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VIAGEM À RODA DA FICÇÃO: UMA LEITURA DE VIAGENS NA MINHA TERRA
Shirley de Souza Gomes Carreira
(UNIGRANRIO)
Ironie ist die form des paradoxen. |
Friedrich Schlegel |
Resumo:
Este trabalho visa à análise da intertextualidade em Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, focalizando, em particular, a autoconsciência narrativa.
Palavras-chave: Romantismo, narrativa, intertextualidade
Abstract:
This work aims at the analysis of the intertextuality in Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, by focusing particularly on the narrative self-consciousness.
Key words: Romantism, narrative, intertextuality
O romantismo português apresenta uma especificidade que deve ser compreendida e analisada a par das características e de uma sincronia estrita que têm sido utilizadas como parâmetro em relação às manifestações românticas em outros países e culturas.
Jorge de Sena (1982), em seus ensaios acerca do romantismo, traz à baila a questão da periodização estética, argumentando que tanto as periodizações excessivamente vastas quanto as demasiadamente curtas correm o risco de incorrer em abordagens errôneas.
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Igualmente, há ainda o risco da caracterização de um período pelo que há de mais popular nele, englobando assim imitações menores, reproduções de clichês e a difusão simplificada de temáticas, ou em função de obras ou do estilo de uns poucos escritores.
A compreensão do romantismo literário português requer, antes de tudo, a aceitação de que um período literário não é uniforme e que, na maioria das vezes, se revela em tendências peculiarmente contraditórias. O romantismo português, como afirma Jorge de Sena (1982, p.98), foi “tardio, breve e produziu raras personalidades do mais alto nível.”
Considerando-se que um período se compõe de diversas fases que ocorrem em locais também diversos, fases estas nem sempre concomitantes, e que o fim de um período e o início de outro por vezes se confundem em uma aparente continuidade, pode-se, enfim, compreender a especificidade do romantismo de Garrett.
Claro está que essa singularidade do romantismo português está intimamente relacionada à própria experiência de Garrett, que inaugura o romantismo em Portugal. O contato que ele teve com o romantismo de outros países provocou nele o desejo de enveredar por uma prática literária que, diversamente do que ocorreu em Portugal, havia surgido em meio à ebulição das mudanças políticas geradas pela Revolução Francesa e do pensamento filosófico dela decorrente.
Este trabalho propõe uma análise comparativa de Viagens na minha terra; a investigação de como o contato de Garrett com outros romantismos, mais especificamente o romantismo na Inglaterra, resultou na confluência de práticas discursivas diversas, que, revestidas da habilidade do autor de conferir ao seu texto singularidade, possibilitou o surgimento do romantismo em Portugal.
Para tanto, faremos, primeiramente, uma reflexão acerca do conceito de ironia romântica, que vem a ser o recurso formal mais proeminente em Viagens na minha terra, assim como examinaremos a intertextualidade de forma e de conteúdo na obra em questão.
Examinaremos, ainda, a maneira pela qual Garrett se serve da ironia romântica para suscitar no nível do discurso a dualidade temática que desenvolve ao longo da diegese.
A ironia romântica: a forma do paradoxo
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A ironia romântica não deve ser confundida com o conceito tradicional de ironia, uma vez que esta é uma estratégia retórica na qual se observa um contraste entre o significado literal do que se diz e a intenção subjacente, enquanto que aquela consiste em uma estratégia basicamente formal, que enfatiza o caráter ficcional da obra literária.
O termo ironia romântica tem sua origem no romantismo alemão, mais especificamente nos fragmentos de Friedrich Schlegel. Ao explicar a sua teoria, Schlegel (1971) afirma que “a ironia é a análise da tese e da antítese”, “a forma do paradoxo”. Embora tenha primeiramente surgido como teoria, na prática a ironia romântica consiste na auto-reflexividade do texto, que expõe a ficcionalidade do produto estético, isto é, o processo de sua construção, e estabelece com o leitor o pacto da verossimilhança.
