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casos do beco das sardinheiras, de mÁRIO DE CARVALHO: PARADIGMA DO MACRO-GÊNERO DO INSÓLITO
Flávio García
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
flavgarc@oi.com.br
Resumo:
Casos do Beco das Sardinheiras, de Mário de Carvalho, está sendo lido aqui como macro-texto ou obra literária paradigmática na discussão acerca da existência de um macro-gênero do insólito, em oposição a um macro-gênero do real-naturalismo. A leitura apresentada tenciona as relações de paratextualidade e arquitextualidade, dialogando o “Prólogo”, texto-moldura, com os “casos”, textos-emoldurados, e problematizando questões de gênero literário em torno da pertinência ou não se propor um novo gênero ou sub-gênero contemporâneo.
Palavras-chave: Insólito; gênero literário; estudos da narrativa; narrativa portuguesa contemporâneaAbstract:
Mário de Carvalho’s Casos do Beco das Sardinheiras is read here as a macro-text or paradigmatic text for the debate over a macro-genre, The Uncommon, opposed to a macro-genre understood as real-naturalism. The text here presented contrasts the paratextual and arquitextual relationship, relating the prologue – a frame-text – and the short-stories – framed-texts – in the book and questions the ideas of literary genre together with the relevance or not of proposing a new contemporary genre or sub-genre.
Key words: Uncommon; literary genre; narrative studies; contemporary portuguese narrativePara falar de Casos do Beco das Sardinheiras, de Mário de Carvalho (1991), ainda que conheçamos bem as restrições do autor a atitudes da crítica, filiando parte de sua obra ao Fantástico, ao Realismo Maravilhoso ou ao Absurdo, bem como aproximando-o de Jorge Luís Borges (CARVALHO, 1996), recorremos a ensaios sobre a obra de Franz Kafka.
Tânia Carvalhal, ao apresentar o universo poético kafkiano, diz que “situação kafkiana” ou “atmosfera kafkiana” são expressões que participam do nosso dia-a-dia como sinônimos do ilógico, do irracional, do incompreensível e do absurdo. (CARVALHAL, 1973, p. 15) Esta assertiva não impede que, no mesmo volume de ensaios, José Dacanal afirme que:
Kafka segue rigorosamente uma das técnicas mais comuns às obras do real-naturalismo, se em nenhum momento a narração se distancia da verossimilhança (...)
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que é elemento essencial do romance real-naturalista, se todos os fatos narrados são possíveis (...) no mundo da realidade empírica (...). (DACANAL, 1973, p. 59)
Para chegar a tal conclusão, Dacanal tomou como exemplo a obra de Balzac. Segundo sua leitura, os elementos próprios do incipit – prólogo, introdução, palavras iniciais, didascália, primeiro capítulo etc. – da narrativa do real-naturalismo “são o contexto histórico, a localização geográfica, a determinação social do conjunto dos fatores apresentados”. (DACANAL, 1973, p. 48) Assim, conforme Dacanal (1973, p. 48),
Utilizando o processo mais comum ao romance do real-naturalismo, isto é, a narração em terceira pessoa feita por um autor onisciente, Balzac (...) joga, com extrema violência, a realidade no rosto do leitor.
Os onze “casos” que compõem a obra literária aqui apresentada – Casos do Beco das Sardinheiras (CARVALHO, 1991) – são emoldurados por um “Prólogo” – aparece como “Intróito” na primeira edição (Lisboa: Contra-Regra, 1982) – e um “Epílogo”. Nossa focalização irá se centrar sobre esta estratégia de construção narrativa, baseada nos diálogos intertextuais do “Prólogo” com os “casos” que o seguem e com o “Epílogo”, destacando a “paratextualidade, relação do texto com outros textos que o enquadram (títulos, subtítulos, prefácios, posfácios, etc.)”. (REIS, 2001, p. 187)
No “Prólogo” (1991, p. 13-16), um narrador-personagem-autor, em função de narrador homodiegético – aquele que narra uma história da qual participa, mas da qual não é a personagem principal –, cumpre o papel reservado ao narrador do macro-gênero do real-naturalismo, como apontara Dacanal: “narração em terceira pessoa feita por um autor onisciente” (DACANAL, 1973, p. 48).
