Resenha
ZIZEK, Slavoj e DALY, Glyn. Arriscar o impossível: conversas com Zizek. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins fontes, 2006. (Coleção Dialética). 211p. ISBN 8599102273
Nadiá Paulo Ferreira (UERJ)
Com certeza, é muito bem vindo o lançamento de mais um livro de Zizek, filósofo que nasceu na Eslovênia e faz questão de se apresentar como fiel seguidor de Jacques Lacan. Adotando a tendência editorial da entrevista, Glyn Daly, professor de política na Faculdade de Artes e Ciências Sociais do University College, em Northampton, além de ocupar o lugar de entrevistador, é autor da Introdução, onde apresenta um estudo sobre a obra de Zizek. Nele, Glyn destaca as duas grandes fontes de inspiração do que ele chama de paradigma zizekiano: o idealismo alemão (Kant, Schelling e Hegel) e a psicanálise (Freud e Lacan).
O conceito freudiano de pulsão de morte e a elaboração lacaniana sobre o real norteiam as reflexões desse livro, que têm como tema a pós-modernidade. Com a descoberta da pulsão de morte, deparamo-nos com o fato de que “não podemos passar diretamente da natureza para a cultura. Alguma coisa sai terrivelmente errada na natureza: ela produz uma monstruosidade antinatural, e eu afirmo que é para lidar com essa monstruosidade, para domesticá-la, que simbolizamos” (p. 83). Essa monstruosidade é uma das peculiaridades do Real. Independente das múltiplas faces do Real, a impossibilidade, o acontecimento e o trauma são as suas principais características. O impossível deve ser compreendido como sinônimo de “grande ausência” e de “um vazio básico”. Nesse sentido, o Real é sempre o que nos falta, o que nunca é encontrado. Justamente por isto, o Real como acontecimento é continuamente
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traumático: “(…) o problema do Real é que ele acontece, e esse é o trauma” (p.89). “Um trauma ou um ato é simplesmente o ponto em que o Real acontece, e isso é difícil de aceitar” (p. 89).
O Real — como impossível, como acontecimento e como trauma — se articula com a lógica do desejo e com os objetos da pulsão. O desejo “se estrutura em torno de um vazio primordial” (p. 85-86). O objeto empírico não é um substituto impossível da Coisa (das Ding). A cisão não se situa entre a realidade empírica e a Coisa impossível. A cisão está no próprio objeto empírico, que é, simultaneamente, ele mesmo e outra coisa: “A questão é que os objetos da pulsão são esses objetos privilegiados que, de algum modo, são um duplo deles mesmos. Lacan se refere a isso como la doublure [o avesso, a outra face]. Há uma espécie de distância segura, mas é uma distância segura dentro do próprio objeto: não é a distância entre o objeto e das Ding” (p.86).
A leitura lacaniana do conceito de pulsão não só admite configurações diferentes do Real, mas também possibilita múltiplas articulações borromeanas. Ou seja: “o verdadeiro nó lacaniano que une o Real, o Imaginário e o Simbólico é mais do que uma configuração tridimensional. Quer dizer, cada uma dessas categorias pode projetar-se em todas as outras” (p. 88).
Assim, em relação ao Real, temos três noções. O Real real “seria a Coisa horrenda: a cabeça da Medusa, o alienígena do filme, o abismo, o monstro” (p. 87). O Real simbólico é o que não se integra à significação. Zizek cita como exemplos as fórmulas científicas sem sentido, a física quântica, a fórmula da trimetilamina no sonho freudiano da injeção de Irmã. O Real imaginário é “esse traço elusivo, que é totalmente insubstancial, mas incomoda você. Esse é o ponto do Real no Outro” (p. 88).
No nível simbólico e imaginário, o trino se repete. Em relação ao Simbólico, temos: o Simbólico simbólico que é “a fala dotada de sentido” (p.88); o Simbólico real
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que é idêntico ao Real simbólico (as fórmulas sem sentido); e o Simbólico imaginário que “consiste apenas em arquétipos: símbolos junguianos e coisas similares” (p. 88). Em relação ao Imaginário, temos: o Imaginário imaginário que “seria a imagem como tal, a imagem sedutora” (p. 88); o Imaginário real que “seria a coisa pavorosa” (p. 88); e o Imaginário simbólico que “seriam os símbolos” (p. 88).
