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ENTRE PAI E FILHO: O CRISTIANISMO DILACERADO EM O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO, DE JOSÉ SARAMAGO
José Carlos Barcellos
(UERJ/UFF)
jcarlosbarcellos@hotmail.com
Resumo:
Este artigo procura mostrar que o personagem Deus do romance O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, exprime a hybris do mundo moderno, em sua absurda lógica do poder, que faz da política a suprema realização do ser humano.
Palavras-chave: José Saramago, romance português, literatura e teologia
Abstract:
This paper argues that God, as a character of José Saramago’s novel The Gospel according to Jesus Christ, expresses the modern world hybris, in its unfair logic of power, that supposes politics to be the highest achievement of human life.
Key words: José Saramago, portuguese novel, literature and theologyEscrevendo no início dos anos 1980, Josef Imbach, professor da Pontifícia Faculdade Teológica São Boaventura, de Roma, afirmava que, numa visão de conjunto da literatura contemporânea, fica claro o interesse de muitos escritores pelo Jesus histórico e, ao mesmo tempo, uma acentuada indiferença, ou mesmo oposição, ao Cristo da fé, tal qual anunciado pelas Igrejas cristãs. Mais ainda, observava que “acontece, pois, freqüentemente que Jesus seja apenas o objeto indireto do tratamento literário, na medida em que os autores falam, por exemplo, dos possíveis efeitos ou ainda da falta de efeitos da sua mensagem”. (IMBACH, 1983, p. 77)
Parece-nos que essa constatação pode ser uma pista preciosa para a leitura do romance O Evangelho segundo Jesus Cristo, de autoria do escritor português José Saramago, cuja publicação data de 1991. De fato, pode-se dizer que a preocupação central do Evangelho é, antes, a sangrenta história do cristianismo ao longo dos séculos que o aprofundamento do drama pessoal — em chave existencial ou religiosa — do homem Jesus de Nazaré. O horizonte permanente ao qual a narrativa remete o leitor é o da infinda sucessão de torturas, martírios e massacres que a vida de Jesus supostamente inauguraria, aquela “história interminável de ferro e de sangue, de fogo e de cinzas, um mar infinito de sofrimento e de lágrimas” (SARAMAGO, 1995, p. 381) que abruma a humanidade.
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Essa particular perspectivação da história de Jesus, que enforma todo o Evangelho de Saramago, denuncia um a priori hermenêutico que poderíamos chamar de “a lógica do poder”: o Deus do romance está insatisfeito por ser apenas o Deus dos judeus e quer expandir seu próprio culto e domínio a toda a humanidade, quer se tornar precisamente o Deus dos católicos, e, para tanto, encontra na culpa e na necessidade de sua expiação um elemento universal, capaz de ser utilizado como instrumento eficaz na obtenção de semelhante propósito. Deus, personagem do romance, é um grande estrategista, um fino conhecedor e hábil manipulador da psicologia social, um verdadeiro modelo para todos os ditadores e demagogos de ontem e de hoje:
Todo o homem, respondeu Deus, em tom de quem dá lição, seja ele quem for, esteja onde estiver, faça o que fizer, é um pecador, o pecado é, por assim dizer, tão inseparável do homem quanto o homem se tornou inseparável do pecado (...) Arrependei-vos Arrependei-vos Arrependei-vos, Por tão pouco não precisarias sacrificar a vida daquele de quem dizes ser pai, bastava que fizesses aparecer um profeta, O tempo em que lhes davam ouvidos já passou, hoje só lá vamos com um revulsivo forte, qualquer coisa capaz de chocar as sensibilidades e arrebatar os sentimentos, Um filho de Deus na cruz, Por exemplo. (SARAMAGO, 1995, p. 376)
Valendo-nos da argúcia crítica do já citado Josef Imbach, vemos com clareza o quanto Deus, no romance de Saramago, é uma figura que pretende encarnar uma presumida lógica da Igreja ou a intenção de seus fundadores: Deus sive Ecclesia, poderíamos dizer. O cristianismo seria produto de uma mente genial em sua capacidade de manipular as massas e manter essa mistificação ao longo do tempo, com uma seqüência infindável de morticínios. É essa interpretação da história do cristianismo que plasma não só a configuração dos personagens como o desenvolvimento de toda a intriga romanesca. O Evangelho é a história do estabelecimento de um estupendo sistema de poder com pretensões a abarcar toda a humanidade. Os traços distintivos desse sistema seriam precisamente a manipulação do sentimento de culpa, a tirania e o sadismo. Como escreve o próprio Harold Bloom, cujo entusiasmo pela qualidade literária do Evangelho e por sua importância na história da cultura decididamente não compartilhamos,