A teoria de Schlegel revela sua habilidade extraordinária de reconhecer no romantismo as sementes do que viria a ser o modernismo (MUECKE, 1986). Embora possamos encontrar alguns dos seus elementos em textos de autores de períodos anteriores, tais como Chaucer, Shakespeare e Cervantes, o desenvolvimento completo da ironia romântica, na teoria e na prática, só se tornou possível no fim do século XVIII, graças às mudanças políticas, de valores e de atitudes.
A Revolução Francesa foi uma experiência perturbadora para todos os países europeus, mas na Alemanha, devido à impossibilidade de uma revolução política, operou-se uma revolução intelectual. A falta de atividade política foi sublimada através do espírito. A par disso, a especulação filosófica da época apontava para o reconhecimento de que há certas contradições fundamentais na natureza do homem, assim como na natureza da arte, que não podem ser resolvidas numa resposta metafísica. Para Schlegel, a maneira de tratar essas contradições seria buscar a combinação de extremos, a harmonia dos opostos, “concordia discors”. Novalis, outro expoente do romantismo alemão, via a contradição como algo necessário e fecundo (WAHL, 1937).
Paralelamente, houve um crescimento no sentido da autoconsciência, perceptível, por exemplo, nas investigações de Fichte (BENJAMIM, 1993).
Ao combinar, ao reconciliar opostos, a ironia romântica não privilegia um em detrimento de outro, nem tampouco os sintetiza. Na realidade, ela lança um olhar profundamente crítico a ambos.
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O discurso intertextual
Ao empregar o termo “intertextualidade” pela primeira vez, Julia Kristeva (1969) observou que havia três elementos a serem considerados além do próprio texto: o autor, o leitor e os outros textos que formam um “corpus” com o qual o texto a ser examinado pode ser relacionado. Em suma, qualquer texto é, na verdade, o “locus” da confluência dos discursos do passado. A intertextualidade pode, assim, ser definida como a arte de decodificar textos à luz de outros textos.
No discurso do narrador de Viagens na minha terra pode-se facilmente perceber as “vozes” oriundas de outros discursos.
Muito se tem escrito acerca da maneira pela qual Garrett teve acesso ao romantismo inglês e alemão, assim como muitas têm sido as referências à presença de outras obras no texto de Garrett. No entanto, não consideramos demasiado ressaltar que na Autobiografia, de 1843, Garrett afirma que, durante o período em que esteve na Bélgica, dedicou-se com grande interesse ao estudo da língua e da literatura alemã e que a leitura de Schiller e Goethe exerceu nele uma influência decisiva. Também é fato notório que o exílio na Inglaterra proporcionou a Garrett o contato com o romantismo inglês.
Certo é que cada um desses contatos, primeiramente com os românticos ingleses e, posteriormente, com os alemães, contribuiu, de maneiras diversas, para delinear na obra de Garrett a percepção do romantismo como afirmação da personalidade, do original, em detrimento das regras da escola literária.
Garrett sempre foi avesso às regras que pudessem aprisionar o seu fazer literário e a idéia de ser considerado um escritor romântico aborrecia-lhe, tanto que não se esquiva de mencionar isso em VMT. O seu romantismo é específico, porque dotado de características muito pessoais. Garrett parece ter absorvido de cada um desses contatos aquilo que lhe pareceu coadunar-se com sua própria maneira de ver o mundo que o cercava.
Pois, amigo e benévolo leitor, eu nem em princípios nem em fins tenho escola a que esteja sujeito, e hei-de contar o caso como foi. Escuta. (GARRETT, [s.d.], p. 163)
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Eu não sou romanesco. Romântico, Deus me livre de o ser – ao menos o que na algaravia de hoje se entende por essa palavra. (GARRETT, [s.d.], p. 72)
Até mesmo nessa sua característica de rejeitar o rótulo de romântico, sabendo-se usuário de técnicas e temáticas que eram tipicamente românticas, percebe-se o paradoxo que se instaura ao longo de Viagens na minha terra.
