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PREDADORES E, AINDA, A ESCRITA DA NAÇÃO
Robson Lacerda Dutra
(UERJ)
robson.dutra@oi.com.br
Para que os homens permaneçam ou se tornem civilizados, é necessário que entre eles a arte de se associar se desenvolva e se aperfeiçoe na mesma proporção que a igualdade de condições cresce. |
(Tocqueville) |
Resumo:
Se em obras anteriores de Pepetela percebe-se o desenrolar de personagens que oscilam do sentimento “épico” inerente às utopias dos anos 60, passando pela fratura “trágica” dos ideais revolucionários, até a constatação do ocaso do herói, em Predadores, lê-se a elipse da elipse deste protagonista. Tal se dá quando biografias forjadas por personagens do cenário pós-independente tentam autenticar os eventos que concorrem para a escrita da história de Angola e para o apagamento da figura heróica. Contudo, o olhar atento do escritor observa esta ameaça predatória, espelhando contrastes e transformações de seu país que, todavia, não deixam de lado a esperança que reacende o amor entre escrita e nação.
Palavras-chave: história, ficção, Angola, pós-colonialismo, herói, vilão.Abstract:
In Pepetela’s novels one can perceive the route of heros, moving from the “epic” atmosphere inherent to the sparkling of utopia, in the 60’s, passing by the “tragic” fracture of revolutionary ideals, to finally reach their complete disappearence. In Predadores, one can also read the elipse of the elipse of this same character, due to, among other characteristics, fake biographies which, in post-colonial scene, try to change the way the history of Angola is written that, once again, reinforce the impossibility of heros now-a-days. The eye of the writer observes this predatory menace, reflecting contrasts and transformations in his country that, however, are not able to overshadow hope and love between literature and nation.
Key words: history, fiction, Angola, post colonialism, hero, vilain.Introdução
Na introdução de Corte geral, seu livro de crônicas, o escritor guineense Carlos Lopes narra o choque entre dois veículos por ele presenciado em seu país-natal. A colisão fora resultante do fato de um dos motoristas conduzir seu veículo em marcha-ré ao passo que o outro fazia, simultaneamente, o retorno em determinada avenida.
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A confusão ali oriunda tinha como cerne o fato de, em crioulo, os dois termos – “marcha-ré” e “inversão de marcha”, ou seja, o ato de proceder a uma curva de 180 graus – serem equivalentes, o que fazia com que cada dos motoristas culpasse o outro pela infração (LOPES, 1997, p. 11). Este foi, igualmente, o mote para que o autor, lançando mão da semântica dos termos, passasse a refletir sobre a aplicabilidade de tais conceitos aos Estados africanos pós-independentes, questionando, assim, em que medida ocorreu uma inversão radical ou tão somente um mero retrocesso em seus percursos.
Embora muitos pensem que esses países optaram por andar para trás, sobretudo a partir do prisma socioeconômico, Lopes pondera que é mais acertado afirmar que tem havido uma “inversão de marcha” na medida em que “através das políticas implementadas, desmandos, corrupção, mudança de horizonte, tomou-se uma decisão deliberada de voltar as costas ao desenvolvimento” que caracteriza uma decisão deliberada que o simples fato de “andar às arrecuas” (p. 12).
Ainda segundo o autor, há os que se questionam sobre os ganhos da independência, como sugere a polêmica à volta das declarações de eminentes políticos sobre o “erro da independência”, o que o faz indagar:
Será que o nó górdio era político ou econômico? Todo o debate sobre o neocolonialismo é ressuscitado agora para considerar essa opção positiva em vez de negativa, se bem articulada com uma dependência madura, a exemplo das poeiras territoriais da França, Holanda ou Grã Bretanha (LOPES, 1997, p. 12).
Para ele, numa época em que, apesar da desenvoltura que o homem africano tem em discorrer, por exemplo, sobre inflação e políticas cambiais, ele ainda não conseguiu perceber o “significado real de autonomia cultural ou mesmo de democracia” (p, 12), sendo, conseqüentemente, incapaz de definir-se por completo.