Sem recorrer às expressões de primeiro e segundo Lacan, Zizek não só afirma que o conceito de Real é construído paulatinamente, mas também que ele acaba se tornando a preocupação central de sua obra. Na medida em que Lacan avança na elaboração desse conceito, não se trata mais de re-simbolização do Real, mas de intervenção no Real: “A primeira coisa que eu frisaria é que, para Lacan, o Real não é aquilo que existe para sempre, absolutamente imutável etc. Ao contrário do que pensam algumas pessoas, a concepção lacaniana de que o Real é impossível não quer dizer, simplesmente, que não se possa fazer nada a respeito do Real. Aposta ou esperança fundamental da psicanálise é que, através do Simbólico, é possível intervir no Real. O que Lacan chama de sinhome (sua versão do sintoma) é Real, um Real simbólico, no sentido de estruturar o gozo. E a idéia é que, pela intervenção do Simbólico, essas estruturas podem ser transformadas. (…) Portanto, a aposta básica da psicanálise é que você pode fazer coisas com as palavras, coisas reais, que lhe permitem mudar os modos de gozo, e assim por diante” (p. 185-186).
Essa questão de intervenção no real remete para as reflexões de Lacan sobre o futuro da psicanálise, que se encontram em A terceira,texto apresentado na abertura do VII Congresso da Escola Freudiana de Paris, realizado em Roma, no ano de 1974. Esse texto é conhecido como Segundo discurso de Roma, porque vinte e um anos antes, Lacan apresentou, na mesma cidade, o texto Função e campo da fala e da linguagem (1953), que passou a ser chamado de Primeiro discurso de Roma. Esses textos ilustram
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bem o processo de elaboração do Real: no primeiro trata-se de re-simbolização e no segundo de intervenção.
No Segundo discurso de Roma, Lacan afirma que o sinthoma vem do real. Justamente por isto, o que se pede é que sejamos liberados do real, isto é, do sinthoma. O instigante é Lacan dizer que se esse pedido for atendido, o que aliás ele não acredita, acontecerá o retorno da verdadeira religião — a que santifica todas as esperanças — e a morte da psicanálise. Zizek, retomando Lacan, no que diz respeito à estreita relação entre o Real como acontecimento e o discurso da ciência, afirma que a sobrevivência da espécie humana está ameaçada na pós-modernidade. A clonagem, as novas formas de reprodução (mulheres inseminadas pela manipulação celular) e o desaparecimento das noções tradicionais de paternidade e de maternidade transformaram o Édipo em uma das formas da diferença sexual. Quais seriam então as outras formas da diferença sexual? Zizek responde: “Não devemos presumir nada, e seria inconseqüente ter uma postura otimista ou pessimista. Dada a radicalidade da diferença sexual — de que o próprio senso de humanidade se estrutura pela diferenciação sexual —, se essa estrutura não sobreviver, sinto-me quase tentado a dizer que surgirá uma nova espécie. Talvez já não seja uma espécie humana: tudo depende da nova forma que a impossibilidade do Real possa assumir” (p. 107).
As considerações em torno das dimensões do Real e dos encontros traumáticos com o Real, apresentadas aqui de forma sucinta, conduzem as reflexões de Zizek sobre a pós-modernidade. Em primeiro lugar, ele sustenta que os avanços da ciência (biogenética, clonagem, inteligência artificial) intervêm diretamente na subjetividade, provocando nela profundas transformações. Em segundo lugar, ele afirma que a pulsão de morte é justamente a parte da subjetividade, que escapa à intervenção genética, porque é uma disfunção. Eis como ele apresenta esse paradoxo: “(…) a biogenética traz
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uma ameaça, porque, como todos sabem, ela significa o fim da natureza. Em outras palavras, a própria natureza é vivida como algo que segue certos mecanismos passíveis de modificação. A natureza passa a ser um produto técnico, que perde seu caráter espontâneo” (p. 116). A pergunta que precisa realmente ser formula é esta: será que de fato somos simplesmente determinados pelos genes? Dito em termos ingênuos, é possível salvar a liberdade humana, diante da perspectiva da definição completa de nosso genoma, de nossa fórmula biogenética? (…) Creio que isso pode ser feito justamente por meio da psicanálise, e em especial da idéia de pulsão de morte. A pulsão de morte não é algo que esteja em nossos genes; não existe um gene da pulsão de morte. Na verdade, a pulsão de morte é uma disfunção genética” (p. 118).
Dentre as novas formas de subjetividade, identificadas por Zizek, destacaríamos: horror à proximidade, intolerância ou falsa tolerância, racismo no cotidiano auto-espancamento, retalhação, vitimização, etc. Todas essas formas se caracterizam por uma resistência ao Real como furo.