Em VMT, o paradoxo realiza-se em diversos níveis, sob a forma de antinomias que se estendem do discurso à diegese. No entanto, essas antinomias são tratadas como dicotomias complementares.
Estilisticamente, o paradoxo da ironia romântica, em VMT, se manifesta através da coexistência do clássico e do romântico, visível influência de Goethe, para quem a temática romântica deveria ser tratada sob o ponto de vista neoclássico. O capítulo VIII de VTM é paradigmático, na medida em que mistura o clássico ao romântico de maneira ostensiva:
A doçura que mete na alma a vista refrigerante de uma jovem seara do Ribatejo nos primeiros dias de Abril, ondulando lascivamente com a brisa temperada da Primavera; a amenidade bucólica de um campo minhoto de milho...são ambos esses quadros de uma poesia tão graciosa e cheia de mimo, que nunca a dei por bem traduzida nos melhores versos de Teócrito ou de Virgílio, nas melhores prosas de Gessner ou de Rodrigues Lobo. A majestade sombria e solene de um bosque antigo e copado, o silêncio e escuridão de suas moitas mais fechadas, o abrigo solitário de suas clareiras, tudo é grandioso, sublime, inspirador de elevados pensamentos. (GARRETT, [s.d.] p. 72)
Pelo que se pode constatar no discurso de Garrett, não foi somente dos românticos ingleses, como Scott e Byron, que o autor das Viagens absorveu características e temáticas que viriam a manifestar-se mais tarde em sua obra. É facilmente observável a reprodução do estilo da novela pré-romântica de Laurence Sterne, A sentimental journey through France and Italy (1937),na qual são utilizadas estratégias de autoconsciência narrativa, preconizando a essência da ironia romântica. Cumpre-nos ressaltar que a palavra “sentimental” se reveste de uma conotação diferente em se tratando deste tipo de novela; refere-se ao relato das impressões do narrador.
Sterne deslocava o foco narrativo das ações para as opiniões, do exterior para o interior, propondo que as opiniões do narrador, suas reflexões acerca do relato, sua ironia
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frente à sociedade e ao comportamento humano assumissem importância igual a dos fatos relatados. Assim, ele destruía o conceito de plot, optando pela fragmentação da narrativa. Em VMT, Garrett procede de maneira equivalente, ao construir um texto aparentemente fragmentado, permeado por digressões, que, ao contrário do que aparentam, funcionam como elemento de coesão textual.
As “novelas sentimentais”, por assim dizer, fazem uso de algumas estratégias, das quais Garrett se serve no seu relato de viagem. Pode-se relacionar, por exemplo, a utilização do prefácio.
No prefácio de SJFI, Sterne não só enuncia o propósito do livro como também descreve as várias categorias de viajantes.
This brings me to my point; and naturally leads me (...) into the efficient as well as final causes of travelling — Your idle people that leave their native country, and go abroad for some reason or reasons which may be derived from one of these general causes— Infirmity of body, Imbecility of the mind, or Inevitable necessity. The two first include all those who travel by land or by water, (...) The third class includes the whole army of peregrine martyrs; (...) There is a fourth class, but their number is so small that they would not deserve a distinction(...) I shall distinguish these gentlemen by the name of Simple Travellers. (...) And last of all (if you please) the Sentimental Traveller (meaning thereby myself), who have travell’d, and of which I am now sitting down to give an account – as much out of Necessity, and the besoin de Voyager, as any one in the class. (STERNE, 1999, p. 603).
No prefácio de VMT também há referência à razão pela qual o autor do livro decide viajar, para onde e de que maneira irá.
Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de estio, viajo até à minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões; pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo. Pois hei de dar-lho. Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há de fazer crónica. (GARRETT, [s.d.], p.45).
