Artigos
A CRÍTICA LITERÁRIA AFRICANA E A TEORIA PÓS-COLONIAL: UM MODISMO OU UMA EXIGÊNCIA?
Inocência Mata
(Universidade de Lisboa)
imata@fl.ul.pt
Resumo:
Este artigo discute algumas questões acerca da literatura pós-colonial, relacionando-as à literatura produzida atualmente pelos países africanos independentes.
Palavras-chave: Crítica, literatura pós-colonial, colonialismo
Abstract:
This articles discusses some questions on postcolonial literature and its relations with the one that has been produced on African independent countries.
Key words: Criticism, postcolonial literature, postcolonialism.Porventura mais frequentemente do que acontece no eixo euro-americano, um leitor regular da literatura africana (e aqui o singular é, tão somente, generalizante, e não pretende homogeneizar esses sistemas literários) concluirá rapidamente que, talvez devido à natureza recente e por vezes ambígua das instituições do saber nas sociedades africanas, a literatura acaba por ser subsidiária de saberes que as Ciências Sociais e Humanas proporcionam. Esse “funcionamento” extraliterário é potenciado pelo facto de que, sendo
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estas sociedades eminentemente ágrafas e emergentes da situação colonial, e padecendo de um constrangimento que diz respeito ao facto de o homem africano continuar a ser objecto e raramente sujeito do conhecimento científico, este vai constituir-se também por via da observação do vivenciado e do experienciado, que é filtrado pelo sujeito interpretante. Neste contexto, acabam os referenciais literários, em princípio apenas ficcionais, por enunciar problemáticas (políticas, ético-morais, socioculturais, ideológicas e económicas) que seriam mais adequadas ao discurso científico strictu senso. Assim, a literatura, baralhando os “canónicos” eixos da dimensão prazerosa e gnoseológica, do prazer estético e da função sociocultural e histórica, vai além da sua “natureza” primária, a ficcionalidade: Mayombe (1980) de Pepetela, Neighbours (1995), de Lília Momplé, O dia das calças roladas (1999) de Germano de Almeida, ou Niketche – uma história de poligamia (2002) de Paulina Chiziane são apenas três exemplos de como conhecimentos (histórico e antropológico-sociológico) se interseccionam com o prazer na significação destas obras.
É por isso que não espanta que o crítico literário se deixe seduzir por esse entrelaçamento de sistemas de valores, de sabores e de saberes, muitas vezes exponenciado pela comunidade receptora, que é condicionada por, e reivindica, uma identificação com o universo ficcionado. É que não raro é apenas por via da literatura que as linhas do pensamento intelectual nacional se revelam, e se vêm revelando, em termos de várias visões sobre o país e identidades sociais, colectivas e segmentais, conformadas nas diversas perspectivas e propostas textuais. Pensemos, por exemplo, nos “nossos” cinco países, durante o regime monopartidário, em que a liberdade de expressão estava cerceada em nome de desígnios ditados pela consolidação pátria: foi a literatura que “nos” informou sobre as sensibilidades discordantes, os eventos omitidos do discurso oficial (como os dos romances O dia das calças roladas e Maio, mês de Maria), as vozes em dissenso, as visões menos monocolores, menos apologéticas e menos subservientes ao Poder político. O ponto de partida desse protocolo de transmissão de “conteúdos históricos” é a ideia de que o autor – em pleno domínio e responsabilidade sobre o que diz, ou faz as suas personagens dizerem – psicografa os anseios e demónios de sua época, dando voz àqueles que se colocam, ou são colocados, à margem da “voz oficial”: daí poder pensar-se que o indizível de uma época só encontra lugar na literatura.
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Não admira também que vários escritores assinalem, em entrevistas e depoimentos, a necessidade que sentem em desenvolver termos para referir a transferência de objectos e materiais culturais de uma esfera discursiva (social, histórica, política) para a outra, estética, mobilizando estratégias que permitem a passagem do estético a posições éticas e ao conhecimento histórico-cultural. E porque “a história das mentalidades se alimenta naturalmente dos documentos do imaginário”, como nos ensinam historiadores como Jacques Le Goff e Pierre Nora (1985, p. 76), o texto literário, como representação artística do imaginário cultural, é um desses documentos e, como tal, um objecto simbólico muito importante na construção da imagem da sociedade, sobretudo em espaços políticos emergentes, que vivem de forma por vezes ambígua e tensa a sua pós-colonialidade. O estudo desse objecto simbólico é também um dos veículos para que se chegue à História – como o são outras fontes menos convencionais do discurso da ciência histórica –, pois é grande a probabilidade de ele se construir pela incorporação das contingências da história e das informações do contexto espácio-temporal, que a análise textual não deverá ignorar.
