Sul de Moçambique.
Essa referência aos flamingos, justificando o título do romance, remete para a função da escrita, que para o autor, seria a de se voltar contra os poderosos: “Contra a indecência dos que enriquecem à custa de tudo e de todos, contra os que têm as mãos manchadas de sangue, contra a mentira, o crime e o medo, contra tudo isso se deve erguer a palavra dos escritores”. (COUTO, 2005, p.224)
Noutras palavras, a palavra dos escritores seria como o voo doa flamingos, eternos anunciadores de esperanças.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COUTO, Mia. O último voo do flamingo. Paulo: Companhia das Letras, 2005
______. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
______. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno. Lisboa: Edições 70, 1985
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 2008
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero10/mia.html
Número 10 (2009) - ISSN 1981-870X