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Um outro recurso das novelas sentimentais, detectável em SJFI e em VMT, é a presença explícita do narrador, que surge como narrador intruso e estabelece uma relação de cumplicidade com o “leitor”, a qual tem uma função diretiva na “viagem” através da obra. Assim, são comuns as apostrofações ao leitor: “Pois acredite-me o leitor amigo, que sei que alguma coisa dos sabores e dissabores deste mundo, fie-se na minha palavra, que é de homem experimentado (...)” (GARRETT, [s.d.], p.78).
E neste outro exemplo: “It had ever, as I told the reader, been one of the singular blessings of my life, to be almost every hour of it miserably in love with someone”. (STERNE, 1999, p.634)
Atente-se, também, para a utilização, nos exemplos a seguir, de símbolos à guisa de palavras, principalmente ao subtrair do texto um nome próprio:
A prompt French Marquis at our ambassador’s table demanded of Mr. H____, if he was H____ the poet? (STERNE, 1999, p. 622).
Já vou quase ao fim da praça quando ouço o dar grave mas pressuroso de uma carroça de ancien régime: é o nosso chefe e comandante, o capitão da empresa, o Sr. C. da T., que chega em estado. (GARRETT, [s.d.], p. 46).
Muito embora, na maioria das vezes, se relacione Viagens na minha terra à Viagem sentimental, de Sterne, também se pode observar a intertextualidade em relação a uma outra obra de Sterne, Tristam Shandy.
Sterne está inserido numa linhagem fértil de ironistas que tem em Cervantes seu modelo. Assim é que, não só em Viagem sentimental como também em Tristam Shandy, existem na obra de Sterne referências explícitas e múltiplas a Dom Quixote, de Cervantes, sendo que, em TS, há uma passagem, intitulada “The invocation”, na qual o narrador invoca “the gentle spirit of sweetest humour” do seu “amado” Cervantes.
— and indeed, much grief of heart has it oft and many a time cost me, when I have observed how many a foul step the inquisitive Traveller has measured to see sights and look into discoveries; all which, as Sancho Panza said to Don Quixote, they might have seen dry-shod at home. (STERNE, 1999, p. 604).
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GENTLE spirit of sweetest humour, who erst didst sit upon the easy pen of my beloved Cervantes. (STERNE, 1937, p. 573).
Ainda em Tristam Shandy, pode-se observar a retomada das personagens Dom Quixote e Sancho Pança através do Tio Toby e do Cabo Trim. É digno de nota o fato de que Garrett se refere explicitamente a Tristam Shandy em VMT, numa passagem na qual o narrador finge não ser onisciente:
É uma grande lacuna na nossa história; mas antes fique assim do que enchê-la de imaginação. Oh! Eu detesto a imaginação. Onde a crónica se cala e a tradição não fala, antes quero uma página inteira de pontinhos, ou toda preta, como na venerável história do nosso particular e respeitável amigo Tristão Shandy, do que uma só linha da invenção do croniqueiro. (GARRETT, [s.d.], p. 196).
Estas considerações se fazem necessárias a fim de que se possa analisar o processo de reduplicação do paradoxo, isto é, da antinomia encontrada no discurso, quando esta ocorre no nível da diegese.
Quanto aos sumários que Garrett utiliza e que também constituem estratégias típicas do pré-romantismo inglês, pode-se observar a sua semelhança com os sumários de Tom Jones, de Henry Fielding. Assim como Sterne, Fielding também pode ser arrolado na lista de ironistas que seguem o modelo cervantino. Comparem-se os sumários:
Em que se contém assunto tão grave que o leitor não poderá rir uma vez sequer durante todo o capítulo, a menos que se ria, acaso, do autor. (FIELDING, 1971, p. 23).
Em que se trata da grande e descomunal batalha que teve Dom Quixote com uns odres de vinho tinto, e se dá fim à novela do curioso impertinente. (CERVANTES, 1981, p. 211).
Acha-se desapontado o leitor com a prosaica sinceridade do A. destas viagens — O que devia ser uma estalagem nas nossas eras de literatura romântica?— Suspende-se o exame desta grave questão para tratar, em prosa e verso, um mui difícil ponto de economia política e de moral social (...). (GARRETT, [s.d.], p. 53).