O termo macro-gênero, aqui empregado tanto para se referir ao conjunto de gêneros ou sub-gêneros do real-naturalismo quanto do insólito, é sugerido por Carlos Reis: “para cumprir um tal programa, o escritor naturalista alarga-o à série romanesca (...), espécie de macro-gênero que procura apreender a ampla dimensão de uma sociedade em evolução.” (REIS, 2001, p. 253)
Desse modo, o narrador de Casos do Beco das Sardinheiras inicia, conforme um narrador típico do real-naturalismo, localizando o Beco, cenário dos “casos”, nos planos histórico, geográfico e social:
O Beco das Sardinheiras é um beco como outro qualquer, encafuado na parte velha de Lisboa. Uns dizem que é de Alfama, outros que é já de Mouraria e sustentam as suas opiniões com sólidos argumentos topográficos, abonados pela doutrina de olisiponenses egrégios. Eu, por mim, não me pronuncio. Tenho idéia de que é mais Alfama, mas não ficaria muito escarmentado se me provassem que afinal é Mouraria. (CARVALHO, 1991, p. 13)
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E sua onisciência, característica própria dos narradores do real-naturalismo, é declarada logo no início do primeiro “caso”, “O tombo da Lua” (p. 17-20): “Uma ocasião, quando desapareceu a Lua, eu estava lá e sei contar tudo.” (p. 17)
Seguindo sua estratégia de construção narrativa, em que
o incipit reveste-se de relevância especial quando se traduz em fórmulas com incidência semântica e com possibilidades de caracterização mais ou menos canónica de um género ou de uma estratégia literária. (REIS, 2001, p. 205)
o narrador tenta explicar o topônimo, ampliando detalhes da localização do Beco: “Creio que o nome lhe vem das sardinheiras que exibem um carmesim vistoso durante todo o ano, plantadas num canteiro que rompe logo à esquina, não longe da drogaria, que fica na Rua dos Eléctricos.” (CARVALHO, 1991, p. 13)
Seu passo seguinte é localizar as personagens do Beco, participantes dos “casos”, nos planos histórico, geográfico e social: “A gente que habita o Beco é como a demais, nem boa nem má. Tem sobre os outros lisboetas um apego ainda maior ao seu sítio e às suas coisas.” (CARVALHO, 1991, p. 13)
E dando fechamento às localizações generalizantes do Beco e de seus habitantes, o narrador inscreve-os nas dimensões mais destacadas da História nacional portuguesa, apontando, principalmente, para o papel social das personagens:
Desde há muito que não há memória de que algum dos do Beco tenha emigrado de livre vontade. À força sim, fizeram a Índia e Alcácer Quibir, andaram no mar dos Japões e nas selvas brasileiras, sofreram em África, nas guerras muitas, bateram-se contra os boches, na Flandres. Como todos nós. Aos recrutadores nunca foi imune o Beco. E, em boa verdade, não se pode dizer que tenha sido pior para os de lá esta permeabilidade à história que também foi a dos outros. (CARVALHO, 1991, p. 13-14)
Situados histórica, geográfica e socialmente, tanto o Beco quanto os seus habitantes, o narrador toma uma personagem do passado – Doutor Jácome Aberracaz – e liga-a, de início, ao reinado de D. João III, período da Inquisição, dando-lhe destacado valor social: “Em tudo isto o Beco produziu gente ilustre, de que lembro agora o Doutor Jácome Aberracaz, médico subido da corte do senhor Rei D. João III.” (CARVALHO, 1991, p. 14) Logo a seguir, valendo-se da biografia daquela personagem, liga o presente do Beco àquele passado que já realçara:
A casa em que nasceu [o Doutor Jácome Aberracaz], nos tempos em que os sítios eram de moirama ou judiaria, ainda lá está, a meio do Beco, ao lado esquerdo de quem olhe da Rua dos Eléctricos. Hoje é habitada no primeiro andar pelo Zeca da Carris e
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família, e no rés-do-chão por Dona Constança, a professora primária (...). (CARVALHO, 1991, p. 14)
Deste modo, com a estratégia discursiva empregada, o narrador reúne personagens do Beco, no presente, a uma personagem ilustre do passado do Beco, conferindo existência histórico-social ao Beco das Sardinheiras e aos seus habitantes ao longo dos tempos.
