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Em busca da ilha desconhecida de JosÉ Saramago: um Pequeno Roteiro TurÍstico-LiterÁrio
Mari Guimarães Sousa
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC –BA)
marigsousa@hotmail.com
Resumo:
O presente estudo relaciona literatura e viagens através de análise comparativa entre O conto da ilha desconhecida, de José Saramago, e Mensagem, de Fernando Pessoa, tendo como objetivo avaliar a alma aventureira e destemida dos portugueses bem como questões que abordam o imaginário das águas e a simbologia das ilhas.
Palavras-chave: literatura, viagens, imaginário das águas
Abstract:
The present study relates literature and travel through comparative analysis between O conto da ilha desconhecida, by José Saramago, and Mensagem, by Fernando Pessoa, aiming at assessing the aventureira and fearless soul of Portuguese as well as issues dealing with the imaginary of waters and the islands symbolim.
Key words: literature, travel, imaginary water
Você acredita que ainda existam ilhas desconhecidas? |
( ) Não, então esta viagem nem começa, ou melhor, termina antes de começar. |
( ) Sim, então você está convidado a fazer esta viagem ], mas sem seguro de retorno. |
Cristina Poli |
Essa é a chamada de um (des)pretensioso anúncio turístico encontrado na revista on-line caiman.de que, pela sua originalidade, considerei oportuno para o tema aqui proposto, visto que o texto se inicia com um pequeno relato histórico sobre os portugueses que, acreditando haver terras além Tejo, içaram suas caravelas ao mar e, com muito esforço, aqui chegaram no ano de 1531, mais precisamente na ilha do Morro de São Paulo, na Bahia.
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De acordo com Ianni (2000), a história dos povos está atravessada pela viagem, seja como realidade, seja como metáfora, pois todas as formas de sociedade trabalham e retrabalham a viagem como uma forma de (re)descobrir as alteridades bem como a si mesmo. Ao referir-se à globalização, o sociólogo assinala que o capitalismo já nasceu mundial com a viagem de Vasco da Gama. Movidas pelos preceitos mercantilistas, as viagens ao Novo Mundo proporcionaram, entre os séculos XV e XVI, surtos de expansão do capitalismo, fato que estimulou os deslocamentos transcontinentais.
Muitas são as formas e os motivos impulsionadores de viagens, onde o termo abrange várias significações. Elas podem ser reais ou imaginárias, mas com vários pontos convergentes entre si: seja a busca pelo desconhecido, a surpresa da novidade, sejam as tensões originadas nas confrontações/defrontações de outras formas diferentes de ser, pensar, sentir, agir, realizar, imaginar. Assim sendo, as viagens podem contribuir para o desvendamento de alteridades. Nessa perspectiva, o texto literário apreende o termo em suas mais diversas conotações, não se restringindo apenas ao gênero literatura de viagens.
No contexto da contemporaneidade, as viagens podem ser realizadas virtualmente. Vive-se a “era da informação”, “do acesso on-line”, onde o usuário, conectado a internet, tem a possibilidade de navegar/viajar no ciberespaço e acessar os mais variados tipos de informações sobre lugares diversos bem como as suas especificidades. É também, conforme Giddens, a era do desencaixe, isto é, do “deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço” (GIDDENS, 1991, p. 29).
Tais constatações anunciam que as distâncias tendem a encurtar-se gradativamente. O tempo e o espaço são estâncias constantemente redimensionadas em concomitância com o avanço tecnológico, agora empregado de uma forma mais intensa e globalizada. Assim, o cotidiano de muita gente tem se tornado mais agitado, mais dinâmico, não obstante, de uma forma bastante rotineira. Temos aí um paradoxo: o acelerado ritmo de vida ao qual se submetem tantos indivíduos, especialmente os que habitam os grandes centros urbanos, tem gerado um certo mal-estar, um desconforto, um sentimento generalizado de instabilidade física e emocional, de desorientação. Tal instabilidade pode ser gerada, dentre tantos outros fatores da modernidade, em virtude do excesso de informações, cujo ritmo se mostra, na maioria das vezes, incompatível com o ritmo humano de assimilação em tão curto espaço de tempo.
