Artigos
Vargas, a paixão de um suicídio: o irracional e a magia do ato¹
Elizabeth Cancelli
(Universidade de São Paulo - USP)
cancellie@yahoo.com.br
Resumo:
Este artigo pretende refletir sobre a magia do ato de suicídio do presidente do Brasil, Getúlio Vargas, ocorrido em 1954. A análise, que aproxima a História da Psicanálise, retoma o complexo e violento projeto político do qual o ego suicida toma parte.
Palavras-chave: Vargas, suicídio, História e Psicanálise.
Abstract:
The present paper reflects on the “magic” aura surrounding the suicide of president Getúlio Vargas in Brazil, in 1954. Through the conjunction of history and psychoanalysis, this discussion re-reads the complex and violent political project in wich the suicidal subject takes part.
Key words : Vargas, suicide, history, psychoanalysis.
A História, de uma forma geral, tem tido dificuldade em tratar a vida social e política que gira em torno da figura mitológica de Getúlio Vargas. Presa a uma metodologia que não a deixa fugir do positivismo factual e personalista de remontar à esfera do público em torno de datas e fatos, a produção historiográfica dificulta a construção de uma História densa e complexa que pretenda entender o homem e a sociedade; a política e suas paixões.
Talvez por ter sido uma das figuras públicas brasileiras mais influentes do século XX, Getúlio costumava deixar estarrecidos não só os liberais ou a população apaixonada e cega que o seguia nas manifestações massivas, mas o mundo exterior, que nos relatórios diplomáticos secretos expressava sua dificuldade em compreender a personalidade e a incontestável liderança do líder carismático.
Entretanto, a História parece curvar-se diante de um horizonte que permite a ela, pelo refinamento de suas pesquisas e pelo abandono de dogmas em sua reflexão, perceber a complexidade do mundo social que envolveu o longo período em que a figura do líder foi o parâmetro de concretização da utopia social de um grupo e a referência de toda uma nação.
A magia em torno do ato de suicídio de Getúlio Vargas contribuiu para que a mítica construída de herói impedisse o vislumbramento do complexo projeto político e da violência por ele encetada. Ou melhor, o ato do suicídio parece ter concretizado na história aquilo que o ego suicida pretende: assegurar a sobrevivência, não matando apenas a si, mas a muitos outros.
15
Embora a mensagem deixada por Getúlio fosse bem clara em relação ao simbolismo do ato que colocava em evidência a leitura de que a sociedade estava doente, e não ele, as explicações que surgiram na época eram as mesmas que impregnaram a História durante anos. Sobre a morte violenta de Getúlio, falava-se, invariavelmente, sobre três eixos básicos: 1 - o Presidente não cometera suicídio, mas fora assassinado; 2 - o Presidente havia sido colocado, em virtude dos erros de alguns de seus seguidores e pela oposição liderada pela UDN e por Carlos Lacerda, em um beco sem saída; e 3 - o Presidente, para mostrar que amava o Brasil e que estava sendo ameaçado pelas “aves de rapina”, num ato de covardia ou de heroísmo, resolveu morrer e assim libertar o Brasil do derramamento de sangue.2
Na primeira hipótese de explicação, a do assassinato, os “viúvos e viúvas” de Getúlio Vargas explicitavam que não aceitavam de nenhuma forma, apesar das evidências e dos exames de balística, a dura realidade de ver sucumbir o paradigma da brasilidade. As manifestações de histeria registradas no velório e no cortejo que seguiu o corpo de Getúlio Vargas do Palácio do Catete até o Aeroporto do Rio de Janeiro eram o sinal de desespero da massa, educada por tantos anos a ver naquele morto o pai da nação. Era muito provável, para essa massa, que, tendo em vista a atmosfera política do país e as pressões para que o líder renunciasse, tivesse havido um assassinato.