A importância social do Doutor Jácome Aberracaz, e mesmo cultural e literária, em sentido lato, será utilizada pelo narrador para reforçar a existência histórica e social do Beco e de seus habitantes. Primeiro, ele reafirma a importância social da personagem no cenário da corte de D. João III:
Este Doutor Aberracaz, marrano dos sete costados, deu muito que falar no seu tempo. Tantos visos tinha de sabedor e prudente que a Inquisição o poupou e se distraiu de saber se respeitava ou não o sabath. Acontece que assistia também os inquisitoriais humores e que a sua banha de lagarto de Java, de que era exclusivo preparador, se apregoava em toda a Europa como remédio infalível para muitos males. (CARVALHO, 1991, p. 14)
Depois, apresenta o Doutor Aberracaz como escritor, destacando de sua obra um fio que empregará na tessitura do novo tecido social que compõe o Beco e, mesmo, da tessitura textual da nova obra que ele escreve enquanto narrador-personagem-autor:
Na Torre do Tombo, conservaram-se duas obras dele, mas consta que teria escrito muitas mais. Uma vem em hebraico e chama-se Interpelação às Dez Tribos Perdidas e a outras – um túrgido tratado médico – vem em latim: De catalepsia.
De hebraico não sei nada, de maneira que a obra me ficou inacessível. E de latim risco muito pouco, mas o suficiente para sorrir, ao topar, no final de uma extensa descrição da “Catalepsia do flanco direito”, uma sentença muito minha conhecida e que ainda hoje é abundantemente utilizado no Beco das Sardinheiras: Nec enim licet generum confundere humanum cum Emmanuelle Germano (“Convém mas é não confundir género humano com Manuel Germano”). (CARVALHO, 1991, p. 14-15)
A intertextualidade declarada no “Prólogo” pelo narrador-personagem-autor visa, efetivamente, à “integração contextual, interagindo no âmbito restrito do co-texto, [e] tem em conta, antes de mais, o lugar estratégico que é o início do texto” (REIS, 2001, p. 201), uma vez que “o incipit surge como lugar estratégico especialmente significativo em textos narrativos.” (REIS, 2001, p. 207)
Conforme observa Carlos Reis (2001, p. 199),
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Faz sentido (...) considerar, como factor decisivo para a confirmação do estatuto da obra literária assumido por um texto, a sua articulação com o contexto, entendendo-se nessa articulação uma certa forma de dialogar com determinado cenário histórico e cultural.
E o que garante essa articulação em Casos do Beco das Sardinheiras é a paratextualidade verificada entre o “Prólogo” e os “casos”, dando ao macro-texto o estatuto de obra literária porque, enquanto quadro de intertextualidades, se compõe de vários textos literários – “Prólogo” ou “Intróito”, dependendo da edição, e “Epílogo”, que funcionam como moldura, e os “casos” propriamente ditos, correspondendo ao elemento emoldurado.
Enfim, o Beco e suas personagens estão, como na construção narrativa do real-naturalismo, devidamente “localizados histórica, geográfica e socialmente. O que dá a eles todos esta existência quase corpórea é, como é óbvio, o fato de integrarem uma estrutura social perfeitamente definida no tempo e no espaço.” (DACANAL, 1973, p. 49)
Assim, o narrador chega a confessar:
Recomendaram-me que desenhasse um mapa neste livro para que o Beco pudesse ser encontrado sem custo. Lérias! Basta ir por Alfama abaixo ou por Mouraria acima, meter o nariz em todas as vielas e pracetas e o Beco surgirá, sem sombra de dúvidas de que é aquele. Para quê entrar em mais pormenores. (CARVALHO, 1991, p. 15)
O fingimento desse narrador-personagem-autor ganha novas dimensões na abertura de cada um dos “casos” relatados, que se iniciam, todos os onze, pela expressão “uma ocasião”, parafraseando o “‘Era uma vez...’ [que] indicia desde logo a entrada num universo ficcional, conotando especificamente a enunciação própria do conto infantil” (REIS, 2001, p. 205), e por que não dizer dos contos maravilhosos, matrizes da literatura infanto-juvenil, filiados ao gênero Maravilhoso, berço da tradição do insólito na narrativa ficcional.