Tais questionamentos encontram respaldo no pensamento crítico do historiador Joseph Ki-Zerbo que em suas reflexões sobre a África salienta sua concepção de história, que se sustenta no deslocamento por ele percebido no foco que tal saber tem, tradicionalmente, do passado para a contemporaneidade dos fatos que representa. Para tanto, ressalta o que denomina “os dois pés da história”, a saber, o da liberdade e o da necessidade. Com efeito, se pensarmos o fato histórico sob o viés de sua duração e totalidade, compreenderemos que há, concomitantemente, movimentos de continuidade e ruptura que fazem com que os períodos em que “as invenções se atropelam” caracterizem as “fases da liberdade criativa”. Estas, por
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sua vez, se contrapõem a momentos de impasse marcados por “contradições ainda não resolvidas” que são inerentes às “fases da necessidade” (KI-ZERBO, 2006, p. 17). Desse modo, a liberdade do homem em projetar-se rumo às descobertas e possibilidades de opção que identificam a (pós)-modernidade caminha ao lado da necessidade que representa “as estruturas sociais, econômicas e culturais que se vão instalando, até se imporem, por vezes de forma subterrânea, desembocando à luz do dia numa configuração nova” (p. 17).
Pepetela e a literatura
A obra de Pepetela se revela exemplo bastante eficaz das reflexões de Carlos Lopes e de Ki-Zerbo, quer através do olhar lúcido com que interroga e transfigura o discurso historiográfico, quer pela escrita alegórica que esmiúça os desvãos do imaginário social e cultural de Angola. Lançando mão de estratégias que conjugam tradição e modernidade, seus romances repensam os avanços, curvas e retrocessos da nação angolana nos últimos quarenta anos, mostrando claramente os momentos de continuidade e ruptura.
Um dos muitos exemplos que se pode citar é o percurso que o herói romanesco assume em sua produção literária e é nele que me deterei. Do ponto de vista diacrônico, percebe-se que tal personagem desponta em obras concomitantes ao início do movimento revolucionário e através de uma linguagem notadamente metafórica, como a empregada em Muana Puó e As Aventuras de Ngunga,para consubstanciar-se no ideal metonímico de heróis como os guerrilheiros de Mayombe, notadamente o Comandante Sem Medo, até converter-se naquele que referencia a distopia descrita em A Geração da utopia, que assinala a elipse do “herói” e o dissabor que passa a caracterizar a contemporaneidade angolana. Por isso, torna-se marcante, mais uma vez evocando o binômio liberdade/necessidade evocado por Ki-Zerbo, que Pepetela deixe de lado estas personagens para centrar-se em anti-heróis e vilões como os evidenciados em seus últimos romances, sobretudo Jaime Bunda, agente secreto, Jaime Bunda e a morte do americano e Predadores.
Antes de comentar estas sobras, contudo, gostaria de me referir a mais uma contribuição crítica à discursividade de Pepetela e, para tanto, busco os pressupostos da teoria apresentada por Hayden White na medida em que ela estabelece taxonomias e tipologias universais que reconhecem diferenças
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localizadas e singulares que visam a identificar as figuras retóricas que comandam e constrangem todos os modos possíveis da narração romanesca.
Em Trópicos do discurso, White afirma que as narrativas históricas são “ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos” (WHITE, 1994, p. 98), por isso, a confecção de um registro translada a herança cultural de quem escreve, ou seja, sua representação escrita. Se essa é representação, a narrativa não é seu ícone, porém passa a remeter para tal através da ficção que se faz a seu respeito. Se, de igual modo, a narrativa não revive o passado tal qual este se deu, a relação entre o passado e o enredo se revela paradoxal.
Por isso, a fim de estabelecer um estudo de diferentes épocas, White propõe – a partir de postulados feitos por Giambattista Vico, no século XVIII – quatro tropos clássicos a serem estudados que são, a saber: a metáfora, a metonímia, a sinédoque e, com um estatuto particular, a ironia. Vico destaca apenas estas quatro figuras de linguagem por condensarem todas as demais.
Afirma ainda que o sistema de relações entre a metafísica – a ciência das coisas nas formas de seu ser – e a lógica – a das formas pelas quais essas coisas podem ser significadas –, é explicado pela filosofia da linguagem de que White se apropria para atualizar. Desse modo, a lógica poética atribuída ao homem “primitivo” difere da do moderno devido às novas diretrizes assumidas pelo pensamento ao longo da evolução do pensamento humano.
