ALFARRÁBIOS
Apresentação
Cláudia Amorim (UERJ)
Em agosto de 1865, Antero de Quental, então estudante da Universidade de Coimbra, publica um volume de poesia intitulado Odes Modernas. Para Antero e alguns estudantes dessa Universidade, a poesia consagrada pelos “bardos oficiais” (entre os quais se incluía António Feliciano de Castilho) se mostrava incompatível com os novos ares que se respiravam na sociedade. Para esses jovens estudantes, não era mais possível produzir poemas de cunho árcade ou de extração sentimentalista como os que dominavam o cenário poético português. Era preciso “modernizar” o discurso poético e afiná-lo com as novas idéias acerca da história, da ciência, da literatura. Assim, influenciado pelas leituras de Proudhon, Michelet entre outros, Antero busca alterar o código estilístico tradicional e defende uma poesia utilitária, rejeitando a idéia da “arte pela arte”. Advoga para o poeta o lugar de apóstolo da verdade e inaugura um novo caminho na produção poética portuguesa que será trilhado igualmente por Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Guilherme de Azevedo entre outros. Trata-se do romantismo social.
As Odes Modernas propunham realmente uma nova estética, mas, segundo Alberto Ferreira, o primeiro texto que constitui a verdadeira ruptura em relação aos modelos tradicionais, e que não só diz respeito à arte, ao estatuto do artista como também se relaciona ao paradigma liberal, é a Nota sobre a missão revolucionária da poesia, cujo tema central é a idéia de que “a poesia moderna é a voz da revolução”.
Nessa Nota, Antero antecipa aquilo que irá, em 1871, nortear sua intervenção na primeira conferência democrática do Casino Lisbonense: a noção de que é preciso conhecer o grande espírito de revolta que caracteriza uma época, capaz de engendrar uma transformação política do organismo social.
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Nota (Sobre a Missão Revolucionária da Poesia) – Posfácio às Odes Modernas¹
Antero de Quental
Este livro é uma tentativa, em muitos pontos imperfeita, seguramente, mas sempre sincera, para dar à poesia contemporânea a cor moral, a feição espiritual da sociedade moderna, fazendo-a assim corresponder à alta missão que foi sempre a da Poesia em todos os tempos, no Rig-Veda ou nos Lusíadas, em Tirteu como em Rouget de L’Isle – isto é, a forma mais pura daquelas partes soberanas da alma colectiva de uma época, a crença e a aspiração. – Partindo desse princípio – a Poesia é a confissão sincera do pensamento mais íntimo de uma idade – o autor, na rectidão imparcial da sua lógica, havia de necessariamente concluir que esta outra afirmação – a Poesia moderna é a voz da Revolução – porque a Revolução é o nome que o sacerdote da história, o tempo, deixou cair sobre a fonte fatídica do nosso século. Como do seu Deus dizia o apóstolo antigo, in eo vivimus et sumus, podemos nós com mais razão ainda afirmar do grande espírito de revolta da nossa idade – nele e por ele é que somos, por ele e nele é que vivemos. – O ar que a nossa sociedade respira, a atmosfera turva e agitada mas vivificante, em que vai penetrando dia a dia, não é já composta, não de boas e pacíficas crenças velhas, de resignação, de obediência, de fé sublime...e cega. Outro é o ar! Abrem-se os olhos para ler as contradições dos santos, dos venerandos, dos excelentes livros antigos. Estendem-se as mãos para palpar, sob os vestidos de brocado dos bons ídolos doutrora, o pau de que eram feitos... e o ferro também muitas vezes. A quem há dois séculos fizesse, a metade que fosse, disto tudo, enforcavam-no sete vezes os Reis, como a réu de lesa-majestade, e os Padres, como a ímpio e sacrílego, queimavam-no sete vezes setenta vezes. Nós hoje fazemos tudo isto, e preparamos nossos filhos para poderem fazer o dobro
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ou o triplo dentro de alguns anos – e temos a modesta humildade de recusar o nome de revolucionários! e não queremos que nos chamem revolucionários!