Pela declaração de caráter autobiográfico com que completa a expressão, no primeiro “caso”, “O tombo da Lua”, também desempenhando uma função de incipit, pode-se afirmar, sem susto, que a expressão “uma ocasião”, com a qual o narrador inicia cada um dos “casos”, reveste-se da significação do “era uma vez”: “Uma ocasião, quando desapareceu a Lua, eu estava lá e sei contar tudo. Não me lembro bem da idade que então tinha e já na altura não me lembrava.” (CARVALHO, 1991, p. 17 – grifo nosso) O narrador-personagem-autor situa o acontecimento num tempo impreciso, vago, tempo em que não se lembrava da idade que tinha, nem no momento da narração nem no momento do narrado, sugerindo um tempo não delimitável, não reconhecível no plano da realidade ôntica, tempo das histórias maravilhosas.
No primeiro “caso”, “O tombo da Lua” (p. 17-20), Andrade da Mula, com um despretensioso bocejo, engole a Lua, e a solução que o presidente da Junta dá ao evento é que se esqueça o acontecido para
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não dar má fama ao Beco. No segundo “caso”, “O gato gatão” (p. 21-25), a gata da família de Manuel da Ribalda dá luz a um único filhote, que se transforma numa pantera, apreciadora por devorar fardados, mas que acaba exilada nas terras da Espanha também para não dar o que falar do Beco. No terceiro “caso”, “Aquela corda” (p. 27-31), surge, inexplicavelmente, dependurada do céu, uma corda, que, também inexplicavelmente, desaparece. No quarto “caso”, “A pedra preta” (p. 33-38), os homens da companhia de gás, tentando consertar o encanamento, deparam-se com uma pequena pedra preta inamovível diante de todos os esforços empregados, mas que, espantosamente, é retirada do lugar e a ele devolvida, sem nenhum esforço, pelo miúdo Pedro. No quinto “caso”, “A torneira” (p. 39-44), o miúdo Pedro e seus coleguinhas, brincando no proibido cômodo da gateira, giram uma roda que faz com que caia do céu um forte fio d’água, somente extinto pelo movimento contrário da roda. No sexto “caso”, “O lugar do gelo” (p. 45-51), a máquina de costura, comprada de segunda mão pelo Zeca da Carris para sua mulher, produz um frio tão intenso ao seu redor que acaba utilizada como frigorífico. No sétimo “caso”, “A algaravia” (p. 53-58), o Quim Ambrósio leva uma pancada na cabeça com uma telha que cai do telhado e passa a falar uma língua que ninguém no Beco entende, ainda que o Quim entenda o que falam com ele; tentando curar o Quim, dão-lhe uma pancada semelhante no lado oposto da cabeça, e ele passa a não entender mais o que os outros falam com ele, invertendo-se a lógica do problema. No oitavo “caso”, “Chuva a domicílio” (p. 59-62), uma estranha nuvem se forma sobre a Lecas Pasteleira, enquanto esta dorme; perseguida a nuvem, para que se lhe ponham fim, ela invade a casa do Alves Madrilador, risca trovejos sobre todos, mas acaba presa num balde pelo Zeca da Carris, sendo enterrada no chão, enfiando-se-lhe um cano, fazendo com que se transforme num chafariz, que a companhia de águas quer pôr fim por o crer clandestino. No nono “caso”, “O trombone” (p. 63-67), Tô Valente, preocupado com a tristeza de seu tio, encomendou ao Virgolino um saxofone para este tocar e se distrair, mas o que Virgolino trouxe mesmo foi um trombone; quando o tio Bento tocava o trombone, as coisas todas à volta eram sugadas para dentro da boca do instrumento, que acabou fechado numa caixa e abandonado a um canto. No décimo “caso”, “O percurso pra cá” (p. 69-74), pessoas aparecem, estranhamente, dentro do marco dos correios, e, ainda que se tente oferecer uma explicação para o insólito, este acaba em suspense. No décimo primeiro e último “caso”, “O padre alentejano” (p. 75-81), instalou-se no Beco, a fim de reabrir a igreja próxima, um padre dado a inventos inusitados e desastrados, com passado suspeito, que acaba expulso do Beco, mas continua sua saga de desastrado e louco inventor.