É fato inegável que a vida humana tornou-se mais fácil com o desenvolvimento e a rapidez dos meios de transporte e de comunicações (telefonia, internet, tv, etc), o que sugere um possível aproveitamento integral do tempo para a solução das questões impostas pelo cotidiano. Entretanto, essas mesmas facilidades propiciam desafios constantes. A rapidez e o corre-corre cotidianos ditam normas de comportamento e interferem sobremaneira no ritmo de vida das pessoas, nos pensamentos, nos sonhos e, por conseguinte, no desejo. Nesse contexto, o desejo de se ganhar muito dinheiro para se fazer uma prazerosa viagem talvez seja o sonho de muita gente: aportar em uma ilha paradisíaca, onde a busca pelo
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prazer apresenta-se como uma solução de re-estabelecimento das forças perdidas, na tentativa de desautomatizar, desrobotizar a mente.
Nessa perspectiva, a atividade turística surge como uma alternativa de entretenimento que possibilita o prazer. No entanto, esta é uma atividade que comumente se restringe às classes economicamente privilegiadas. Sendo assim, quais as alternativas possíveis de viagens para a imensa maioria desprovida de poder econômico? Nessa conjuntura, surge uma alternativa de entretenimento bem mais acessível do que uma viagem de deslocamento físico a lugares desconhecidos. Refiro-me ao prazer de ler.
Muitas propagandas de incentivo à leitura, veiculadas pela mídia (especialmente nas redes de televisão) têm preconizado o papel que a obra literária tem de deslocar pessoas para “outros mundos”, “outras paisagens”, “outras realidade”. Trata-se de livros que proporcionam verdadeiras viagens ao mundo da fantasia. Vale lembrar que as possibilidades são muitas, devido à diversidade de autores e de obras disponíveis. Até aí nada de novo, visto que no mundo ficcional tudo é possível, levando-se em consideração, é claro, as expectativas do leitor.
Na conjuntura dos deslocamentos virtuais, já que a internet foi citada, é acertado dizer que há diversas maneiras de se viajar, além do deslocamento propriamente dito no espaço geográfico, seja à procura do exótico, como bem faziam os românticos ou, como já foi sinalizado, através de leituras prazerosas. Aqui, o termo ‘viajar’ é tomado como metáfora de liberdade; liberdade enquanto estado de espírito, da imaginação solta que pode ser proporcionada através de leituras criativas. Não obstante, temos aí um problema facilmente observável: a constatação de que o Brasil é um país de poucos leitores. Tal fato provém dos profundos problemas histórico-culturais e educacionais, agravados por uma modernização assaz excludente, devido à péssima distribuição de renda. Tais problemas denotam despreparo e falta de interesse das instâncias políticas e executivas no sentido de apreender a problemática no conjunto de suas inter-relações.
Mas, voltando à questão das viagens, Simões, em seu artigo Viajar é preciso?1, retoma a expressão do grande poeta português, Fernando Pessoa, com o intuito de estabelecer comparações entre os motivos que impulsionaram os antigos navegadores e os que impulsionam os viajantes da atualidade. Conforme a autora, a necessidade de aventura, aliada ao desejo da descoberta e da conquista de terras desconhecidas, constitui-se nas principais motivações de deslocamento dos antigos navegadores; por outro lado, assinala que os motivos de viagens atuais são bastante diversificados, uma vez que viajar pressupõe conhecer. Tal busca de conhecimento pode ser efetuada de variadas maneiras, inclusive por meio de navegação, no mais amplo sentido da palavra - de uma viagem imaginária, ou ainda virtual. E, logicamente, tudo isso só se tornou possível em virtude do grande aparato tecnológico hoje disponibilizado, levando-se em conta que tais facilidades possibilitam a otimização do tempo e o conseqüente aumento do tempo livre, apesar dos descompassos de gerenciamento do tempo de cada
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indivíduo. Atributos dos tempos pós-modernos, o avanço tecnológico pede constantemente a re-avaliação de conceitos outrora dados como absolutos.
Assim sendo, proponho uma análise comparativa entre O conto da ilha desconhecida,de José Saramago, e Mar Portuguez, poema inserido na segunda parte do livro Mensagem, de Fernando Pessoa, a fim de verificar a alma aventureira e destemida do povo português sempre em busca do desconhecido e, desse modo, explorar a questão do imaginário das águas, mais precisamente o valor simbólico que é dado às ilhas e ao mar.