Na segunda hipótese, Getúlio fora de certa forma obrigado a “deixar a vida para entrar na história”, porque, além de enfraquecido pela idade – a visão da época era a de que seus 72 anos estavam lhe pesando -, deixara-se assessorar por pessoas que ou não mereciam sua confiança ou tinham tantos poderes que punham em risco a estabilidade política do país.3 Além disso, a maneira como Lacerda, a UDN, e seus opositores no Exército estavam usando o caso fazia com que não restasse alternativa senão deixar o poder, uma vez que Vargas dissera que do Catete só sairia morto.
Na terceira tese, a do ato heróico, sugeria-se que o suicídio fora a maneira encontrada por Getúlio para deixar a nação livre das “aves de rapina” (os liberais e o capital estrangeiro), que, usando o “mar de lama” que cercava o Palácio, supostamente à revelia de Getúlio, pretendiam chegar ao poder, interrompendo, portando, todo o conjunto de diretrizes que havia sido construído para a nação a partir do golpe de 1930: um destino grande para um país grande, formado por um povo predestinado a ser único.
16
As três vertentes mais comuns de explicação para o ato de suicídio de Getúlio foram sendo acolhidas pela produção política e historiográfica, mas ao longo dos anos mostraram-se inconvenientes para perceber o tempo que envolveu o mais complexo líder político brasileiro do século XX.
Getúlio e as elites que o cercaram produziram, ao longo dos 24 anos em que estiveram no palco do poder, a utopia social que mais penetrou a sociedade como um todo e que mais profundamente construiu um perfil de nação.
Assentada no poder a partir dos anos 1930, essa elite fabricou uma nova ideia de homem, de nação, de brasilidade, de cidadania, de justiça, de trabalho, de educação, de família, de política. Enfim, a complexidade de suas ideias de totalidade construiu um novo sentido para o homem e para as instituições; para as massas e para o líder; para o Estado e para o governo. Essa elite assentou os alicerces para a construção de um Estado moderno e modernizante, sob o parâmetro da utopia de uma sociedade total, para atingir e disciplinar o mundo todo: seja no público, ou no privado.
A construção dessa utopia só seria possível, e assim o foi, porque havia tanto a sensibilidade dessas elites quanto a articulação dessa utopia com a contemporaneidade do mundo em que viviam. Ou seja, explorava-se o comportamento do homem na multidão, ou do homem de multidão. Gustave Le Bon e Sigmund Freud eram apropriados pelos intelectuais do regime e pensava-se em como sensibilizar a população para a identidade com essa utopia e com o seu líder.
Segundo o modelo da nova psiquiatria brasileira apropriada e utilizada pelo Regime, e que vinha revolucionando a visão do homem no público e no privado, trabalhava-se agora eminentemente com a paixão. Era o fim do tratar racional da realidade. Daí o surpreendente sucesso de Getúlio na incorporação das massas ao seu projeto político e às grandes manifestações massivas – feitas antes mesmo da existência do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) – e do convencimento de que a felicidade, para essa massa, só poderia ser atingida através do líder porque, em seu “retrocesso libidinal” 4, o líder passava a ser o referencial de pai, portanto, de verdade e de consciência mítica.5 Não seria por acaso, portanto, que Getúlio assumiria, e muito bem, o papel de PAI DOS POBRES.
17
O poder apelativo desse projeto de utopia era enorme. Ao mesmo tempo em que o Estado se tornava mais duro, ameaçador, complexo e que exteriorizava seu totalitarismo e penetrava mais e mais no mundo privado de cada um, fazendo com que se perdesse a noção de indivíduo para só permanecer a do coletivo, mais e mais a massificação fazia com que contingentes maiores da população se identificassem com o líder; que vissem nesse novo pai o sentido de suas vidas já sem sentido, porque eram vidas de homens da multidão, sem rosto, voltados apenas para a paixão e para a assimilação de dogmas, verdades inteiras e completas.6
As imagens de Getúlio, por isso, eram usadas fartamente. Essa identidade das massas com o Presidente era reforçada constantemente. Nas escolas, nos hospitais, repartições, ruas, casas, todos tinham que ter uma foto de Vargas. Era a prova de que ele estava presente, sempre perto, sempre alerta e sempre disposto a mostrar o rumo certo, fazendo o chamamento de todos para construir uma nação livre dos comunistas, dos liberais, dos capitalistas, do capital estrangeiro. Enfim, das “aves de rapina”.