Todos os “casos” relatam eventos insólitos, surpreendentes para a expectativa do leitor, em dissonância com o senso comum, diversos da experienciação da realidade ôntica. A paratextualidade entre os “casos”, visivelmente filiados ao macro-gênero do insólito, e o “Prólogo”, nitidamente vinculado às estratégias de construção narrativa do real-naturalismo, produz um novo efeito de gênero.
A seguinte observação de Carlos Reis permite explicar a articulação entre o mundo possível dos “casos” – num olhar mais rápido “impossível” – com a categoria da verossimilhança, emprestada pelo “Prólogo”:
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A relação desse mundo possível com o real pauta-se pela categoria da verossimilhança (quer dizer: representa-se o que poderia ter acontecido), mas pode também resolver-se pela via da metáfora, da alegoria, do fantástico, da caricatura, da deformação desrealizante, etc. etc. (REIS, 2001, p. 172)
E mesmo Carlos Reis admite a interferência do “fantástico” – obviamente empregado em sentido lato – ou a “deformação desrealizante” na concretização da verossimilhança narrativa interna.
Assim, pode-se ler outro aspecto de intertextualidade na composição de Casos do Beco das Sardinheiras como macro-texto ou obra literária, “a arquitextualidade, que corresponde sobretudo às relações do texto com normas (por exemplo, de género literário) de que ele é tributário.” (REIS, 2001, p. 187)
Mário de Carvalho tem refutado a filiação de sua obra a gêneros literários demarcados pela tradição crítico-teórica e a aproximação que se lhe têm feito a Borges, García-Márquez ou Kafka, mas
só por abstracção inteiramente artificial se poderia pensar que o escritor consegue alhear-se por inteiro de uma relação, qualquer que seja ela, com os géneros literários. Fazê-lo seria o mesmo que postular uma criação literária assepticamente impermeável à ressonância de ecos e vozes culturais emanadas do contexto que evolve essa criação. (REIS, 2001, p. 247)
Já apresentamos uma das narrativas curtas de Mário de Carvalho, “Do Deus memória e notícia” (1990) como vinculada ao Realismo Maravilhoso (GARCÍA, 1999), bem como temos lido outras de suas narrativas enquanto exemplos de um novo gênero que vimos propondo – o Insólito Banalizado –, do qual consideramos Casos do Beco das Sardinheiras paradigma exemplar (XX Encontro da ABRAPLIP, Niterói: UFF; XXI Encontro da ABRAPLIP, São Paulo: USP; XI Encontro Regional da ABRALIC, São Paulo: USP).
Se a obra de Mário de Carvalho, e em particular os Casos do Beco das Sardinheiras, se inscreve ou não em um novo gênero ou num sub-gênero, no conjunto das experiências literárias da Contemporaneidade, esta não é a questão central a responder. Não se pode, contudo, negar que sua obra, em geral, faz parte de um macro-gênero do insólito, uma vez que a manifestação de eventos insólitos é o móvel propulsor das narrativas. Fora isso,
Não custa admitir que a relativização dos géneros constitui, no plano da teoria, uma atitude relacionada com (ou até influenciada por) uma certa instabilidade, verificável em práticas literárias dos nosso dias, práticas essas irredutíveis a uma referência genológica estável. (REIS, 2001, p. 289)
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A obra de Mário de Carvalho, escritor contemporâneo, é representante das experiências narrativas pós-modernas, podendo ser lida como inauguradora de um novo gênero ou revisitadora de gêneros tradicionais, que recria, correspondendo, talvez, a possíveis sub-gêneros. De um modo ou de outro, a categoria distintiva central do gênero ou sub-gênero em que se podem situar as narrativas de Mário de Carvalho é a emersão de eventos insólitos não-ocasionais, dos quais depende o desenvolvimento da trama.