Assim como se pressupõe que Garrett tenha lido Sentimental journey no original, não é improvável supor que, da mesma forma, tenha tido acesso à obra de Fielding.
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Comparemos, a título de exemplificação, os exemplos a seguir, em que as digressões são autoconscientemente comentadas:
O leitor perdoará uma digressão em que se revela segredo tão inestimável, visto que todo jogador há de concordar que é muitíssimo necessário conhecer o jogo do outro, a fim de poder frustrá-lo. (FIELDING, 1971).
Benévolo e paciente leitor, o que eu tenho decerto ainda é consciência, um resto de consciência: acabemos com estas digressões e perenais divagações minhas. Bem vejo que te deixei parado à minha espera no meio da ponte de Asseca. Perdoa-me, por quem és, dêmos de espora às mulinhas, e vamos, que são horas. (GARRETT, [s.d.], p. 78).
For in this long digression which I was accidentally led into, as in all my digressions(one only excepted) there is a master- stroke of digressive skill, the merit of which has all along, I fear, been overlooked by my reader,— not for want of penetration in him,—but because ‘tis an excellence seldom looked for, or expected indeed, in a digression;—— and it is this: That tho’my digressions are all fair, as you observe,—— and that I fly off from what I am about, as far, and as often too, as any writer in Great Britain; yet I constantly take care to order affairs so that my main business does not stand still in my absence. (FIELDING, 1971, p. 62).
Curiosamente, assim como Garrett ([s.d.], p. 49) se propõe a escrever “uma obra prima, erudita, brilhante de pensamentos novos” em VMT, Fielding, em TJ, também se anuncia como o fundador de uma nova forma de fazer literário:
Não há de surpreender-se, portanto, o leitor se, no decurso desta obra, encontrar capítulos muito curtos, e outros muito longos; alguns que contêm apenas o espaço de um dia, e outros que compreendem anos; em outras palavras, se a minha história parecer, às vezes, que não sai do lugar e, outras, que voa. Pelo que não me considerei responsável perante nenhum tribunal nem jurisdição crítica nenhuma; pois como sou, em realidade, o fundador de uma nova província do escrever, posso ditar-lhe livremente as leis que me aprouverem. Leis que os meus leitores, que considero como súditos, têm a obrigação de acreditar e obedecer (...). (FIELDING, 1971, p. 40).
Em TJ, como em DQ e VMT, também há uma longa digressão interpolada que narra uma estória dentro da estória original: trata-se do relato do homem da colina e, assim como a novela da menina dos rouxinóis, tem uma função chave dentro do macrotexto. Em TJ, a
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novela interpolada funciona como um rite de passage tanto para o leitor quanto para o protagonista. Para Tom, é o início do seu processo de aprendizagem e a antecipação velada do que terá de enfrentar no futuro; para o leitor, é o convite mudo à reflexão sobre os conceitos e valores morais que regem a humanidade. Sob esse ponto de vista, a novela dentro da novela é o equivalente reduzido da trama do macrotexto.
Em Viagens na minha terra, a novela da menina dos rouxinóis exerce função semelhante, na medida em que suscita os mesmos questionamentos do macrotexto; razão pela qual Helder Macedo (1979, p.19) nos chama atenção para a sua natureza simbólica em relação à própria narrativa das Viagens.
Consequentemente, a novela adquire um valor metafórico sinónimo do significado da viagem propriamente dita, tornando-a, como diz Garrett, num símbolo.(...) Por um lado, a novela, sendo semanticamente sinónima da viagem, metaforiza-a; mas, por outro, ao fazê-lo, a própria novela passa a ter um valor designativo, ou documental, de funcionalidade metonímica, aliás estruturalmente acentuado pela sua intercalação fragmentada entre a chegada dos viajantes à Santarém e o seu regresso a caminho de Lisboa.