No entanto, é no equilíbrio entre um modelo epistemológico (“comandado” pelas propostas teoréticas de origem euro-americana) e uma perspectiva mais consentânea com a “tradição” crítica do “mundo periférico” – ou, como equacionou o peruano Cornejo Polar, “entre a obediência e a rebelião” – que tem de trabalhar o crítico das literaturas africanas, quando estuda os meandros da condição pós-colonial dessas literaturas.
A afirmação de ambiguidade da pós-colonialidade de alguns desses países é temerária. Trata-se de uma ambiguidade espácio-temporal: continua por se precisar tanto a geografia dessa condição pós-colonial, como a sua temporalidade: será a escrita de António Lobo Antunes tão pós-colonial como a de Pepetela? E por que não será Jangada de pedra um romance pós-colonial? Não partilharia já em 1971 uma dimensão pós-colonial o romance A nau de Quixibá de Alexandre Pinheiro Torres? Os meandros da pós-colonialidade de O canto da Sangardata de Ascêncio de Freitas é a que se pode convocar para ler Partes de África de Helder Macedo e Cores e sombras de S. Tomé e Príncipe de Otilina Silva? Onde, “espácio-temporalmente” falando, incluir Ilha do meio do mundo, de Fernando Reis, romance publicado apenas em 1983 e que resgata das sombras arqueológicas da História o discurso mais apologético do colonialismo? E que relação a teoria pós-colonial descobriria entre Aíto Bonfim (Aspiração, 2002) cujo discurso poético
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de veemência anticolonial caberia naquilo que a iraquiana Ella Shohat designa como “pós-(anti)neocolonial”, e Mia Couto, seu congeracional, cujo discurso poético (Raiz de orvalho e Outros poemas, 1983/2001) é de reconhecimento do “eu” e do mundo à volta, de busca interior e exterior, de moçambicanização da condição humana?
Estamos perante uma multiplicidade de acepções sobre o pós-colonial, pelo que talvez fosse bom começar, também aqui, por distinguir simultaneidade temporal e contemporaneidade, diferença que pode ser especiosa, é verdade, mas que porventura ajudará a iluminar o debate. É que se o pós aponta para a ulterioridade temporal, o pós-colonial não se articula com o anticolonial nem com o neocolonial, de que fala, aliás, Cornejo Polar, para se referir à condição periférica do mundo latino-americano – e é preciso lembrar que o intelectual peruano só morre em 1997, no auge dos estudos pós-coloniais no mundo anglo-saxónico. É este também o pensamento de Ella Shohat, que refere a “cândida” generalização da expressão quando aplicada a situações de conflitos estruturalmente coloniais – ou neocoloniais –, de relações de poder de perfeita dominação externa, de regeneração do colonialismo, ainda que com o beneplácito e a cumplicidade das elites nacionais, movidas por interesses económicos, sociais ou até étnicos. Diz Ella Shohat:
The term ‘post-colonial’ carries with it the implication that colonialism is now a matter of the past, undermining colonialism’s economic, political, and cultural deformative-traces in the present (…) As a signifier of a new historical epoch, the term ‘post-colonial’, when compared with neo-colonialism, comes equipped with little evocation of contemporary power relations (…).
What, then, is the meaning of post-coloniality when certain structural conflicts persist? (…) How then does one negotiate sameness and difference within the framework of a ‘post-colonial’ whose ‘post’ emphasizes rupture and deemphasizes sameness? (SHOHAT, 1996, p. 326-327).
Porém, se, por outro lado, este prefixo é, como equaciona Brian McHalle, “elemento de sequência lógica e histórica” (1987, p. 5), então a pós-colonialidade africana contém muito de neocolonial, e do seu contrário, anti-neocolonial, e isso tem de ser considerado nos estudos pós-coloniais. É também Ella Shohat, não obstante as suas reservas quanto à “vertiginosa multiplicidade de posições” dentro da teoria pós-colonial, que considera que
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The globalizing gesture of the ‘post-colonial condition’, or ‘post-coloniality’, downplays multiplicities of location and temporality, as well as the possible discursive and political linkages between ‘post-colonial’ theories and contemporary anti-colonial, or anti-neo-colonial struggles and discourses. (SHOHAT, 1996, p. 325)
Tem de lembrar, por outro lado, a teoria pós-colonial que nem os países africanos são todos igualmente pós-coloniais – por exemplo das culturas pré-existentes ao colonialismo e quase desaparecimento das línguas e culturas autóctones, suplantadas pelas do colonizador, que repovoou os espaços conquistados; nem serão igualmente pós-coloniais países como Angola e a Nigéria, em relação aos da América Latina, nalgum dos quais houve a substituição quase total de sociedades de diferentes formações socioculturais e diversos e complexos agenciamentos étnicos e políticos; tampouco partilham da mesma pós-colonialidade países como Moçambique e São Tomé e Príncipe mesmo com o mesmo colonizador... E por causa dessas diferenças, é preciso que na sua avaliação o crítico se proponha negociar, teoricamente, as relações de semelhança e diferença, de rupturas e continuidades operadas no período pós-independência, a fim de não operar, acriticamente, a transferência de teorias explicativas de uma situação histórica para espaços outros apenas pela sua “proximidade afectiva” ou “conveniência ideológica”1. Aliás, um dos corolários do conceito de différance é a possibilidade, quase exponencial, de se pensar a identidade nacional, social e cultural, como processo em constante reconfiguração. Por isso, independentemente da discussão à volta da relação do pós-colonialismo com a literatura, o crítico não pode ignorar as especificidades do processo colonizatório desses países e a consequente diferença no processo de emancipação política e posteriores momentos marcados pela diversidade nos cinco países.