Inegavelmente, a obra ficcional de Mário de Carvalho é produto de um momento de instabilidades. Trata-se, mesmo, de
Um estádio (...) relativamente moderado dessa instabilidade é o que se encontra em tentativas pós-modernistas de refazer, recuperar ou conjugar géneros e subgêneros narrativos desaparecidos ou pouco reputados do ponto de vista cultural. (...) O romance policial, o romance gótico, o romance histórico, o romance fantástico, o romance de aventuras são alguns desses subgêneros. (REIS, 2001, p. 289)
O “Epílogo”, de que aqui ainda não se falou, é outro “caso”, único em que o narrador-personagem-autor aparece como elemento agente. Mas, como dissemos, é outro “caso”... Sua estruturação narrativa o aproxima dos textos emoldurados”, ou seja, dos demais “casos”, e o distancia do “Prólogo’, que, como ele, cumpre a função de texto-moldura, uma vez que, igualmente aos onze “casos” anteriores, se inicia pela mesma paráfrase da expressão “era uma vez”: “Uma ocasião, estava eu sozinho em casa, depois do jantar e tocaram-me à porta. Era uma embaixada.” (CARVALHO, 1991, p. 83)
Neste relato, o narrador homodiegético dos outros onze “casos”, que narrou sempre em terceira pessoa, apenas se colocando em primeira pessoa para emitir opiniões ou atestar seu caráter testemunhal ou sua onisciência, passa a desempenhar a função de narrador autodiegético, narrando em primeira pessoa e relatando o que lhe acontece. Ele vai interagir diretamente com suas personagens, os habitantes do Beco:
A meio do patamar, o Zeca da Carris e o Chico Estivador seguravam a carreta de madeira do Zé Metade, que com a diferença de alturas vinha muito inclinado, o que lhe dava para resmungar em voz baixa:
– Dá licença? – disseram eles. E invadiram-me decididamente a sala. (p. 83)
Se o “Prólogo”, em sua condição de incipit, corresponde ao “momento importante para se captar a atenção do auditório” (REIS, 2001, p. 2005), representando, na ficção, “o lugar de abertura ou começo de um texto” (REIS, 2001, p. 205), e sua “formulação (...) varia de acordo com o grau de fixidez textual de certos modos e géneros literários” (REIS, 2001, p. 205), em Casos do Beco das Sardinheiras ele convida o auditório a imaginar o cenário de uma narrativa do real-naturalismo, como aqui já se demonstrou. E se é fato que, no universo de estratégias de construção narrativa do real-naturalismo, “estabelece-se um efeito
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de concordância entre o incipit e o explicit” (REIS, 2001, p. 209), isso não se dá em Casos do Beco das Sardinheiras. Nessa obra literária, macro-texto composto de textos-molduras e textos-emoldurados, o incipit, demarcado pelo “Prólogo”, texto-moldura, convida a uma leitura em consonância com as expectativas do real-naturalismo, mas o explicit, representado pelo “Epílogo”, também texto-moldura, renega a leitura real-naturalista proposta pelo “Prólogo” e reafirma a manifestação do insólito verificado em todos os onze “casos”, os textos emoldurados.
As personagens que invadiram a sala do narrador-personagem-autor foram ali para lhe cobrarem explicações: “– Então, consta por aí que o amigo escritor agora deu-lhe para não contar mais histórias da gente. Não é por nada, mas isso caiu um bocado mal lá no Beco.” (CARVALHO, 1991, p. 84) E antes mesmo que este lhes pudesse responder, completaram:
– Pois, mas a verdade é que ainda há muito mais histórias para contar e vossemecê ficou a meio. Cá na minha opinião nem sequer contou as melhores. E até omitiu alguns pormenores interessantes, trocou alguns nomes, afeiçoou os acontecimentos lá muito à sua maneira. Ora isto não está certo, pois não? (CARVALHO, 1991, p. 84)
Tentando se explicar, o narrador-personagem-autor diz-lhes “que isto de literatura tinha as suas exigências, os seus condicionamentos” (CARVALHO, 1991, p. 84), “os seus pergaminhos, a sua dignidade: A-diginidade-do-discurso-literário” (CARVALHO, 2001, p. 85), e admite, assim, a consciência autoral de que a obra literária, veiculada enquanto discurso ou linguagem, se submete a “regras constitutivas (as do polissistema dos códigos e dos signos literários)” (REIS, 2001, p. 155), o que significa dizer que se submetem, inclusive, às categorias de gênero, mesmo que mesclando-as, amalgamando-as, reinventando-as.