Mesmo o afastamento da política, no curto período em que esteve em São Borja, na estância Santo Reis, logo após a queda do Estado Novo, contribuiu ainda mais para reforçar a imagem de Getúlio Vargas como leme da Pátria. O mundo precisava dele, e foi nele, no ditador, que a população votou livremente, esperando a redenção e a justiça social. Sua força política era impressionante. Mesmo os comunistas, presos, mortos, exilados durante os anos de excesso da Revolução de 1930, reconheciam o líder.
Nessa perspectiva, o ato de suicídio de Getúlio – ao perceber e viver o desmoronamento de sua imagem, uma imagem que ele mesmo havia criado – não pode ser surpreendente. O suicídio era a negação da morte do líder, do pai da pátria, do pai dos pobres, ou, como interpretava Gastão Pereira Silva, um intelectual admirador do presidente: “Getúlio sentia-se traído pela Pátria. Sua vida seria a morte. Daí o desejo cósmico de viver, de ser imortal”,7 ou seja, “de assegurar a sobrevivência ao mesmo tempo em que recorria a um ato simbólico de solução para o alívio de conflitos”.8
A solução do suicídio implicava que o presidente não poderia ser deposto nem haveria possibilidade de renúncia. Renunciar e ser deposto eram hipóteses que significavam desfazer o casamento da nação com a figura do pai. Era necessário um ato heróico para
18
confirmar aquilo que Getúlio significava desde os primeiros dias da Revolução de 1930: o retrato dos “verdadeiros desígnios da nação”.
A magia, ou a fascinação, de que se reveste esse ato simbólico, a do suicídio heróico, encontra suporte em pelo menos três eixos: 1- na vontade de punir a outrem pela indução da culpa; 2- na forma de hostilizar, já que outros meios de agressão não foram possíveis; 3- e na vontade da revanche, que, pela introdução da culpa e do remorso, excede o desejo de viver. Como postula Emile Durkheim, a perspectiva desse ato implica risco mortal ignorado pelo agente.9
Heróica, a carta-testamento é carregada de dramatismo. Tenta levar até o limite a magia do suicídio heróico. Ela, induzindo à culpa logo no início, diz que “Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo condenaram-me e novamente se desencadeiam sobre mim”. Vargas segue falando de si e da fatalidade do destino que o havia eleito para ser o condutor do Brasil:
Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me de chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social (sic). Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo.10
E aí segue a nomeação de uma série de medidas consideradas, por ele, heróicas. Depois, o Presidente diria, induzindo à culpa e ao remorso, que:
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado.11
E, dramatizando:
Nada mais vos posso dar a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. 12
E continua a dizer, ignorando o risco da morte,13 para reforçar seu papel de guia e atingir a revanche:
19
Escolho este meio para estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo a vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para lutar por vós e por vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força da reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta (...) era escravo do povo e eu me liberto para a vida eterna (...) Vos dei minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. 14
A repulsa manifesta por sua própria existência, “culminando numa perspectiva delirante de punição’15, e o tom dramático da carta testamento de Getúlio Vargas, formando um conjunto que assumiu a magia do suicídio heróico, fizeram ressuscitar os vínculos que Getúlio vinha perdendo com a massa.16 As manifestações massivas, dessa vez revestidas de violência e histeria, voltaram a existir.17
Tratava-se de uma reação inexistente quando Getúlio foi deposto em 1945. Nos dias 24 e 25 de agosto de 1954, a multidão apaixonada saiu desesperada pelas ruas. O comércio, os bancos, as repartições públicas cerraram sua portas. Algumas por luto, muitas por medo. Bondes e coletivos deixaram de funcionar. Grupos armados de pedaços de paus e pedras percorriam as principais cidades do país. Houve enfretamento da população com a polícia e com o Exército.18
No Rio de Janeiro, a Embaixada dos Estados Unidos, a Standart Oil, a Light and Power, a Tribuna da Imprensa, a Rádio Globo foram atacadas. As forças Armadas estavam de prontidão.