Nos tempos de outrora, tal conceito oscilava do familiar ao não-familiar e do concreto para o que se poderia denominar abstrato, de modo que as formas pelas quais as coisas eram então significadas devem ser sempre pensadas como a projeção do não-familiar de atributos que podem caracterizar o familiar. Desse modo, as origens e a evolução do pensamento humano são sistematizadas nos poderes do homem primitivo e passam a denominar seu universo, ainda que através de onomatopéias, a fim de distinguir e dotar de características específicas os demais objetos que o integram. Aí se localiza a identificação de Vico ao sentido clássico do logos grego com a lógica, já que a dos homens primitivos se resumia a nomear e não a compreender integralmente seu espaço circundante. Vico também cria que a primeira linguagem não se coadunava com aquilo com que lidava concretamente, mas sim com sentidos e paixões dos mitos e fábulas que nos foram legados e que constituem nossas bases culturais.
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São elas que definem as diversas épocas focalizadas pela literatura e os textos ali produzidos. Através, portanto, dos tropos literários, torna-se possível estudar essas diversas fases, definidas como ao longo do tempo histórico como “época dos deuses”, “dos heróis”, “dos homens” e “da decadência”. Tais formas tropológicas se combinam, articulam e se expressam através dos gêneros literários, permitindo uma leitura múltipla dos diversos períodos que se fazem coerentes com as figurações do herói pepeteliano, por exemplo.
Através de seus pressupostos, White não apenas atualiza o pensamento de Vico, mas busca novas constantes das bases que engendram as estruturas temporais das experiências que regulam os modos de representação e de narração da história. Por isso, o título escolhido por White para sua obra, no caso a palavra “trópico”, denota perfeitamente as variantes a que o herói romanesco se associa, posto que, etimologicamente, este vocábulo deriva do grego clássico tropikos, que significa “mudança” e “variação”. Desse modo, torna-se possível uma compreensão mais ampla dos discursos que são atribuídos ao herói romanesco, assim como os muitos outros que, na plurivocalidade inerente ao romance como gênero literário, ele mesmo é capaz de tecer sobre si (WHITE, 2001, p. 14).
A partir da metáfora, considerada tropo primário, surgem a sinédoque e a metonímia que caracterizam cada uma das épocas citadas anteriormente. Tanto White quanto Vico consideram a ironia como refinamento dos tropos anteriores, o que faz com que ela se oponha aos demais, profanando, assim a sacralidade do fato histórico pela desmontagem do caráter absoluto que a faz superar o fardo e o pesadelo da história.
Portanto, como a metáfora constitui a base do mito, a fuga da linguagem metafórica para uma outra notadamente figurativa torna-se possível pelo despontar da sensibilidade irônica que se torna perceptível na medida em que novas vozes discursivas questionam o status caracterizador das épocas anteriores. Através desses procedimentos, a dialética do discurso tropológico em si se torna concebível como meio pelo qual se pode explicar a evolução do homem, ou, como enuncia Walter Benjamin, constatar-se “a profunda perplexidade de sua existência” (1997, p. 201).
Por esta razão, a obra produzida por Pepetela no período pós-independência, notadamente a partir de A Geração da utopia, reveste-se de traços da ironia que passa a caracterizar o período em que se pôde
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constatar a falência do projeto utópico angolano, em que a mão dos pretos substituiu a do colonizador português, guiando a nação pela mesma senda de desigualdades inerentes ao sistema colonialista subjugado. Uma das muitas formas por que ela é expressa está na captura de Aníbal, também conhecido como Mundial, personagem do romance acima citado, um “guerrilheiro” que se entregaria ao exército português que, todavia, usa sua captura por outros guerrilheiros angolanos como trampolim para sua subida no MPLA e, posteriormente, na vida política da Angola pós-liberta. Tal se dá quando esta personagem requer para si algumas características de herói que não é, apropriando-se de palavras e concepções de Aníbal, o Sábio, personagem verdadeiramente comprometida com os ideais utópicos, subvertendo, diluindo e corrompendo o sentido de História.
Com isso, ao valer-se da ideologia do Sábio, Mundial reconhece nela uma eficácia que o faria, aos olhos dos demais guerrilheiros, comparar-se a esta personagem, forjando para si os mesmos atributos morais, ainda que inconsistentemente. Tal processo baseava-se na oposição entre imaginação e realidade, no contraponto, portanto, entre o desejo de a personagem satisfazer ilusoriamente suas necessidades de representação interior e a projeção do real. Logo, as fantasias foram as primeiras formas de manifestação inconsciente de realização e de equiparação a um modelo que ele sabia inatingível. Este, por sua vez, o faria aproximar-se do herói, ou seja, do sujeito da epifania heróica, ubíquo e disposto a qualquer sacrifício por um ideal. Tal figura ratificaria no presente, por predestinação, o que fora previsto no passado como futuro, tornando-se elemento imprescindível a sua execução.