No entanto, tal apetência para a fragmentação diferencial pode levar a que se perca o sentido do conjunto, de modo a expor, numa abordagem conjunta, os problemas e projectos comuns. Como bem lembra Appiah, esses são muito mais importantes do que diferenças de “base espúria” (1997, p. 50) – o ganense falava de solidariedade, e eu parafraseio-o para falar de origens. Neste contexto vale a pena lembrar a reflexão de Lourenço do Rosário, intitulada “Lusofonia: cultura ou ideologia?” (1992) – uma das primeiras reflexões sobre esta questão – em que o estudioso moçambicano escalpeliza as motivações ideológicas subjacentes ao tão celebrado quanto recusado termo, embora
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condescenda que, quer ideológica quer culturalmente, o termo, de certo ponto de vista, seria legítimo enquanto referisse uma visão que permitisse determinar o conjunto que ao longo da História teve Portugal, língua e cultura, como elementos aglutinadores2.
Por isso pode dizer-se que, na análise do procedimento pós-colonial literário africano é possível uma abordagem conjunta e generalizante, não homogeneizante, que não se reduza à convocação indistinta da “maleabilidade” de Próspero e de Caliban em terras deste. Ou às contradições e incongruências na relação (ex-)colonizador e (ex-)colonizados nas suas percepções de centro e periferia e de dominador e dominados – mesmo que se pense, como eu penso, que estas identidades nacionais, e pátrias (africanas e portuguesa), se constroem de imagens ambíguas em termos de passado, num jogo de equívocos feito de exclusão/inclusão de formas imaginadas e imaginárias resultantes de uma “história comum”. Não admira que no caso dos sistemas literários dos países africanos de língua portuguesa haja lugares persistentes que percorrem as literaturas, como é o caso da utopia libertária (do colonial-fascismo). Neste contexto, há implicações destes lugares num dispositivo textual em que se torna recorrente o jogo entre construção identitária nacional e seu questionamento quanto ao conteúdo e formas incluídas, por via da pulverização do modelo de africanidade que a literatura anticolonial propôs, e o jogo entre presentificação e ocultação do colonial, para que este, o colonial, não resulte relativizado pela retórica da idealização pós-colonial nem olhado de forma monolítica.
Numa altura em que o “pós-nacionalismo” revelou as fracturas da homogeneidade sócio-histórica e cultural decorrente de uma ideologia que convinha a um poder totalizante, como o que saiu das independências, é bom que se releia o nacionalismo. É que se o nacionalismo pode definir-se como “força com habilidade em criar um senso de identidade” (GUIBERNAU, 1997, p. 154), então não é difícil verificar que sob esta ampla categoria vários facciosismos – Ahmad fala de fascismo racial, eu parafraseio-o para falar de fascismos raciais e etnoculturais –, a nação é passível de ser reinventada como “património herdado do passado” por agentes sociais que se vão apoderando dela, privatizando os signos que conferem existência às entidades fundacionais – a tradição, o passado, a memória, a língua – e mobilizando, ainda nas palavras de Ahmad, “seus poderes interpelativos no processo de luta por hegemonia nos campos político e cultural” (2002, p. 12). Um desses poderes é o da interpretação do papel dos sujeitos nos meandros da história
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do colonial, pelo viés de uma subtil estratégia: a de que o colonialismo foi um sistema em que o campo de beligerância entre o étnico e o racial era social e não ideológico, e vagamente etnocultural e racial – embora saibamos que “a existência do racismo não requer a existência de raças” (APPIAH, 1997, p. 243). Alfredo Margarido sintetiza esta tendência num discurso cruamente crítico: “o discurso lusófilo actual limita-se a procurar dissimular, mas não a eliminar, os traços brutais do passado” (2000, p. 76). Outrossim, pode ver-se, por exemplo, essa intenção relativista na argumentária que suporta a teoria do “neo-luso-tropicalismo”, agora denominada crioulidade, formulação que se quer explicativa da “presença portuguesa”, considerada substrato da angolanidade, equiparada a “identidade nacional” VENÂNCIO, 1987, p. 16).