A descrição que Deus faz da Igreja Católica, que será fundada em nome de Jesus, é verdadeira apenas na medida em que é historicamente horrível, e o gozo que Deus manifesta ao enumerar os martírios e ao avaliar a Inquisição apresenta indícios evidentes de sadismo. (BLOOM, 2001, p. 14)
Se quisermos aprofundar nossa reflexão em busca das vicissitudes da teologia cristã que, em perspectiva histórico-cultural, abriram caminho para essa imagem de Deus que o Evangelho nos devolve em forma tão monstruosa, temos que voltar à análise feita por Hans Urs von Balthasar acerca do processo de desestetização do cristianismo na teologia moderna (BALTHASAR, 1985, p. 3ss). A perda do sentido de unidade entre bem, beleza e verdade na teologia cristã, com o “esquecimento” da perspectiva estética, em prol, primeiramente, da verdade e, logo, do bem, conduz à dissociação entre os três transcendentais da
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filosofia clássica e à sua autonomização recíproca, com conseqüências nefastas não apenas para a inteligência da fé, mas ainda para toda a cultura moderna. Como escreve Olegario González de Cardedal,
La Belleza cede su primacía en un primer momento a la Verdad y finalmente a la Bondad con el consiguiente primado del ethos sobre el logos y de la praxis sobre la theoría, que ha caracterizado al mundo moderno, hasta su expresión última en la absolutización de la política como realización suprema del hombre. (GONZÁLEZ DE CARDEDAL, 1996, p. 580)
Nesse sentido, podemos dizer que é a lógica de poder e domínio do mundo moderno, sua absurda hybris, quem fala pela boca de Deus no romance de Saramago, retroprojetando uma interpretação da história do cristianismo à sua imagem e semelhança. Na antropologia que subjaz a essa lógica, o ser humano se reduz à vontade e o exercício do poder passa a ser a única finalidade de todos os seus pensamentos, de todas as suas emoções e de todas as suas ações, acertadas ou não. Ora, essa visão de homem e de mundo já contamina determinadas formulações do cristianismo ainda no alvorecer do mundo moderno, enfermando gravemente a perspectivação teológica da glória e do poder de Deus e comprometendo sobremaneira a compreensão vulgar da doutrina cristã. Nas palavras do mesmo González de Cardedal,
Un discurso unilateral sobre el derecho divino y la insistencia de hacerlo todo para mayor gloria de Dios, elemento que tienen en común Lutero, Ignacio de Loyola y Calvino, han dejado en la sombra el elemento primordial del mensaje bíblico hasta casi invertirlo. Porque lo primero es la gloria que Dios da al hombre (su ser, su belleza, su amor); y en un segundo momento el hombre acoge, devuelve y agradece a Dios su don. De esta forma “glorifica a Dios” y vive para mayor gloria de Dios. (...) hemos sido creados para la gloria de Dios: para participarla, expresarla y contarla transformando el mundo desde ella. Tal transformación significa la plenitud del mundo (...). (GONZÁLEZ DE CARDEDAL, 1995, p. 581)
Assim, a perda do equilíbrio e da correspondência entre bem, beleza e verdade no pensamento teológico moderno, com o conseqüente eclipse da perspectiva estética, é responsável pelo duplo processo de redução da fé cristã a um sistema de verdades abstratas, por um lado, e de hipertrofia da práxis, por outro, o que degenera num moralismo exacerbado e multifacético, cuja versão secularizada é precisamente a entronização da razão política como único móvel da ação humana. Ora, O Evangelho segundo Jesus Cristo nada mais é senão um filho legítimo desse processo, tanto no que tem de pretensioso, quanto no que tem de pueril e de superficial. No romance, a glória de Deus é o esmagamento do ser humano sob um formidável sistema de poder, que faz da culpa — como sistemas mais recentes fizeram de seus correlatos medo, delação e vigilância — a brecha através da qual penetra corações e mentes, transformando as próprias vítimas em construtores entusiastas do sistema que, de maneira inexorável, as domina e esmaga por completo. Em última análise, pode-se dizer que o Evangelho é um romance sobre os sistemas de dominação e poder do mundo moderno, da Inquisição ao nazismo ou ao stalinismo, para citarmos apenas suas versões mais brutais e patentes.
