ALFARRÁBIOS
Pero de Magalhães Gândavo, História da Província Santa Cruz
Os poemas de Luís de Camões aqui reproduzidos foram publicados pela primeira vez em 1576, na História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamam Brasil, de Pêro Magalhães de Gândavo. A elegia em tercetos, “Depois que Magalhães teve tecida”, traz a seguinte epígrafe: “Ao muito ilustre Senhor Dom Leonis Pereira, sobre o livro que oferece Pero de Magalhães. Tercetos de Luís de Camões”; já o soneto, “Vós Ninfas da gangética espessura”, também dedicado ao “governador de Malaca e das mais partes do sul da Índia”, se fez por ocasião da vitória “que ouve contra El-Rey do Achem em Malaca”. Ambos vêm com autoria expressa a Luís de Camões e não sofreram qualquer contestação, quer da tradição manuscrita, quer da impressa.
A importância dos textos explica-se pelo fato de que, excetuando-se a épica, foram, com a ode “Aquele único exemplo” - dada à estampa nos Colóquios dos simples e drogas e cousas medicinais da
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Índia, de Garcia D’Orta, em 1563 - os únicos publicados em vida do Poeta. Todo o restante da produção lírica camoniana ficou dispersa nos Cancioneiros de mão, sendo recolhida postumamente.
Na elegia, avulta o tema “as armas e as letras”, caro aos humanistas italianos desde o século XV, mas surgido em Portugal no séc. XVI, evidenciado na disputa entre Marte e Apolo.
Em dúvida sobre a quem dedicar “sua breve história sobre a Terra Santa Cruz pouco sabida”, Magalhães adormece e sonha com os deuses que disputam a primazia de indicar o homenageado. Habituado a arbitrar “porfias duvidosas”, Mercúrio intervém e argumenta que desde a Antiguidade heróis acostumados ao trato da dura guerra uniram “às armas eloqüência”, e que “nem armas das ciências são escusas”, mas conclui sobre a superioridade das letras sobre as armas porque “Mais co saber se vence que co braço”. Propondo o nome de D. Leonis Pereira, o deus mensageiro resolve a rivalidade, justificando que se “barão grande se requere” as qualidades do homenageado honram os dois contendores: “Que com teus dões Apolo ilustre seja,/ E de ti Marte palma e glória espere./ Este vos darei eu em que se veja,/ Saber e esforço no sereno peito, / Que é Dom Lionis que faz ao mundo enveja.” Também em Os Lusíadas, em vários momentos, o poeta/soldado mostrou ser compatível o manejo das armas com o da palavra, como nos versos: “Pera servir-vos, braço às armas feito/ Pera cantar-vos, mente às Musas dada (X, 155), em que oferece seus préstimos ao Rei D. Sebastião.
O poema termina com o elogio a Magalhães e o apelo do Poeta ao homenageado para que não falte àquele favor e proteção.
Na tradição manuscrita, o texto figura no ms. da Biblioteca de San Lorenzo del Escorial (f.3v) - que, segundo acredita Emmanuel Pereira Filho, trata-se de apógrafo mais antigo do que o que serviu de base ao impresso - e no Manuscrito Apenso, f.24. Leodegário A. de Azevedo Filho¹ (1998, p. 213) admite que “o texto de MA é uma cópia de outra cópia, hoje desconhecida, do texto da História da Província Santa Cruz...”, dados os arranjos textuais lá encontrados.
De MA, o texto passou a RI (Rimas de Camões, 2ª edição, de 1598) - o primeiro ramo da tradição impressa - e foi reproduzido pelas muitas edições posteriores; ou foi reproduzido segundo o modelo da segunda tradição impressa, que tem início com a edição de Faria e Sousa, em 1685, com inúmeras deturpações.
O soneto, que faz o elogio ao nobre guerreiro, herói da batalha contra o rei do Achém, em Malaca, repercute o ideal heroicizante, em clima mental consoante com a ótica renascentista, em que os portugueses se mostram superiores a ícones da Antiguidade. No caso, os feitos de D. Leonis, de acordo com a visão camoniana, excedem os de Leônidas (general espartano que venceu o persa Xerxes no desfiladeiro das Termópilas), sendo dignos do canto das ninfas do rio Ganges. Observe-se a etimologia dos nomes próprios, ambos com o mesmo traço semântico de leão, ao qual se associam os sentidos de força e feridade.
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A transmissão textual é a mesma da elegia: figura nos mss. do Escorial e no Manuscrito Apenso, daí passando à segunda edição (RI) e à Faria e Sousa. O soneto também foi copiado pelas edições posteriores segundo uma das duas fontes da tradição impressa.
AO MUITO ILUSTRE SENHOR DOM LIONIS PEREIRA
SOBRE O LIVRO QUE LHE OFERECE PERO DE MAGALHÃES
TERCETOS DE LUÍS DE CAMÕES
Depois que Magalhães teve tecida
A breve história sua que ilustrasse,
A terra Sancta Cruz pouco sabida.
Imaginando a quem a dedicasse,
Ou com cujo favor defenderia
Seu livro, de algum Zoilo que ladrasse.
Tendo nisto ocupada a fantasia,
Lhe sobreveo um sono repousado.