Observemos, ainda, que Garrett faz a conexão dos capítulos à moda cervantina, expondo o texto como artifício:
Acabemos aqui o capítulo em forma de prólogo; e a matéria do meu conto para o seguinte. (GARRETT, [s.d.], p. 81).
E aqui, neste breve capítulo, pôs ponto o autor, e principiou o outro, continuando com a mesma aventura, que é uma das mais notáveis desta história. (CERVANTES, 1981, p. 462).
Ao analisar comparativamente as estratégias de autoconsciência narrativa na obra de Sterne, Fielding, Garrett e Cervantes, buscamos traçar uma relação entre os dois últimos, que foi, provavelmente, intermediada pelos primeiros. Podemos, portanto, afirmar, em bases bastante sólidas, que a presença de Dom Quixote em Viagens na minha terra vai além das referências explícitas de seu narrador-autor. O texto de Garrett tem em Dom Quixote o seu principal intertexto, não apenas tematicamente, mas também estruturalmente.
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O paradoxo em Mise en abyme
A reduplicação do paradoxo instaurado pela ironia romântica, sob a forma de antinomias, constitui uma espécie de mise en abyme de topos, em Viagens na minha terra, na medida em que ocorre em todos os níveis narrativos: o nível extradiegético do discurso, onde narrador e narratário transitam, o nível intradiegético da viagem geográfica e psicológica a Santarém e o nível metadiegético, no qual a novela da menina dos rouxinóis está inserida.
No nível extradiegético, o paradoxo se reflete nas relações entre a exposição da obra enquanto produto e o pacto entre narrador e leitor quanto à veracidade do relato, conforme afirma Maria Fernanda de Abreu (1994, p. 185) em Cervantes no romantismo português:
Com efeito, era de longa, diríamos mesmo longuíssima data, e repetida, a sua convivência com Miguel de Cervantes, as suas personagens, os seus temas e tópicos, o seu humor e a sua ironia, os paradoxos que ambos cultivaram com o maior requinte. E, por fim, as técnicas e manhas de uma narrativa que, com uma mão jura a sua “verdade histórica” e com a outra dá largas à invenção.
Ainda nesse primeiro nível, percebe-se o paradoxo da ironia romântica na coexistência do clássico e do romântico no discurso de Garrett, conforme já exemplificamos.
No nível intradiegético, da narrativa da viagem a Santarém, o paradoxo se reproduz na antinomia materialismo-espiritualismo, que, conforme afirma Helder Macedo (1979), “serve a Garrett para explicar a situação cultural, política e social de Portugal”.
Houve aqui há anos um profundo e cavo filósofo d’além-Reno que escreveu uma obra sobre a marcha da civilização, do intelecto— o que diríamos,para nos entenderem todos melhor, o Progresso. Descobriu ele que há dois princípios no mundo: o espiritualista (...) que pode bem personalizar-se, simbolizar-se pelo famoso mito do cavaleiro da Mancha, D.Quixote; o materialista, que (...) pode bem representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo velho, Sancho Pança.(...) Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em que domina el-rei Sancho. Depois há de vir D.Quixote.(...) Ora nessa minha viagem Tejo arriba está simbolizada a marcha do nosso progresso social. (GARRETT, [s.d.], p. 50).
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No último nível, metadiegético, o da novela da menina dos rouxinóis, a mesma antinomia é reproduzida e personificada nas personagens Carlos e Frei Diniz. Se bem que sob a forma de um quiasmo, ora uma personagem, ora outra assume um dos aspectos dessa antinomia, em fases diferentes de suas vidas e em ordem temporal inversa, de sorte que, como bem expressou Helder Macedo (1979), funcionam como espelhos, imagens inversas, um do outro.
A associação da antinomia materialismo-espiritualismo às figuras de D.Quixote e Sancho Pança constitui um símbolo perceptível ao longo de todo o texto de VMT, convertendo-se no seu eixo filosófico e ideológico e pode ser detectada mesmo no nível do discurso.