O próximo é o Real. O que está em jogo na existência do próximo é o Real como acontecimento. A finalidade da máxima cristã do amor ao próximo é evitar o encontro traumático com o próximo, na medida em que esse encontro aponta para a dimensão impossível do Real como furo. O fumante passivo é o próximo, e, como tal, encarna “a imagem do vizinho invasivo que goza demais” (p. 92). O assédio sexual “é outro nome do encontro com o próximo” (p. 92). Todas as lutas contra o fumo e o assédio são tentativas para manter certa distância com esse semelhante incômodo. O distanciamento do próximo é o que caracteriza o regime da tolerância. Assim, o pagamento para fazer sexo e a doação de dinheiro para causas humanitárias são as soluções encontradas não só para manter a distância do próximo, mas também para o fingimento da tolerância. Justamente por isto, o discurso atual sobre a tolerância prega a
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tolerância universal. Ou seja: “(…) mas, se você examinar mais de perto, verá que há um conjunto de condições ocultas, que revela que o indivíduo só é tolerado na medida em que se assemelhe a todos os outros — o discurso determina o que deve ser tolerado. Portanto, na realidade, a cultura atual da tolerância subsiste por meio de uma intolerância radical a qualquer Alteridade verdadeira, a qualquer ameaça real às convenções existentes” (p. 149).
A tolerância universal é o racismo camuflado pelo “discurso politicamente correto”. Nesse sentido, poderíamos dizer que já não existem racistas como antigamente: “Em geral, o racista de hoje já não diz que os árabes, os turcos ou os hindus são simplesmente burros ou repulsivos. Não; diz que eles são perfeitamente normais, que gosta deles, que eles são seus amigos e por aí vai, mas que há uma coisa neles que o incomoda, um detalhe: seu cheiro, sua culinária, sua música. Ou pode ser algo mais intelectual – a orientação lingüística, as atitudes culturais, a ética do trabalho. Trata-se de algum traço que é percebido como um excesso. E é por isso que acho muito difícil lutar contra o racismo no nível do cotidiano” (p.141). Zizek faz questão de assinalar que a dificuldade de combater o racismo no cotidiano se deve ao fato de que o que é percebido como pertubador no outro é justamente o que é apreendido, ao nível da fantasia, como o gozo excessivo do outro. Nesse sentido, a tolerância contemporânea se torna sinônimo da mais absoluta intolerância ao gozo do Outro. Assim sendo, como é possível amar o próximo? Zizek assevera que “para amar verdadeiramente o próximo, é preciso esquecer todas as suas qualidades, tudo que faz dele um ser humano específico, o que significa que se deve tratá-lo como se ele já estivesse morto” (p. 145). O Outro em sua alteridade reduzido ao Outro abstrato: eis a verdade do preceito cristão do amor: Outro como próximo está morto.
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A retalhação se refere ao grande número de mulheres norte-americanas, que se cortam com giletes. O auto-espancamento é ilustrado com o filme Clube da luta de David Fincher, que ele confessa ser um dos seus filmes favoritos: “O filme é a história de um homem totalmente alienado, insone, que está perdendo o contato com a realidade e tenta desesperadamente religar-se. Primeiro, com uma solidariedade do tipo “ama a teu próximo”, ele visita grupos de apoio para pessoas que sofrem de doenças graves (o que é, basicamente, uma experiência voyeurista). Por fim, envolve-se com um grupo de pessoas que se reúnem regularmente nos fins de semana e, pura e simplesmente, batem umas nas outras. (…) Poucos viram no filme algo que creio que deveríamos ter a coragem de aceitar, a saber, a dimensão emancipatória desse auto-espancamento e o fato de que, de certo modo, precisamos correr riscos por meio desse tipo de violência” (p. 147-148). Essas mutilações corporais (auto-espacamento e auto-retalhação) são formas diferentes de retorno do Real: “Quando vivemos num espaço virtual isolado, toda religação com o real é, obviamente, algo dilacerante, é violenta. É por isso que hoje em dia, a virtualização do ciberespaço é necessariamente complementada por formas diferente de “retorno do Real” — desde atividades politicamente retrógadas, comos os novos racismo, até mutilações do corpo e coisas similares; esses dois conjuntos de fenômenos são estritamente correlatos” (p. 148).
A vitimização caracteriza-se por colocar a responsabilidade em agentes externos: — “Eu não tenho nada com isso. Eu sou uma vítima das circunstâncias. A responsabilidade não é minha. Se eu não tenho nada haver com isso, logo tem que existir alguém que seja responsável pela minha desgraça.” E, acrescenta Zizek, no mundo de hoje, reino da ética ulilitarista, “tudo tem um preço”. Logo é preciso pedir ressarcimento pelos males causados. Então, as “vítimas” abrem processos contra as companhias de cigarro e as indústrias de fast food, pedindo indenizações financeiras
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altíssimas, porque adquiriram câncer, problemas circulatórios, infartos, colesterol altíssimo, etc.