Se a ironia torna-se a marca que caracteriza parte do poder vigente em Angola a partir da independência, assinalando a “época da decadência”, O Sábio oscila entre a “época dos homens” e a “época da decadência” em que, segundo Hayden White, predominam, respectivamente, a sinédoque e a ironia. Na sinédoque, aponta White (WHITE, 1992, p. 2), a distinção similar entre as partes e o todo é feita apenas com o objetivo de identificar o todo como uma totalidade que é quantitativamente idêntica às partes que o constituem. Assim, a figura de Aníbal é simbolicamente eficaz na medida em que, pela combinação dos elementos físicos e morais que o constituem, ele se torna representante de parte de um todo que acreditou e lutou pela utopia, dando continuidade aos esforços envidados pelos guerrilheiros do
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Mayombe.
Contudo, a figuração da personagem também sinaliza uma direção “negacional” porque sua re-apresentação em “O Polvo” o distancia do revolucionário fogoso dos tempos da “Casa” e da “Chana”, capítulos de A Geração da utopia que acompanham o percurso de Angola rumo à independência. Assim, a sinédoque que o caracteriza nessas duas primeiras partes do livro resulta na ironia, já que, nas duas últimas, a sabedoria aludida à personagem mostra-se ineficaz. Seu percurso no presente da história aponta para traços antagônicos à alcunha, resultando, assim, na dimensão absurda do epíteto e na inadequação contextual da caracterização que se desdobram em meio à descrição de tempos históricos distintos.
Se para White, a ironia representa um uso consciente da metáfora a serviço da auto-anulação verbal (1992a, p. 50), a personagem lança mão deste tropo para referir-se a si mesma:
Já me consideram uma espécie de profeta, só que do Apocalipse. O louco de Deus! Vou uma vez por mês à logística militar, em Benguela, para receber a pensão alimentar que o exército me concedeu. Carrego açúcar, arroz, feijão, óleo, essas coisas. É a única vez que saio daqui. E os soldados mais novos riem-se, sinto-os a rirem-se nas minhas costas, lá vai o maluco (AGU, p. 244).
Ele foi por uma camisa razoavelmente limpa e umas calças. Quando estava fora, lembrou-se dos sapatos. E voltou para dentro, lavar os pés e pôr uns chinelos. De tanto andar descalço, mais uma vez ia esquecer de se calçar e aparecer na cidade como um monangamba. Já tinha acontecido, o que reforçava a opinião das pessoas sobre o fato mental dele. Na passagem, olho para o espelho. Realmente cada vez se parecia mais com um etíope. (AGU, p. 237).
Com isso, traz à tona a concepção de Mueck, para quem a ironia tem função pedagógica, o que faz com que Pepetela não deixe de lado os princípios ideológicos do romance, ou seja, usando-os como forma constante de conscientização dos rumos trilhados por seu país:
A ironia tem basicamente uma função corretiva. É como um giroscópio que mantém a vida num curso equilibrado ou reto, restaurando o equilíbrio quando a vida está sendo levada muito a sério ou, como mostram algumas tragédias, não está sendo levada a sério o bastante, estabilizando o instável, mas também desestabilizando o excessivamente estável. (MUECK, 1995, p. 19),
Assim, ao descrever a morte da utopia e o crepúsculo do herói, este autor insiste em seu projeto ideológico de fazer com que o presente não deixe de pensar sobre os traços de História. Identicamente, faz uso da ironia também para refletir sobre a nova classe de dirigentes que assumiu o país e, ao opor-se aos ideais defendidos por Aníbal, funcionam como heróis às avessas, ou seja, vilões do percurso feito por Angola. Tal se dá através da alcunha com que Vítor participa da guerra e que, tal qual a do Sábio, revela-se
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contraditória. A ironia se expressa, assim, na contradição entre o pseudônimo e a suas atitudes assumidas pela personagem, uma vez que ao lançar mão constantemente do individualismo em prol de interesses pessoais, a personagem renega a “mundialidade” de seu novo nome, alcançando, igualmente, uma dimensão irônica que assinala a “época da decadência” que caracteriza a quarta e última parte do romance. Correspondendo ao perfil irônico atribuído por Northrop Frye, tanto Aníbal quanto Vítor se caracterizam como heróis irônicos, ou seja, quando esta personagem torna-se inferior em poder e/ou inteligência ao seu meio, o que lhe causa receios e frustrações.