Isto é pasmoso – e pasmosamente curioso! Os nossos Ministros de Estado fazem e dizem coisas por que ainda há cinquenta anos seriam generosamente premiados com as masmorras ou a forca. Os nossos Professores ensinam à mocidade as mais audaciosas máximas de livre-exame e independência, o que lhes valeria no século passado uma boa e bem ateada fogueira, convenientemente adornada de cruzes, imagens e outros símbolos de tolerância clerical. Os nossos Jornalistas, esses esplanariam Danton e Desmoulins, se Desmoulins e Danton pudessem gozar a inestimável vantagem de ouvir estes mancebos dissertando sobre os direitos da palavra e a omnipotência da opinião... O Estado, a Igreja, o Ensino, a Família, a Arte, a Prosperidade, tudo isto exala hoje um fortum sulfuroso e infernal de heresia e revolução que sufoca – mas tudo isto cora viriginalmente de pejo, geme e se aflige com a injustiça, se o não comparam pelo menos com os tempos seráficos de Gregório VII e de Carlos Magno!
Que provam todas estas contradições, esta hipocrisia do tempo, este maquiavelismo inconsciente da nossa sociedade, senão o triunfo da Revolução que domina, penetra, arrasta os seus próprios inimigos e até lhes fornece as mesmas armas com que cuidam feri-la de morte nos seus combates grotescos de pigmeus? Prova uma outra coisa ainda, e mais grave, e tristíssima, porque envolve uma ruína moral. É a desorganização, o esfacelamento espiritual de uma classe que foi grande e viva enquanto soube conservar dentro de si a fé e o calor das ideias revolucionárias e que, em menos de cinquenta anos, jaz caída por toda a parte, vacilando à mercê de todos os ventos; e, aí mesmo onde ainda triunfa, perdeu a coragem, a inteligência, a consciência do tempo, de si e da situação actual da sociedade. Descreu das ideias que a fizeram grande e forte; atraiçoou a causa por que fora heróica e nobre; e para logo o espírito da vida a abandonou e a onda santa, retirando-se, lhe deixou nua a sua praia. Ei-la aí está agora, sem
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abrigo entre as tormentas do passado e as do futuro, sem coragem em face dos inimigos que surgem de cada lado, e – o que é pior – sem inteligência, sem dignidade, ignorante e corrupta. Não há já mão que a possa salvar. O seu nome é contradição. Contradição de origens e de tendências. Contradição de desejos e de condições. Contradição de palavras e de obras. Crê-se revolucionária, é-o pela vontade, mas, sem o querer, estorcendo-se a cada passo, as suas acções são revolucionárias! Com os olhos no passado, caminhando como quem recua, é ela todavia quem abre as estradas por onde a sociedade, que em vão tenta suster, se há-de precipitar para o mundo desconhecido do futuro. A sua cobardia actual, a sua ambição egoísta, a sua corrupta avareza, para tudo dizer, fazem dela uma coisa fatalmente em oposição com as suas origens, com a situação que ela mesmo criou, com as grandes tradições, enfim de um passado de ontem e que já hoje a aflige como um remorso. Metade do corpo quer ir, forceja, precipita-se; mas a outra metade, como sob a influência de um sortilégio mortal, recusa-se ao menor movimento. São as forças contraditórias, desencadeadas pela doença final, que se combatem já sobre esse miserável corpo votado à morte! Daí a cegueira, a banalidade, o medo, a dilaceração interior que caracterizam hoje a classe média – a sua condenação.
Quos Deus perdere vult prius dementat.
Que os meus quase patrícios de Portugal se não aterrem! Todas essas coisas anárquicas estão a cinquenta e a cem léguas das nossas terras patriarcais e a mil ou duas mil das nossas não menos patriarcais inteligências. Sobre outros tectos, sobre outras searas pairam as nuvens minacíssimas da próxima tormenta! A terra emudece, o ar solta suspiros misteriosos com o pressentimento da tempestade que se avizinha! Mas sob os nossos tectos reina o contentamento dos simples; e, se as nossas searas nos não recusam o pão quotidiano dos crentes, que nos fazem a nós revoluções, democracias, progresso e leis da história? O progresso e a história são alguma coisa de turvo de vertiginoso de incompreensível. Para vivermos livres dos solavancos horríveis do torvelinho
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social resolvemos nós o problema de um modo todo nosso e a que, ao menos, se não negará originalidade – viver fora da história e do progresso. Era para nós que, há já trezentos anos, Sancho Pança inventava os seus provérbios.