A discussão entre o narrador-personagem-autor e as personagens habitantes do Beco, que lhe invadiram a sala para o questionar, mantém-se entre novos e diferentes “casos” sugeridos por estes, mas deixados de fora dos Casos do Beco das Sardinheiras, e reflexões de ordem crítica que aquele desenvolve sobre sua escrita:
já estou até meio repeso de ter escrito as histórias que escrevi. É que não é minha vocação, percebem? Eu cá gostava era de escrever assim coisas grandiosas como o Gilgamesh, a Odisséia, a Moby Dick e não os pequenos casos do Beco das Sardinheiras e da sua arraia-miúda, não desfazendo. (CARVALHO, 2001, p. 85)
A consciência autoral desse narrador-personagem-autor permite rebater as críticas que Mário de Carvalho expressou quanto sua filiação a qualquer dos gêneros já assentados e a aproximação de sua escrita à de outros autores da Contemporaneidade. O desejo de escrever algo maior, “como o Gilgamesh, a Odisséia, a Moby Dick e não os pequenos casos do Beco das Sardinheiras”, demonstra que o narrador-
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personagem-autor tem pleno conhecimento da filiação, ainda que relativa, de seus relatos com a tradição do Maravilhoso.
Gilgamesh é um cantar épico da literatura suméria, que narra as façanhas do rei e herói que empresta nome ao título da obra. Rebelando-se contra o desaparecimento e o esquecimento após a morte, o herói sai em busca de aventuras com Deuses e seres sobrenaturais, em uma “procura insólita, desesperada e falida, mas não inútil, pela sua transcendência, da imortalidade” (ELLIS). A Odisséia é uma das duas epopéias gregas escritas por Homero – a outra é a Ilíada – e narra as viagens e aventuras de Ulisses (Odisseu), nas quais interferem deuses ou semi-deuses do Olimpo, como Zeus, Posêidon, Hermes, Éolo e os ciclopes. O Maravilhoso clássico é o gênero das epopéias, retomado no Medievo pelas canções de gesta, exemplares da épica medieval, de que se pode, por exemplo, destacar a Canção de Roland. Nesta gesta, o herói empunha a maravilhosa espada Durindana e é capaz de, agonizando e só, diante de todo um exército inimigo, tocar o olifonte tão forte e alto, a ponto de o imperador Carlos Magno o ouvir a mais de trezentos quilômetros, do outro lado dos Pirineus.
Moby Dick, do escritor nova-iorquino Herman Melville, publicado em 1851, conta a história de Ismael, cujo nome introduz o leitor em um universo de referências religiosas espalhadas ao longo de toda a obra. Isamel se alista e vai para o mar no Pequod, navio comandado pelo capitão Ahab. Inicialmente, a narrativa está ancorada em referências próprias da realidade ôntica, uma vez que o personagem-narrador sai para caçar baleias, atividade comercial recompensadora durante o século XIX, apesar dos sacrifícios que exigia.
A manifestação do maravilhoso se dá a partir do momento em que Ahab perde uma perna, e o responsável por isso seria Moby Dick, uma baleia branca. Ahab decide jamais descansar enquanto não capturasse e matasse a tal baleia. Assim, a loucura toma a vida do comandante do Pequod, que lança em aventuras na caça à Moby Dick. Ismael é, assim, uma espécie de narrador homodiegético.
Aliás, foi exatamente em função das estratégias de construção narrativa com a ênfase nas aventuras maravilhosas, que Moby Dick adquiriu o status de obra-prima da literatura e um dos maiores clássicos da literatura infanto-juvenil de todos os tempos.
A arquitextualidade que se estabelece entre o “Epílogo”, na função de explicit e texto-moldura, com o “Prólogo”, na função de incipit e também de texto-moldura, não é uma inter-relação de conformidade, senão que de franca oposição semântico-funcional. Se este aponta para o universo de estratégias de construção narrativa consoantes com o projeto sistêmico do real-naturalismo; aquele recupera temáticas, estruturas e referências ao que se pode chamar de projeto sistêmico do insólito.
Enquanto macro-gênero, entendemos que o insólito é composto pelo Maravilhoso, Fantástico, Sobrenatural, Estranho, Realismo Maravilhoso, Absurdo e outros demais gêneros cujas narrativas se estruturam a partir da manifestação de eventos insólitos não-ocasionais, ou seja, que funcionam como seus móveis propulsores.