Jaime Bunda e Predadores: Angola sob lentes de aumento
Tal procedimento é igualmente perceptível nos romances Jaime Bunda, agente secreto e Jaime Bunda e a morte do americano em que, além dos traços burlescos que caracterizam o anti-herói e o modus operandi com que age, apresentam a personagem como um “eterno estagiário” de um dos muitos órgãos da imensa máquina estatal em que Angola se converteu (PEPETELA, 2001, p. 81). Pelo do uso da “necessidade” histórica, Pepetela amplia as metáforas que definem seu país através da personagem, associando Angola também a uma nação estagiária, ou seja, em sucessivas etapas de aprendizagem e ainda em busca de alguns dos ideais que nortearam seu processo de libertação.
Desse modo, estabelecem-se traços de continuidade nessas últimas obras que exacerbam, por exemplo, o uso da burocracia estatal angolana que, igualmente, caracteriza Vladimiro Caposso, personagem central de Predadores, romance publicado em 2005. Tal qual fizera anteriormente, Pepetela se vale de um assassinato para iniciar esta narrativa, porém de modo distinto daqueles usados em Jaime Bunda, agente secreto e Jaime Bunda e a morte do americano. Em Predadores, o homicídio de uma mulher, uma das amantes de Caposso em ato sexual com outro homem, também assassinado, é usado para referenciar uma elite sem escrúpulos e impune que, amparada em prestígio social, age segundo suas conveniências. O romance descreve, assim, a ascensão da personagem que, de motorista particular, passa a dirigente desportivo da Jota, órgão que congregou a juventude do MPLA, até assumir a sólida posição de “empresário”, graças a lobby e jogos de influências.
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Ciente da responsabilidade de seu texto, Pepetela dá curso ao testemunho de uma “promessa de felicidade que não se realizou”, contemplando, tal qual Walter Benjamin, o acúmulo incansável de “ruína sobre ruína” (BENJAMIN, 1997, p. 224). Para tanto, utiliza estratégias narrativas como a de fazer que os vinte capítulos de Predadores sejam lidos em forma de diário de eventos ocorridos entre 1974 e 2004. Tal processo se viabiliza porque o distanciamento espácio-temporal é narrado de modo integrado e consciente, resgatando por diversas vezes, tal qual fizera nas narrativas sobre Jaime Bunda, idéias e palavras expressas em capítulos anteriores, mesmo que estes se refiram a tempos históricos diferentes. No entanto, se o objetivo fora antes aproximar as investigações do detetive de pistas a serem seguidas em narrativas policiais, em Predadores, a intenção parece ser permitir a homogeneização e seqüenciamento do percurso de Caposso ao longo de tempo que refere tanto a história pessoal da personagem, como de seu próprio país. Este recurso pode ser percebido, dentre outros, nos seguintes exemplos: “Como na altura em que era amigo de Sebastião, os seus primeiros tempos de Luanda” (p. 64) e Caposso fez a vontade a Sebastião Lopes, antigo kamba que tinha conhecido nas terras do Cuanza-Sul (p. 65); “Como dizia o antigo amigo Sebastião, ele se proletarizava, de pequeno-burguês passava a pequenino burguês e isso porque ainda tinha uma casa. Até ver...” (p. 100) e “Viu muita coisa, entretanto” (p. 101); “A sua batalha com Mireille ainda não tinha começado”. (P., p. 216) e “Tinha entrado em muitas batalhas” (p. 217). Ainda em “antes de eu fazer a festa, primeiro ele tem de acabar a casa” (p. 269), “A qual casa finalmente estava pronta” (p. 270) e, por fim, em “Assim engorda um tubarão” (p. 361) e “O problema de Caposso é que havia tubarões mais gordos ou mais fortes” (p. 362).