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Pois bem, se a culpa é o elemento central de todo o projeto de universalização de Deus, consoante o diálogo que este tem com Jesus na cena que é verdadeiramente o clímax do romance, temos que reavaliar o papel da figura de José na economia narrativa. Como se sabe, no Evangelho, José vive atormentado pelo remorso de não ter avisado às mães de Belém que Herodes mandara matar todos os meninos com menos de três anos de idade. Trabalhando no Templo, José ouvira casualmente uma conversa entre soldados e, no desespero da salvar a Jesus, não cogitou das outras crianças. Toda a sua vida será atormentada pela sensação de culpa daí decorrente. Harold Bloom, em seu ensaio, percebe o nexo entre José e Deus, mas não chega a dar a esse nexo o caráter de princípio estruturante do romance, como pretendemos fazer neste texto. Escreve o famoso crítico de Yale:
Mas por que é que Saramago altera assim a história? Talvez esta versão de Jesus, a mais humana de todas, tenha de suportar o sofrimento de ter dois pais: José, afetuoso, desventurado e culpado, e Deus, nada afetuoso, bem sucedido e ainda mais culpado. (BLOOM, 2001, p. 5)
Para nós, a simetria entre as figuras de José e de Deus em relação a Jesus — ou seja, a dupla relação que se estabelece, em paralelo, entre Pai e Filho — é o eixo em torno do qual se constrói a estrutura narrativa de O Evangelho segundo Jesus Cristo e, como tal, o fulcro do processo de (im)compreensão e crítica do cristianismo empreendido pelo romance.
Logo após o prólogo, constituído pela descrição e interpretação de uma gravura de Dürer, a narrativa começa com focalização interna em José e já na menção ao galo que canta três vezes nos confronta com o tema da traição e da covardia. José, no romance, é um fraco e chamam a atenção a atitude irônica do narrador para com ele e a completa falta de empatia para com o desespero de um operário, que trabalha para manter a família numerosa e que, de repente, se vê confrontado com a brutalidade da violência dos poderosos:
Ora é neste momento da mais sentida aflição que um pensamento estúpido entra como um insulto na cabeça de José, o salário, o salário da semana que vai ser obrigado a perder, e é tanto o poder destas vis coisas materiais que o acelerado passo, não indo ao ponto de deter-se, um tudo-nada se lhe retarda, como a dar tempo ao espírito de ponderar as probabilidades de reunir ambos os proveitos, por assim dizer, a bolsa e a vida. (SARAMAGO, 1995, p. 108s)
Diante do drama que a vida tão inesperadamente impõe a José, e do qual ele é, antes de tudo, mais uma vítima, o narrador do Evangelho de Saramago não tem outra resposta senão a ironia, configuração estilística, no caso vertente, do primado do imperativo ético-político decorrente da absolutização moderna da práxis, o que é corroborado, aliás, pela fala de um arrogante Jesus adolescente:
O meu pai matou os meninos de Belém, Que loucura estás dizendo, mataram-nos os soldados de Herodes, Não, mulher, matou-os o meu pai, matou-os José filho de Heli, que sabendo que os meninos iam ser mortos não avisou os pais deles, e quando estas
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palavras ficaram ditas ficou também perdida a esperança de consolação. (SARAMAGO, 1995, p. 187s)
O drama de José é apresentado pelo anjo a Maria como um círculo fechado de culpa e castigo, que passa de pai a filho, sem possibilidade não só de remissão, mas ainda de mera compreensão e simpatia, movidas sequer pela certeza da fragilidade da condição humana no mundo, que todos compartilhamos:
Foi a crueldade de Herodes que fez desembainhar os punhais, mas o vosso egoísmo e cobardia foram as cordas que ataram os pés e as mãos das vítimas. (...) Não sou anjo de perdões. Disse Maria, perdoa-lhe. Disse o anjo, Já te disse que não há perdão para este crime, mais depressa seria perdoado Herodes que o teu marido, mais depressa se perdoará a um traidor que a um renegado. (...) Sobre a cabeça dos filhos há de sempre cair a culpa dos pais, a sombra da culpa de José já escurece a fronte do teu filho. Disse Maria, Infelizes de nós, Disse o anjo, Assim é, e não tereis remédio. (SARAMAGO, 1995, p. 115s)
Esse círculo infernal de culpa e castigo, cujo movimento dá toda a dinâmica da narrativa no Evangelho, uma vez que é a revelação da culpa de José que faz com que Jesus saia de casa e vá viver como seu o destino de inquietação e morte na cruz que já fora o de seu pai — pois “Jesus herdara o sonho do pai” (p. 184) —, nada mais é senão uma pálida configuração da hipertrofia da razão política no mundo moderno, com sua lógica de poder, que, para cúmulo da hipocrisia, sói apresentar-se travestida em imperativo ético. Entre essa concepção moderna de ética e a teologia cristã do pecado — completamente ausente do romance, diga-se de passagem, não obstante os esforços do narrador ou as eventuais intenções do autor — há um abismo intransponível: no cristianismo, o reconhecimento do pecado compartilhado por toda a humanidade é uma mensagem de salvação, que cumpre precisamente a função de libertar o ser humano do círculo sem fim de culpa e expiação a que uma concepção estreita e absolutizada de destino, nas culturas antigas, ou de ética, na cultura moderna, necessariamente leva. Conforme escreve um bom teólogo contemporâneo, “esse juízo [da palavra de Deus], que é ao mesmo tempo condenação e perdão, situa-nos na nossa verdade; que não é a inocência, mas o pecado perdoado, a alienação resgatada”. (RIZZI, 1992, p. 159)
Assim, o círculo de culpa e expiação (impossível) que estrutura O Evangelho segundo Jesus Cristo, na verdade, não tem nada a ver com a concepção cristã de pecado — que, esta sim, é um evangelho, isto é, uma boa notícia, um anúncio de salvação —, mas é um reflexo do projeto moderno de absolutização da ética, em suas versões religiosas ou secularizadas, e do caráter totalitário dos sistemas políticos que a partir daí se configuram. Dentro dessa lógica, não há saída para a questão da culpa: sempre será preciso encontrar um culpado, qualquer que seja ele.