Levando-se em conta que o mar, em toda a sua grandeza, se constitui desde os tempos remotos, em um dos elementos que faz parte do imaginário, da história, da identidade e, por que não dizer, da alma dos portugueses, vale dizer que não há nada melhor para retratar a alma e a cultura de um povo do que a sua literatura. No passado, Luís de Camões ressaltou a coragem e o destemor dos grandes navegadores em Os Lusíadas, tema retomado mais tarde por Fernando Pessoaem Mensagem. Nesse caso, torna-se até excessivo dizer que os portugueses foram, entre os séculos XV e XVII, os grandes desbravadores dos mares nunca dantes navegados.
Em seu artigo O Mar, um tema eterno, Hélio Pólvora (1999, p. 28), menciona que “o mar com os seus mistérios, perigos e belezas, com a sua capacidade de pôr à prova o valor moral do homem, sempre será um tema eterno [pois] povoa–lhe o imaginário, atiça-lhe o espírito de aventura” (grifos meus). Aliás, antes mesmo da Expansão Marítima Portuguesa, no séc. XV, o homem contemplava o mar e já sonhava com os grandes perigos a serem enfrentados por aqueles que ousassem nele se aventurar. O mar, portanto, sempre se apresentou como a grande fronteira que precisava ser vencida. Naquela época, os navegadores acreditavam que monstros terríveis e seres fantásticos habitavam as profundezas dos oceanos, além dos imensos abismos poderiam surgir inesperadamente diante de suas rudimentares embarcações, levando-os todos à morte. Daí que o mar durante muito tempo representou o símbolo máximo de força e de poder entre os povos antigos.
Hoje, tais temas ainda habitam o nosso imaginário, e a prova disso é a predominância de narrativas que exploram o mar, seja como cenário, seja como protagonista, em suas estórias. Essa temática é tão antiga quanto a humanidade. Manifesta-se em episódios bíblicos como A Criação do Mundo (Gen 1, 1-11), O Dilúvio (Gen 6, 17); e em a Ruína dos Ímpios; Libertação de Israel (Is., 27-1), há um episódio que narra o triunfo do Cristo sobre o monstro marinho, símbolo do mal, e muitos outros. Também o Corão “o apresenta como um símbolo do poder e da benevolência divina e de sua violência, uma das características fundamentais do Apocalipse.” (Sabbaghi, 1991).
Foi pensando nesses aspectos que li O conto da ilha desconhecida (1998), de José Saramago. Um conto alegórico que narra a história de um homem do povo que foi bater à porta do rei a fim de lhe pedir um barco – mas esse não seria um barco qualquer. O castelo possuía muitas portas, dentre as quais a das petições, que por razões óbvias, possuía uma fila com uma imensa multidão que pouca atenção recebia do
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rei e de seus auxiliares, já que o rei achava-se sempre ocupado junto à porta dos obséquios (feitos ao rei, convém ressaltar). Depois de três dias de longa e paciente espera, o audacioso homem conseguiu do rei um barco para ir à procura da ilha desconhecida. E pela sua atitude de homem determinado, que enfrentou o rei, acabou levando também consigo a mulher da limpeza que atendia a porta das petições. Ele a fizera passar, enfim, pela porta das decisões, “que é raro ser usada, mas quando o é, é” (SARAMAGO, 1998, p. 17). O problema é que o tal homem sequer sabia navegar e tampouco onde encontrar a tal ilha (já que se tratava de uma ilha desconhecida!). Pensara o rei, então, tratar-se de um “louco varrido, dos que têm a mania das navegações, a quem não seria bom contrariar logo de entrada” (SARAMAGO, 1998, p. 12). O fato é que o propósito, talvez inconsciente, daquele homem era o de descobrir-se a si mesmo, buscar o sentido de sua própria existência. A personagem apesar de não saber navegar, tinha alma de navegador, falava como experiente marinheiro. Eis o diálogo com o capitão, “é estranho que tu, sendo homem do mar, me digas isso, que já não há ilhas desconhecidas, homem da terra sou eu, e não ignoro que todas as ilhas, mesmo as conhecidas, são desconhecidas enquanto não desembarcamos nelas,” (SARAMAGO, 1998, p.18).