Entretanto o tempo segue impassível o seu caminho e arrasta-nos a todos com as nossas ilusões ou as nossas evidências, com as esperanças, as conjecturas e os desejos que são bóias com que nos seguramos sobre o mar fundo e escuro que nos levanta e vai arrebentando. Lá se verá de que banda estavam a razão, a fraqueza e a coragem, e de que banda a ignorância, a má-fé e a cobardia. Lá se erguerá uma grande voz, dura e amarga para certos ouvidos, chamando a todos, cada um pelo seu nome, para as recompensas e para as punições...
Todavia a velha sociedade desconjunta-se e, pelas fendas da jangada rota, já se vê claramente a cor de onda que a mina por debaixo e a gasta como um corrosivo violento. Essa cor é negra – mas não é cor de morte. É cor de vida, pelo contrário. De vida para quem, pelo coração, sabe apreciar o valor desta palavra Liberdade; para quem mede pela altura de um desejo humano a grandeza da dívida de ventura que os homens têm direito de exigir ao mundo; para quem, enfim, não compreende amor de Deus e amor do Próximo imposto, escravo, fatal... como se o amor pudesse ser, em vez de espontaneidade e livre atracção, ódio e servidão. – Para os outros todos será cor de morte; mas não serão já mortos esses tais desde a hora primeira do nascimento?
Falemos dos vivos. Os vivos não são os que levantam ruidosamente o pó dessas estradas sob as rodas de seus carros opulentos. Não são também os que falam e se apresentam ante os olhos sensuais da turba envoltos nas dobras enganosas do manto de lantejoulas das frases vagas mas brilhantes com que se captam os sentidos de quem não tem razão nem sentimento. Não são ainda os sábios, profetizando do centro de suas nebulosas, lançando, em meio das nuvens de palavra, os oráculos de uma ciência sem fé e sem alma, vendida aos factos, à
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espera sempre dos acontecimentos, para se inspirar deles na composição artificial de sistemas, que o Mundo aceita porque o absolvem, mas que rejeita a Razão porque não são livres. Os vivos, enfim, não são os que mais o parecem; os ruidosos, os activos que já de longe se vêem e ouvem: como em tempo de epidemia não está a saúde no homem que anda, gesticula e corre, encobrindo sob a agitação febril o veneno do mal que em breve o fará cair extenuado. Tudo isso que por aí tumulta, freme e enche o ar de ruídos, obedece à excitação da febre precursora da morte. A vida não é o movimento desordenado: e nos gestos deles não há harmonia nem ordem. Tudo isso é o gozo e a matéria: mas a vida é a consciência e o espírito.
Espírito e consciência! eis aí o nome do futuro. Ao presente (chame-se ele embora Igreja ou Estado, Ensino ou Direito, Propriedade ou Indústria), ao presente cabem-lhe seguramente os epítetos de grande, ruidoso, importante e ainda talvez de seguro. Ah! Porque não havia ele também de merecer o nome de consciencioso e espiritual? Poupar-se-aim assim à história algumas e bem amargas tristezas que já lhe estão iminentes! Mas não podia ser. Não se serve bem a César e a Cristo ao mesmo tempo. Ao pobre, ao deserdado dos bens do mundo, que lhe deixaria então a Justiça eterna, se até os bens da alma pudessem ser feudo exclusivo de ingratos opressores? se até a flor da verdade, chamada espírito, pudesse também servir para adornar a coroa usurpada de embusteiros e tiranos? Órfãos, abandonados no grande deserto social, ficou-lhes ao lado, só e invisível, mas eterna e irresistível, a Justiça de uma causa que há-de triunfar porque é a causa da razão e da verdade.