O princípio estruturante do Evangelho de Saramago é, pois, a simetria das posições de José e de Deus, na relação Pai-Filho que ambos estabelecem com Jesus, o que nos daria a imagem geométrica de um triângulo invertido. De fato, todo o romance é a narrativa da substituição de uma relação pela outra, numa dinâmica em que, pari passu à assunção por parte de Jesus da identidade de Filho de Deus, se vai atribuindo a este último a culpa sem perdão de José. O resgate do crime atribuído a José só é possível
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através da culpabilização de Deus, pois, na lógica que preside ao romance, sempre tem de haver um culpado cuja condenação seja irrevogável e definitiva. E é essa, precisamente, a matéria do Evangelho, como fica patente no seguinte comentário do narrador:
Porém, se os bons começos de Jesus não se perderem na mudança da idade, talvez que ele venha a querer saber por que salvou Deus a Isaac e nada fez para salvar os tristes infantes que, inocentes de pecado como o filho de Abraão, não encontraram piedade perante o trono do Senhor. E, assim sendo, Jesus poderá dizer ao seu progenitor, Pai, não tens de levar contigo toda a culpa, e, no segredo do seu coração, quiçá ouse perguntar, Quando chegará, Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres os teus erros perante os homens. (SARAMAGO, 1995, p. 144)
Esse processo de transferência da culpa absoluta de um pai a outro, de José a Deus, é, portanto, o eixo em torno do qual se constrói toda a narrativa do Evangelho e que atinge sua consumação na morte de Jesus, quando este, vendo Deus que sorri, exclama “Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez” (p. 444), numa cena que poderia mais apropriadamente ser descrita como a da morte de Deus na consciência de Jesus.
Ora, caberia perguntar, afinal, que Deus é esse que morre com o seu Jesus exatamente em 1991 ¾ por coincidência, o ano do desmonte da União Soviética ¾, no final do Evangelho de Saramago. Que personagem é esse cujo laborioso repúdio e negação ocupa as mais de quatrocentas páginas do romance, a que não faltam, é certo, algum brilho narrativo e muita exuberância de linguagem? Será o Deus dos cristãos? Não nos parece. A absolutização do poder, a manipulação das massas, a crueldade, a tirania, o sadismo fazem-nos lembrar de uma sinistra figura, em certo sentido muito mais próxima de nós e que, por coincidência, também se chamava José, auto-intitulava-se Pai dos Povos e quiçá tenha sido mesmo pai de muitos filhos pelo mundo afora.
Referências:
BALTHASAR, Hans Urs von. Gloria: una estetica teologica. vol. I: La percezione della forma. Milão: Jaca Book, 1985
BLOOM, Harold. [Ensaio sem título sobre O Evangelho segundo Jesus Cristo] Jornal do Brasil: Caderno Idéias, Rio de Janeiro, 30 de junho de 2001, p. 4-5
GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Olegario. Cuatro poetas desde la outra ladera: prolegómenos para una cristología. Madri: Trotta, 1996.
IMBACH, Josef (org.). Gesú nella letteratura contemporanea. Roma: Città Nuova, 1983.
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RIZZI, Armido. “O homem espiritual, hoje” in GOFFI, Tullo, SECONDIN, Bruno (orgs.). Problemas e perspectivas de espiritualidade. São Paulo: Loyola, 1992, p. 139-161.
SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo. 14a reimpressão São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero8/jose.htm
Número 8 (2008) - ISSN 1981-870X