Sabe-se, assim, como a personagem preenche e rasura as lacunas de sua vida com um discurso fictício que cria a seu respeito, que a faz, por exemplo, abandonar José, seu nome de batismo, para assumir-se Vladimiro:
Aliás, para dizer a verdade e contar já tudo, o seu próprio nome foi criado pouco antes, na altura da Independência. Muitos militantes, sobretudo os que vieram da guerrilha, tinham nomes de guerra, alguns de gente gloriosa do passado, outros nem tanto. Ele escolheu para si do de Vladimiro, adaptação portuguesa de Vladimir Ilitch Lenine, pois claro. Manteve o Caposso, foi a única coisa que conservou da verdadeira identificação (Predadores, p. 50).
Com efeito, de posse de seu novo nome, Caposso destrói documentos e marcas de seu passado. Tenta, posteriormente, garantir seu futuro ao nomear seus filhos Iuri e Ivan, buscando, assim, prolongar a “herança estalinista” que imaginou para sua família na luta revolucionária. Renega
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também as terras do Cuanza-sul para, pretensamente, dizer-se originário de Catete, “terra de prestígio” e berço de personalidades como Hoji ya Henda, um dos heróis da luta armada, de Agostinho Neto e de “alguns responsáveis importantes” (p. 50). Com isso, a personagem, que ironicamente “abdicou de se aproximar da poesia”, como o primeiro presidente (p. 51), abandona paulatinamente a obscuridade para assumir posição de destaque naquela sociedade emergente.
Ironia e paródia são os tropos lingüísticos mais eficazes para a descrição desta nova classe. Quer pela associação feita anteriormente por Pepetela em A Geração da utopia, por exemplo, em que Vitor e Malongo, fracassados do passado tornam-se “vencedores” do presente ou, ainda, ao associar Carmina Cara de Cu (CCC) com o Comitê Central do MPLA (CC), em O Desejo de Kianda. No caso de Predadores, a enunciação demonstra as incongruências de personagens que se revelam, por exemplo, na réplica em madeira da torre Eiffel que Caposso manda construir no jardim de sua casa (Pepetela, 2005, p. 202), retomando, mais uma vez, situações burlescas já referidas em sua obra, como o pretenso sotaque lisboeta da mulher caluanda de Vítor Ramos e no hábito colonial retomado por Carmina ao mudar, “por preguiça”, o nome de suas muitas empregadas domésticas (PEPETELA, 1995, p. 64). Assemelhando-se ao conceito de “corpos dóceis” descritos por Foucault ao se referir àqueles que “podem ser submetidos, utilizados e transformados” (FOUCAULT, 1999, p. 118), essas personagens se revelam também instrumentos paradigmáticos da carnavalização bakhtiniana manifestadas corporalmente. Assim, a “gordura do poder” resultante dos excessos à mesa de Pantagruel, e que fora empregada para descrever a Carmina emergente que fecha novos negócios à mesa de restaurantes sofisticados de Luanda, descreve, igualmente, as lautas refeições feitas por Bunda na residência do governador de Benguela. Em Predadores, é usada para qualificar o “gordíssimo ministro do comércio empanturrado de croquetes e rissóis” (PEPETELA, 2005, p. 239), assim como o governador do Lubango, conhecido “como copo roto, pois o seu nunca conservava o líquido por muito tempo” (Pepetela, 2005, p. 278), e para hiperbolizar, pelo excesso corpóreo, tanto a bunda generosa (p. 334) quanto a barriga proeminente que Caposso tenta disfarçar com as camisas vistosas que veste para seduzir jovens deslumbradas com seu poder.
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Se o exílio voluntário a que Aníbal, em A Geração da utopia,se submete às margens do mar de Benguela assinala a elipse do herói no quadro que os romances de Pepetela ficcionalizam, Predadores a exacerba ainda mais seu distanciamento dos novos tempos, criando aquilo que se poderia chamar a “elipse da elipse”. Assim, numa “inversão de marcha” que colide com a própria nação, no presente que este romance referencia, as únicas reminiscências do passado são “a mesa de pau preto vinda diretamente do Mayombe” para adornar a luxuosa sala de reuniões da Caposso Trade (PEPETELA, 2005, p. 146) e os mutilados de guerra, como Simão Kapiangala, a mendigar, sem pernas e apenas com o braço esquerdo, na Rua Lenine, próximo à lagoa de Kianda (p. 170).