É nestes que reside a Consciência É nestes que habita o Espírito. Escuros sim e confusos (porque de propósito lhes fazem a noite em volta) mas lá estão no fundo, bem no fundo do coração dos oprimidos, esses brilhantes de inestimável preço, que o futuro há-de polir para a coroa imperial da rainha que se espera, a Liberdade dos povos! E se o povo parece ignorar, na sua miséria extrema, o tesouro que tem dentro; se descrê e – embrutecido Esaú – está a ponto de vender
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esse morgado de Deus pelo prato de lentilhas que ironicamente lhe oferece um irmão bárbaro e avarento – não se jubilem excessivamente com isso os Jacobs das cortes, das sacristias e dos parlamentos! O contrato odioso não se passa hoje, como outrora, em pleno deserto arábico, onde a única testemunha que podia intervir, Jeová, tinha o natural embaraço de ser cego e surdo. Hoje Jeová deixou enfim as alturas e habita modestamente entre os homens, transformado em alguns centenares de pequenos deuses bastantemente satisfatórios que vêem e ouvem melhor do que se fossem deuses grandes. São esses que andam a pregar ao povo o que o grande antecessor deles, o defundo Senhor dos Exércitos, não consentiu jamais que Moisés revelasse aos filhos de Israel – o direito do homem em face do seu semelhante: o direito do homem em face da Natureza: o direito do homem em face de Deus. – São esses a quem pertence o futuro – porque o número deles aumenta dia a dia – porque do céu que eles prometem todos podem ver a escada, solidamente construída de razão e de justiça – porque falam aos pobres, porque os chamam a si; e os pobres quem os contar no mundo há-de achá-los tão numerosos como as lágrimas que os ricos têm feito chorar – porque, enfim, um instinto secreto adverte a todos de que a verdade está na palavra daqueles homens para cujo triunfo conspiram ainda os seus mais ferozes inimigos. Estes é que são os apóstolos de um Evangelho tão grande que pode conter no seio todos quantos têm pregado ao norte e ao sul, os Cristos de todas as raças e de todas as cores. Estes são, finalmente, a Igreja militante da Revolução e, como a Igreja antiga dos Confessores, os únicos vivos no meio da multidão inumerável dos que existem. O ponto são, o ponto sensível do corpo tão doente da nossa sociedade é aquele só, porque o resto, inerte a adormecido, só acorda um momento para uma vida fictícia com a excitação galvânica, artificial do prazer ou da ambição. A consciência do homem, a independência do espírito, a santidade do direito, isso é o que menos importa a essa turba de especuladores que, desde a Praça do Comércio até aos Parlamentos e aos Senados, se revolve vertiginosamente no chão da pátria, como vermes sobre um cadáver, alimentando de putrefacção uma vida votada a uma impureza incurável. No meio disto, o que há aí de humano, de animado, de vital, senão o instinto ardente, o sentimento
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profundo de dignidade espiritual que, reagindo contra tantas misérias, dá por alvo aos desejos dos homens a máxima liberdade moral, a independência da alma, a sua emancipação do jugo dos Dogmas enganosos – em Política como em Religião, na Economia como na Moral?
Reconstrução do mundo humano sobre as bases eternas da Justiça, da Razão e da Verdade, com exclusão dos Reis e dos Governos tirânicos, dos Deuses e das Religiões inúteis e ilusórias – é este o mais alto desejo, a aspiração mais santa desta sociedade tumultuosa que uma força irresistível vai arrastando, ainda contra vontade, em demanda do mistério tremendo do seu futuro.
Esta voz, se é a mais alta, deve também ser a mais poética. A poesia que quiser corresponder ao sentir mais fundo do seu tempo, hoje, tem forçosamente de ser uma poesia revolucionária. Que importa que a palavra não pareça poética às vestais literárias do culto da arte pela arte? No ruído espantoso do desabar dos Impérios e das Religiões há ainda uma harmonia grave e profunda para quem a escutar com a alma penetrada do terror santo deste mistério que é o destino das Sociedades!
Está dada a razão deste livro.
¹O posfácio à edição das Odes Modernas, de Antero de Quental, foi extraído da coletânea Antologia de textos da “Questão Coimbrã”, organizada por Alberto Ferreira e Maria José Marinho, cuja primeira edição é de 1980 e preferiu-se aqui reproduzir o texto integral sem adaptá-lo às novas regras do Acordo Ortográfico vigente nos países lusófonos desde janeiro de 2009.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero10/apresentacao_alfarrabios.htm
Número 10 (2009) - ISSN 1981-870X