Na pós-modernidade, vamos encontrar dois modos de vitimização: a da alta classe média e a dos excluídos. O que está em jogo no processo de vitimazação da alta classe média é uma lógica narcísica: o Outro é sempre uma ameaça em potencial. Os assédios verbal, sexual, da violência, do fumo e da obesidade, os direitos dos gays, a homofobia, etc pertencem a essa lógica narcísica. Os habitantes e as catástrofes do Terceiro Mundo, os sem-tetos, os desempregados, etc. também são vítimas. E, justamente por isto, eles precisam de ajuda humanitária. Mas, sublinha Zizek, é preciso manter certa distância, porque “essas coisas não acontecem ‘aqui’ ou ‘conosco’” (p.172). Logo, conclui o autor, a verdade da vitimologia é a cisão.
Outra marca da pós-modernidade é o multiculturalismo. Para Zizek, o multiculturalismo caracteriza-se pela não aceitação da alteridade do Outro: “Filtramos o Outro, e o que passa pelo filtro é aceito. Mas o que se aceita é esse aspecto superficial, relativamente insignificante, que não incomoda ninguém. No fim, o que temos é um Outro censurado. O Outro é aceito, mas somente na medida em que for aprovado por nossos padrões. Mais uma vez, portanto, essa lógica do respeito ao Outro não pode ser o horizonte supremo de nosso compromisso ético” (p.152).
Dentre os vários aspectos do multiculturalismo contemporâneo, apontados por Zizek, resssaltamos: a permissividade, a nova lógica do capitalismo, o fundo complementar obsceno da lei, etc.
Em relação à permissividade, o que é colocado em cena é o gozo: “(…) temos permissão de gozar, (…) temos permissão de organizar nossa vida em torno da maneira de obter a máxima satisfação possível, de realizar nosso eu, e assim por diante. Mas qual é o resultado fundamental? O resultado necessário e intrínseco é que, para
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realmente gozarmos a vida, temos de seguir um sem-número de normas e proibições: nada de assédio sexual, fumo, alimentos gordurosos, álcool, ovos, nada de situações estressantes etc. O paradoxo é que, se você postula o prazer diretamente como uma meta, é obrigado/a a se submeter a diversas condições — por exemplo, preparação física para se manter sexualmente atraente —, de modo que seu prazer imediato torna a se estragar” (p.143). Mas “o gozo que se estraga” se transforma em gozo. Eis os princípios que regem o gozo: “O problema do gozo é que ele nunca funciona diretamente; é sempre perturbado” (p. 142); “O paradoxo central do gozo é que não se pode tê-lo diretamente como objetivo; ele é sempre um subproduto” (p.143).
O que Zizek nomeia da nova lógica do capitalismo contemporâneo é a tendência para eliminar o emprego fixo. Recomenda-se a mudança de emprego a cada três anos. O fato do indivíduo nunca saber se terá ou não um emprego é interpretado pelos apologistas da pós-modernidade como a nova liberdade: a pessoa não se fixaria em uma identidade, ela teria que se reinventar a cada dois ou três anos.
O fundo complementar obsceno da lei se refere às regras não escritas, aos preceitos que devem ser silenciados. Essa dimensão obscena da lei, inscrita na lógica do gozo suplementar, sustenta o conjunto de regras explícitas (hierarquias, formas de funcionamento e procedimento, etc) que rege qualquer estrutura normativa (comunidades, instituições, etc). Zizek se refere à comunidade militar para exemplificar esse complemento obsceno: “as piadas sexistas sujas, os rituais sádicos, os ritos de passagem e assim por diante” (p. 159).
Não é por acaso que Zizek chega ao fim do seu livro, referindo-se à ética da psicanálise: “É preciso arriscar e decidir. É essa a lição de Lacan. Não ceda em seu desejo. Não busque apoio em nenhuma forma de Outro maiúsculo — mesmo que esse Outro maiúsculo seja totalmente vazio, ou seja uma injunção incondicional levinasiana.
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É preciso arriscar o ato sem garantias. Nesse sentido, o fundamento supremo da ética é político. E, para Lacan, a ética despolitizada é uma traição ética, porque se põe a culpa no Outro. A ética despolitizada significa que você confia em alguma imagem do grande Outro. Mas o ato lacaniano é, precisamente, o ato em que você presume que não existe grande Outro” (p.201). (…) Ou seja, em certo momento, é preciso assumir a responsabilidade pelo ato” (p. 203).
Escrever, interpretar, publicar e provocar controvérsias são os atos através do quais Zizek realiza sua intervenção no Real. Este é o seu risco. Cabe ao leitor, tocado pela ética do desejo, descobrir o seu jeito de arriscar o impossível.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero8/resenha.htm
Número 8 (2008) - ISSN 1981-870X