As sedes dos Diários Associados de Assis Chateaubriand eram um dos alvos prediletos no país inteiro. Em São Paulo, mas de 200 mil pessoas quiseram invadir os Diários. Em Porto Alegre, foram queimadas as sedes do Diário de Notícias, da Rádio Farroupilha, da Rádio Difusora e do jornal O Estado do Rio Grande. Tudo que lembrasse capital americano tornara-se alvo.
O desespero da população era estarrecedor. Fora-se o guia, fora-se o pai, fora-se o articulador político da utopia. Fora-se da vida para passar para a História. Somente aqueles atos de furor poderiam, por isso, responder à atitude tomada pelo líder: a de um suicídio apaixonado, coberto de encanto.
20
Esse tipo de associação, a do líder com as massas, há muito era desenvolvida por Getúlio. Azevedo Amaral, um de seus intelectuais mais importantes do período getulista, chegou a escrever que
O segredo do estadista consiste exatamente em estabelecer uma espécie de modus vivendi entre o seu pensamento e os seus objetivos e as tendências da coletividade, de modo que este se encaminhe no sentido por ele desejado, sem excessivo constrangimento e identificando-se tanto com a idéia do governante, que acaba por julgá-la originada na sua própria essência coletiva.19
Azevedo deixava claro aquilo que se fazia por intermédio de Getúlio Vargas. É que, ironicamente, a inspiração encontrava-se em Freud - uma das referências obrigatórias na política desenvolvida por Vargas. O proposto era não o de concentrar as atenções nas reflexões de Freud, mas o de levar às últimas consequências o fato de que “as multidões não pedem as verdades, mas a ilusão, característica do desejo insatisfeito”, característica da psicologia das massas.
Ao suicidar-se, a ilusão trabalhada por Getúlio Vargas era a de que sua atitude era a mais corajosa de todas, porque uma atitude de reação, de dignidade, pois, por seu ato de autodestruição, ele estava tentando incorporar a destruição daqueles a quem dirigia seu ódio e sua raiva:20 seus opositores. Não tentava matar apenas a si, mas muitos mais. Para tanto, contava com a identidade entre população e o líder.
Seguindo essa identificação da massa com o líder e o intuito da construção mágica da imagem de um suicídio heróico, a reação pública era completamente compreensível. Além dos mortos e feridos e do quebra-quebra, muita gente acabou presa. A Polícia Federal chegou até a providenciar a prisão de militantes comunistas e de vários líderes sindicais no interior e nas capitais. As manifestações de apreço, de ódio, de histeria alastraram-se pelo país afora, bem como a repressão e a violência. Afinal de contas, esse tipo de manifestação - a repressão e a violência - sempre cercou o mundo de ilusões criado pelo próprio Getúlio Vargas. Não seria no momento do suicídio, mágico, apaixonado e heróico, que deixaria de existir.
21
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARAL, Azevedo. Getúlio Vargas: o estadista. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1941.
CANCELLI, Elizabeth . O Mundo da violência: a polícia na era Vargas (1930-1945). Brasília: Ed. UnB, 1993.
DURKHEIM, Emile. O Suicídio: estudo de sociologia. Lisboa/ São Paulo: Editora Presença/ Livraria Martins Fontes, 1973.
FREUD, Sigmund . Luto e Melancolia. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1974.
QUEIRÓS JÚNIOR, José . O suicídio de Getúlio Vargas através da psicanálise na interpretação de Gastão Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Editora COPAC S.A., 1957.
SKIDMORE, Thomas E. . Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). São Paulo: Paz e Terra, 1979.
VARGAS, Getúlio. Carta Testamento. In:
http://www.rio.rj.gov.br/memorialgetuliovargas/conteudo/expo8.html, acesso em 19 de maio de 2009.
WAHL, Charles William. Suicide as a Magical Act: Clues to Suicide. Edited by Edwin S. Sheldon and Norman L. Farerow (1964?).
22
1 Uma versão preliminar deste artigo foi publicada pela Revista de Pós-graduação em História da UnB em 1994.
23
O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero10/elizabeth.html
Número 10 (208) - ISSN 1981-870X