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Dialogar os textos-moldura entre si – “Prólogo” e “Epílogo”; incipit e explicit –, leva o leitor a se deparar com o universo do insólito ficcional, tanto numa relação de arquitextualidade, um texto literário em correlação com outro texto literário, quanto de paratextualidade, o gênero que um texto literário manifesta em correlação com o gênero que o outro texto literário manifesta.
Dialogar “Prólogo” – ou incipit – texto-moldura, com os onze “casos” relatados, textos-emoldurados, leva o leitor, igualmente, a se deparar com o universo do insólito ficcional, numa relação de arquitextualidade, já que o “Prólogo” convida o leitor a entrar no universo sistêmico do macro-gênero do real-naturalismo, mas os “casos” arrastam o leitor para o universo semântico-pragmático-funcional do gênero do insólito.
Dialogar o “Epílogo”; – ou explicit – texto-moldura, com os onze “casos” relatados, textos-emoldurados, leva o leitor, também e igualmente, a se deparar com o universo do insólito ficcional. Neste caso, não pela via da dissonância entre as estratégias de construção narrativa, como nas hipóteses anteriormente apresentadas, senão que pela sua reafirmação conclusiva. Como observa Carlos Reis, “se o incipit faculta a entrada num espaço textual, o explicit – que significa ‘acabou’ (...) – prepara e anuncia o momento oposto.” (REIS, 2001, p. 209).
O leitor, convidado a ver o Beco das Sardinheiras como outro beco qualquer (Cf. CARVALHO, 1991, p. 13), a gente que habita o Beco a demais (Cf. CARVALHO, 1991, p. 13), e “o que acontece no Beco não [diferindo] do que se passa noutro lado qualquer, desde Benfica a Ajuda” (CARVALHO, 1991, p. 16), acaba levado à leitura de “casos” cuja narração se nutre da manifestação de eventos insólitos não ocasionais, em diálogo com o Maravilhoso, o Fantástico, o Sobrenatural, o Estranho, o Realismo Maravilhoso, o Absurdo e, como vimos propondo, com o Insólito Banalizado, enfim, paradigmas do macro-gênero do insólito.
O início da leitura e a ambientação respondem às estratégias que reafirmam e garantem a verossimilhança narrativa interna. Uma vez dentro do universo ficcional proposto, no cenário do Beco, “a questão é estar-se atento, abrir-se bem os olhos...” (CARVALHO, 1991, p. 16) e experienciar com realismo e naturalidade os eventos insólitos que se sucedem no Beco. “No explicit assinala-se o final do texto e o local de encerramento da leitura” (REIS, 2001, p. 209), demonstrando que, no fim das contas, tudo, afinal, é possível, mesmo o que, a princípio, possa parecer menos provável, menos usual, menos esperado. O insólito se banaliza, tornando comum o incomum.
Referências:
CARVALHAL, Tânia Franco. “Franz Kafka e a literatura francesa”. In: ______;
DACANAL, José Hildebrando; SCHÜLER, Donaldo; STOCK, Rudolf M. A realidade em Kafka. Porto Alegre: Movimento, 1973. p. 13-41.
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CARVALHO, Mário de. “Alguma coisa me perturba” – entrevista. In: Ler nº 34. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p. 38-49.
______. Casos do Beco das Sardinheiras. 6 ed. Lisboa: Caminho, 1991.
______. “Do Deus memória e notícia”. In: Contos da sétima esfera. 2 ed. Lisboa: Caminho, 1990. p. 17-30.
DACANAL, José Hildebrando. “A realidade em Kafka”. In: CARVALHAL, Tânia Franco; DACANAL, José Hildebrando; SCHÜLER, Donaldo; STOCK, Rudolf M. A realidade em Kafka. Porto Alegre: Movimento, 1973. p. 43-68.
ELLIS, S. Caticha. “A épica de Gilgamesh”. In: http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=5&rv=Literatura. Acesso em 8 de outubro de 2007, às 12h.
GARCÍA, Flavio. O Realismo Maravilhoso na Ibéria Atlântica: a narrativa de Mário de Carvalho e Méndez Ferrín. Tese de Doutoramento. Rio de Janeiro: PUC, 1999.
REIS, Carlos. O conhecimento da literatura. Introdução aos estudos literários. 2 ed. Coimbra: Almeida, 2001.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero8/flavio.htm
Número 8 (2008) - ISSN 1981-870X