Conclusão
Ao focalizar a contemporaneidade, este romance se debruça sobre o lado predatório de angolanos que saqueiam o país em diversos níveis espácio-temporais, espelhando contrastes e transformações operados no corpo da nação através de transformações no espaço físico de Luanda, nos sistemas ideológicos e no socialismo metamorfoseado em capitalismo selvagem que, nas palavras de Caposso, fará com que seu acúmulo de fortuna lhe trará o respeito e pedido de favores de muitos, por mais marxistas que sejam (PEPETELA, 2005, p. 233).
Ao lançar mão da paródia, Pepetela faz uso de uma “transgressão autorizada” que, associada à caricatura e à carnavalização, agem como formas de questionar a História a fim de que se promova outra transgressão centrada na reflexão sobre a contemporaneidade corroída e marcada pelo individualismo. Essa característica resulta do desinteresse e da alienação expressos ao longo de suas obras, mostrando como valores exógenos se incorporam ao dia-a-dia de Angola, fazendo com que as crenças do passado, tanto o mítico quanto o que embalara o desejo utópico, se revelem diluídas e banalizadas. Desse modo, expõe-se a dessacralização dos projetos de (re)construção nacional que resultaram em um presente degradado em que o homem se mostra Homo homini lupus, ou seja, o homem como lobo do próprio homem.
Contudo, a letra pepeteliana não se constitui como uma ficção de crise ou de negação das utopias da nação e do homem novo. Estes se tornam o ponto inicial de uma reinicialização da história angolana, que
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pode ser exemplificada através dos modos como este autor encerra suas obras. Ao optar por finais abertos, Pepetela demonstra as muitas possibilidades de diálogo e de construção de um outro tipo de utopia que se desvela na deslocação do centro para a margem, do uno para o múltiplo, do opaco para o brilhante. Assim, apesar do quadro disfórico que se lê em seus textos, este autor faz com que algumas vozes mantenham viva a esperança de reformulação e de reconstrução em que o amor entre a escrita e a nação é reacendido.
Diante dos riscos que o individualismo acarreta, sua obra demonstra que a única coisa que resta é uma aprendizagem que o supere coletivamente, por ensaio, erro e experimentações ousadas, através do uso de uma discursividade distanciada da minoridade intelectual, do fixismo imposto por argumentações redutoras e pela rigidez mental da imagem de liberdade individual provocada pelo autoritarismo dos muitos predadores de nosso tempo.
É, desse modo, por meio de uma rearticulação estrutural que a ação individual se desdobra em atos que, unidos e civilizados, como sugere o pensamento de Tocquevile com que este texto se inicia, concorrem para as transformações a serem operadas não apenas em Angola a partir da reutilização de conceitos como os de fraternidade e amizade que programas políticos perversos dispensaram.
Assim, a jovens da elite angolana, como Judite e Orlando de A Geração da utopia, Ivan, Iuri, Djamila e Mireille, de Predadores,e não só eles, mas também Nacif e Kaseke, personagens do mesmo romance, juntam-se Gégé, o irmão “comunista” de Bunda e outros “vencidos da História”, como Honório e os desalojados do Kinaxixi, de O Desejo de Kianda e o indignado grupo dos “Línguas de Fogo”, de Jaime Bunda e a morte do americano. Todas essas personagens lançam-se à busca da moral, da amizade e da honra perdidas, movidas pelo desejo de reaprendizagem humana.
Desse modo, o texto de Pepetela cria novas formulações utópicas, buscando refletir sobre o desencanto contemporâneo, ao fazer das heranças negativas uma positividade em aberto que reúne os fiapos do sonho esvaído ao longo do tempo histórico. Por isso, sua obra se torna metáfora, tal qual este autor relata através da voz do Comissário Político, de Mayombe, da escrita como recriação da vida e da morte por meio de uma luta solitária com palavras que refletem uma esperança, não a romântica, mas a que deixa “em espera” outros procedimentos de resistência.
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Revela-se, sobretudo, metáfora de uma força que vence o discurso constituído por meros jogos de palavras através da construção de um saber que gera a liberdade referida por Ki-Zerbo, fazendo com que os diversos significados que caracterizam seus textos nos levam a reconhecer a centralidade do jogo de narrar que viabiliza a criação de novas realidades. Pepetela narra para ousar afirmar que é possível operar fora dos modelos absolutos, construindo um outro mundo possível através da junção da reflexão, da discursividade e da ação que constituem o tripé em que se fundamenta seu desejo de mudança.
É através dele que expressa seu ideal de transformação e de uma ainda existente profissão de fé no ser humano.
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Número 8 (2008) - ISSN 1981-870X