Nesse sentido, Costa Lima (1991, p. 139), diz que “fazer não é necessariamente saber [pois] sábio não é necessariamente o que faz senão o que é capaz de revelar o que significa o que se faz”.
Sempre tive a idéia de que para a navegação só há dois mestres verdadeiros, um que é o mar, o outro que é o barco, E o céu [disse a mulher], estás a esquecer-te do céu, Sim, claro, o céu. Os ventos, As nuvens, O céu, sim, o céu. (SARAMAGO, 1998, p.25)
Exatamente nesse ponto é que entra a questão do imaginário. O homem que queria um barco herdara da sua cultura um saber tácito sobre o mar. Ele não temia o mar. Ele pertence à raça dos navegadores, como bem dissera Fernando Pessoa através de seu heterônimo Álvaro de Campos,
Eu, da Raça dos Navegadores, afirmo que não pode durar!
Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!
Em relação à simbologia da ilha, esta é bastante variada. De acordo Chevalier & Gheerbrant (1999, p. 502),
A ilha evoca refúgio. A busca da ilha deserta, ou da ilha desconhecida, ou da ilha rica em surpresas, é um dos temas fundamentais da literatura, dos sonhos, dos desejos. [...] A ilha seria o refúgio, onde a consciência e a verdade se uniriam para escapar aos assédios do inconsciente. (Grifos meus).
Diegues em seu estudo sobre Ilhas e mares: simbolismo e imaginário, diz que o imaginário humano encontra-se repleto de imagens referentes às ilhas. Tais manifestações surgem em forma de mitos, símbolos e imagens. Segundo o autor,
O mundo insular é um símbolo polissêmico, com vários conteúdos e significados que variam de acordo com a História e as sociedades. Mundos em miniatura, centro espiritual primordial, imagem completa e perfeita do cosmos, inferno e paraíso, liberdade e prisão, refúgio e útero materno (DIEGUES, 1998, p.13).
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Ao que parece, o homem que busca a ilha desconhecida está, na verdade, buscando um refúgio e, ao mesmo tempo, a si próprio. Todavia, para Bachelard, a viagem marítima está intensamente associada à morte e à dor da separação pois,
Para enfrentar a navegação, é preciso que haja interesses poderosos. Ora, os verdadeiros interesses poderosos são os interesses quiméricos. São os interesses que sonhamos e não os que calculamos. São os interesses fabulosos. O herói do mar é um herói da morte. (BACHELARD, 1998, p.76)
Em Mar Portuguez: da busca ao desconhecido à exaltação nacionalista (1999), Ferraz et al, fazem um estudo interpretativo em que destacam o destemor e o espírito de conquista dos portugueses. No poema III Padrão, por exemplo, o poeta dá voz ao grande desbravador Diogo Cão que faz umaforte exaltação à pátria portuguesa,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano
O mar sem fim é portuguez
No poema XI, A última nau, o poeta questiona em que ilha indescoberta teria desaparecido El-Rei D. Sebastião
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
No poema Padrão, podemos entender a viagem enquanto deslocamento como metáfora da conquista, ou seja, o homem é movido pelo desejo de mudança, pelo prazer ou por necessidade de descoberta do espaço. Já no poema A última nau, o termo encaixa-se muito mais enquanto metáfora do estranho, do desconhecido, o que gera um certo temor.
De acordo com Lacan (apud Ferrara, 1999, p. 19), a necessidade de deslocar-se pode, por muitas vezes, passar a ter um caráter existencial e psicanalítico. Isso acontece quando
O sujeito se autodescobre no confronto com outro, porque [este] lhe permite traçar o limite e encontrar a diferença entre o que é interno e o que é externo, ou seja, o que sobra ou é próprio do outro é, exatamente, a dimensão do que falta no sujeito.
Tal pensamento expressa, dessa forma, a necessidade que tem o homem de viajar, de descobrir outras paisagens, outras pessoas, de defrontar-se com o diferente, na eterna busca de si mesmo, de modo que a própria inquietação o impulsiona para o novo, para melhor compreender a vida em todos seus mistérios, na tentativa de ser mais feliz.