Na enunciação, a “materialidade” da obra, o seu construir progressivo, que é acompanhado pelo leitor, coexiste com a “espiritualidade”, isto é, com a porção de criatividade e invenção, e progressivamente vai se reduplicando até o último nível.
Considerando-se que estamos a usar nomenclatura da narratologia de Gerard Genette (1972) e, segundo a mesma teoria, os níveis narrativos constituem-se em relatos enunciados a partir do nível imediatamente anterior, esquematicamente, em VMT, os níveis estariam assim distribuídos:
ÂMBITO |
NÍVEL |
![]() |
|
Narrador-Narratário |
Nível Extradiegético |
||
Viagem geográfica e psicológica |
Nível Intradiegético |
Materialismo/Espiritualismo |
|
Novela Interpolada |
Nível Metadiegético |
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A ironia romântica dá-se então em todos os níveis, na medida em que concilia os opostos sem sintetizá-los.
Conclusão
Quando Maria Fernanda de Abreu (1994) afirma que a antinomia materialismo-espiritualismo é o eixo filosófico e ideológico de VMT, ela o faz mostrando que as personagens de Cervantes são figuras “vazias”, que se enchem no texto com uma função simbólica.
O paradoxo simbolizado pelas figuras cervantinas, herdado da interpretação romântica de Dom Quixote, instaura no universo ficcional o paradoxo da própria existência humana: o conflito entre o real e o ideal.
Para Schlegel, o romance era o gênero romântico por excelência, dada a sua natureza de representar o mais satisfatoriamente possível esses conflitos inerentes à natureza humana. Ao formular a teoria da ironia romântica, ele quis torná-la a expressão de uma atitude em relação à vida, ou, mais precisamente, um meio de relacionar-se com um mundo que parecia estar sempre at odds com a espécie humana, como afirma Wellek (1955, p.14): “Irony is the recognition of the fact that the world in its essence is paradoxical and that ambivalent attitude alone can grasp its contradictory totality”.
Parece-nos que foi exatamente essa a intenção de Garrett: traduzir o mundo contraditório em que viveu. Como fazê-lo de um outro modo, senão invadindo o mundo do leitor, estabelecendo com ele um pacto de colaboração na escritura do seu texto? Assim, Garrett escreve as suas Viagens e o resultado é, simultaneamente, um tour pela construção da obra literária e uma viagem, sutilmente guiada pelo narrador, pelas suas reflexões.
Ao invadir o relato metadiegético, no diálogo com Frei Dinis, o narrador deixa implícita a idéia de que a arte é mimese e não uma reprodução da vida, daí a possibilidade de solucionar no universo ficcional o que nos parece insolúvel na vida real. É precisamente isso que Helder Macedo (1979, p.22) enfatiza, ao afirmar que “todo quiasmo é um falso dilema, que só pode ser solucionado se os termos que o definem forem corrigidos de modo a permitir a síntese que os supere”. Ocupando o espaço semântico previamente definido por
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Carlos, o narrador pode reconhecer, juntamente com Frei Dinis, que, absolutistas e liberais, “errámos ambos” (GARRETT, [s.d.], p.222).
O percurso da estratégia da autoconsciência narrativa, a viagem que o leitor faz à roda da ficção nas Viagens, atinge seu ponto máximo no trânsito do narrador pelos níveis intradiegético e metadiegético. Os questionamentos temáticos, levados a cabo também no nível do discurso, rumam para a autognose do narrador, que resolve simbolicamente o quiasmo.
Ao contrário de Tom Jones, onde o protagonista, herói picaresco, alcança a sabedoria ao final de suas peripécias, não é Carlos que obtém “utilidade e proveito” de seus erros e acertos e sim o narrador, assim como o leitor. Para Carlos, é tarde demais.
Entre o sonho e a ilusão, simbolizados pelas estradas de papel, e o materialismo desmedido, simbolizado pelas estradas de ferro, o narrador fica com as estradas de pedra, que surgem como síntese para todas as antinomias: o mundo palpável das soluções pragmáticas.
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