Antes que o Sol abrisse o claro dia,
Em sonhos lhe aparece todo armado
Marte, brandindo a lança furiosa,
Com que fez quem o vio todo enfiado,
Dizendo em voz pesada e temerosa,
Não é justo que a outrem, se ofereça
Nenhũa obra que possa ser famosa,
Se nam a quem por armas resplandeça,
No mundo todo, com tal nome e fama,
Que louvor imortal sempre mereça.
Isto assi dito, Apolo que da flama
Celeste guia os carros, da outra parte
Se lhe apresenta, e por seu nome o chama
Dizendo, Magalhães, posto que Marte
Com seu terror te espante, todavia
Comigo deves só de aconselhar-te.
Um barão sapiente, em quem Talia
Pôs seus tesouros, e eu minha ciência,
Defender tuas obras poderia.
É justo que a escritura na prudência
Ache sua defensam, porque a dureza
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Das armas, é contrária da eloqüência:
Assi disse, e tocando com destreza
A cítera dourada, começou
De mitigar de Marte a fortaleza:
Mas Mercúrio, que sempre costumou
A despartir porfias duvidosas,
Co caduceo na mão que sempre usou,
Determina compor as perigosas
Opiniões dos Deoses inimigos,
Com razões boas, justas e amorosas,
E disse, bem sabemos dos antigos
Heróis, e dos modernos que provaram
De Belona os gravíssimos perigos,
Que também muitas vezes ajuntaram
As armas eloqüência; porque as Musas
Mil capitães na guerra acompanharam:
Nunca Alexandro, ou César, nas confusas
Guerras deixaram o estudo um breve espaço,
Nem armas das ciências sam escusas.
Nũa mão livros, noutra ferro e aço
A ũa rege e ensina, e outra fere
Mais co saber se vence que co braço.
Pois, logo barão grande se requere,
Que com teus dões Apolo ilustre seja,
E de ti Marte palma e glória espere.
Este vos darei, eu em que se veja,
Saber e esforço no sereno peito,
Que é Dom Lionis que faz ao mundo enveja.
Deste as Irmaãs em vendo o bom sogeito,
Todas nove nos braços o tomaram,
Criando-o com seu leite no seu leito.
As artes e ciência lhe ensinaram,
Inclinação divina lhe influíram,
As virtudes morais que o logo ornaram.
Daqui os exercícios o seguiram,
Das armas no Oriente, onde primeiro,
Um soldado gentil instituíram.
Ali tais provas fez de cavaleiro,
Que de Cristão magnânimo e seguro,
A si mesmo venceo por derradeiro.
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Despois já capitam forte e maduro
Governando toda Áurea Quersoneso,
Lhe defendeo co braço o débil muro.
Porque vindo a cerca-la todo o peso
Do poder dos Achéns, que se sustenta
Do sangue alheo, em fúria todo aceso.
Este só que a ti Marte representa
O castigou de sorte, que o vencido
De ter quem fique vivo se contenta.
Pois tanto que o gram Reino defendido
Deixou: segunda vez com maior glória
Pera o vir governar foi elegido.
E nam perdendo ainda da memória
Os amigos o seu governo brando
Os imigos o dano da vitória.
Uns com amor intrínseco esperando
Estam por ele, e os outros congelados
O vão com temor frio receando.
Pois vede se seram desbaratados
De todo, por seu braço se tornasse,
E dos mares da Índia degradados.
Porque é justo que nunca lhe negasse
O conselho do Olimpo alto e sobido
Favor e ajuda com que pelejasse.
Pois aqui certo está bem dirigido,
De Magalhães o livro, este só deve
De ser de vós ó Deoses escolhido.
Isto Mercúrio disse: e logo em breve
Se conformaram nisto, Apolo e Marte,
E voou juntamente o sono leve.
Acorda Magalhães, e já se parte
A vos oferecer Senhor famoso
Tudo o que nele pôs, ciência e arte.
Tem claro estilo, ingenho curioso
Pera poder de vós ser recebido,
Com mão benigna de ânimo amoroso.
Porque só de nam ser favorecido
Um claro espírito, fica baixo e escuro
E seja ele com vosco defendido,
Como o foi de Malaca o fraco muro.
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SONETO DO MESMO AUTOR AO SENHOR DOM LIONIS, ACERCA DA
VITORIA QUE HOUVE CONTRA EL-REI DO ACHÉM EM MALACA
Vós Ninfas da Gangética espessura,
Cantai suavemente em voz sonora
Um grande capitão, que a roxa Aurora
Dos filhos defendeo da noite escura.
Ajuntou-se a caterva negra e dura,
Que na Aurea Chersoneso afouta mora,
Pera lançar do caro ninho fora
Aqueles que mais podem que a Ventura;
Mas um forte Lião com pouca gente,
A multidão tão fera como nécia,
Distruindo castiga: e torna fraca.
Poisô Ninfas cantai, que claramente
Mais do que fez Leonidas em Grécia
O nobre Lionis fez em Malaca.
¹ Lírica de Camões. Elegias em tercetos. Vol.4,Tomo 1. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1998.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero8/apresentacao_alfarrabios.htm
Número 8 (2008) - ISSN 1981-870X