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Para Ferraz et al (1999, p. 63-64), “as conquistas marítimas incutiram na alma dos poetas portugueses o sentimento de clamor e exaltação à pátria glorificada, convergindo para o sentimento nacionalista. Este sentimento [...] tem relação direta com a história do povo português”
Em uma entrevista à Revista Veja, em dezembro de 1997, Saramago disse que o conto foi escrito a partir do convite dos responsáveis do Pavilhão de Portugal para EXPO 98. Teria declarado o referido autor,
Gostaria que esta minha Ilha Desconhecida fosse igualmente um convite para muitos leitores brasileiros: o de viajarem até à terra portuguesa, o de participarem no que será, sem dúvida, a Grande Festa dos Oceanos. A melhor representação do Brasil será a dos brasileiros. Venham.
Quero aproveitar, literalmente, o convite do Saramago, a fim de que possamos experienciar uma leitura do referido conto, onde a leveza e a rapidez - exigência dos tempos modernos, conforme Calvino (1990), pela forma como é tratado o tema – busca do autoconhecimento - é capaz de nos proporcionar um prazer que se assemelha a uma tranqüila, profunda e, ao mesmo tempo, divertida viagem.
Embora se trate de um tema bastante freqüente na literatura universal, Saramago conseguiu transformar uma simples fábula em uma obra-prima através do tratamento artístico da linguagem, o que lhe é bastante peculiar, de seu engajamento crítico com a problemática social, além da costumeira ironia utilizada pelo mesmo.
Para Araújo (1999, p. 60), o mais importante da escritura do autor de Ensaio sobre a cegueira, não é exatamente os temas por ele trabalhados, mas a forma como ele valoriza a língua portuguesa através de seus recursos imagéticos e expressões lingüísticas “em um narrador que privilegia o uso do idioma como ferramenta estética”.
Contudo, o que considero de mais belo no conto é justamente a atmosfera de sonho que se instala e que se desenvolve num clima romântico quando se encontram, a sós, o homem que queria um barco e a mulher da limpeza. Segundo Araújo (1999), o amor, para Saramago, detém conteúdos de permanência existencial.
Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher forma pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.(SARAMAGO, 1998, p. 35)
Ao nomear o barco, as personagens cristalizam algo, tornam-no concreto. Conforme Lima (1991, p.139), “bem nomear é não se deixar envolver pelos disfarces do mundo. É, portanto, uma tarefa tanto de conhecimento como de exercício ético”.
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Outro aspecto que convém ser destacado no conto é a beleza dessa narrativa que converte exatamente para aquilo que Jobim (2002, p. 150), estabelece:
Contar uma estória, ou compreendê-la, é sempre ir além da suposta individualidade pessoal do escritor ou do leitor: é fazer uso da herança cultural em que se enraíza a própria existência da narrativa, como forma possível de dar sentido ao real. Contar uma estória, ou compreende-la pressupõe o conhecimento dos meios de produzir sentido em determinada cultura.
Assim, o imaginário do autor ao se concretizar neste belíssimo conto, remete-nos a uma verdadeira viagem cujo deslocamento é muito mais vivenciado, porque possibilita, através da sua literatura, o que muitos críticos denominam de emancipação do espírito.
Nessa dimensão, a viagem corresponde a
uma metáfora das fronteiras entre o subjetivo e o objetivo, entre o imaginário e o concreto, entre a realidade e a ficção; nessa metáfora a viagem se desdobra, se multiplica e se ultrapassa em “viagens”, não necessariamente reais. (FERRARA, p. 19).
E como bem sugere Cristina Poli, você acredita que vale a pena partir em busca da ilha desconhecida? Dentre as opções que ela dispõe:
( ) Sim… então abra uma poupança, passe a vida inteira escravo do destino e não esqueça de comprar uma televisão moderna e virtual.
( ) Não… então ice suas velas e torne-se capitão de sua própria viagem.
Contrariamente do que ela parece recomendar, eu diria que sim, que vale, e muito, a pena partir em busca da ilha desconhecida, mas não para ficar escrava do destino ou coisa parecida, mas para ir em busca de si mesmo, como sugere Saramago nesse conto: ser o capitão de sua própria viagem. Aliás, como bem disse o grande poeta português, Fernando Pessoa, TUDO VALE A PENA SE A ALMA NÃO É PEQUENA...!
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero8/Mari.htm
Número 8 (2008) - ISSN 1981-870X