Na euforia celebrativa de categorias pós-coloniais susceptíveis, grosso modo, de neutralizar a ênfase essencialista das abordagens sobre identidades, é preciso não esquecer que “uma celebração de sincretismo e hibridez de per si, se não articulada em conjunção com questões de hegemonia e relações de poder neocoloniais, corre o risco de parecer santificar o fait accompli da violência colonial” (SHOHAT, 1996, p. 320). Na verdade, a exclusiva generalização de que da dominação colonial nasceu uma cultura híbrida – ou mestiça euro-africana, como se queira! – pode levar à desconsideração de estratégias outras de sobrevivência cultural empreendidas pelos colonizados, como seja a reciclagem de linguagens culturais dentro da tradição – mesmo que a tradição reenvie, segundo Mohamadou Kane, “para a ideia de valores, de património cultural, de transmissão e de continuidade” (1982, p. 25). Por outro lado, é também Kane que considera enfatiza a dimensão dinâmica da tradição, recorrendo à definição de tradição na Encyclopœdia Universalis:
La tradition ne se borne pas, en effet, à la conservation ni à la transmission des acquis antérieurs : elle intègre, au cours de l’histoire, des existants nouveaux en les adaptant à des existants anciens. Sa nature n’est pas seulement pédagogique ni purement idéologique : elle apparaît aussi dialectique et ontologique.
La tradition fait être de nouveau ce qui a été ; elle n’est pas limitée au faire savoir d’une culture, car elle s’identifie à la vie même d’une communauté. (KANE, 1982, p. 24)
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Pretendo com este excurso fundamentar a recusa de exclusividade de determinadas categorias que remetam para maleabilidade identitária à teoria pós-colonial: este parece-me ser um dos seus entendimentos equivocados, mesmo em civilizações em que a tradição se constitui como uma ideologia que determina a especificidade do grupo, como são aquelas que conformam o mundo negro-africano. Não são, pois, apenas nas sociedades marcadas pelo colonial que o agenciamento miscigenante é uma realidade: não será a cultura tchokué um caso de hibridez cultural, mesmo antes da presença europeia? Não é o suaíli uma língua de formação mestiça? Não é o lingala, língua resultante de uma “mistura” de línguas bantu faladas na região do rio Congo, um caso de crioulidade (inter)africana? E nem é preciso remontar a Kano, a Tumbuctu ou a Zaria para saber que cidades africanas pré-coloniais eram já complexas comunidades diasporizadas, sendo, portanto, já multiculturais... Além disso, como consequência desse pensamento exclusivista, persiste essa ideia de que a pós-modernidade pós-colonial tem nas cidades ocidentais seus lugares paradigmáticos. Porém, como lembra Stuart Hall,
A noção de que somente as cidades multiculturais do Primeiro Mundo são diasporizadas é uma fantasia que só pode ser sustentada por aqueles que nunca viveram nos espaços hibridizados de uma cidade colonial do Terceiro Mundo. (HALL, 2003, p. 114)
Por isso, considerar a hibridez e o sincretismo como particularidades da intersecção cultural dos sujeitos do processo de colonização e, portanto, lugares quase cativos da condição pós-colonial e até dos “pós-coloniais”3, é desconsiderar a dinâmica interna das sociedades africanas, acabando por ser, tal postura, uma espécie de ideologia pré-determinada para proclamar a abertura cultural como algo que só pertence a espaços do centro. Não deixa, pois, de ter razão Ella Shohat quando considera tais categorias – hibridez, sincretismo, a que eu acrescento outras: mestiçagem, entrelugar, multiculturalidade – como tropos biológica e religiosamente racistas (1996, p. 331): não de per si, obviamente; mas na sua exclusividade, elas podem resultar na idealização do passado, na desconsideração de formas de resistência e de violência que caracterizam esse passado. O que não quer dizer que não se reconheça que foi a teoria pós-colonial, por via dos “estudos culturais”, a considerar tais categorias como matéria conceptual.
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Em todo o caso, o desvelamento da diferença e da heterogeneidade, do plural e do diverso terá de pressupor a contextualização histórica de identidades, a sua historicização, para que esse movimento, simultaneamente particularizante e descentralizante – numa época, da globalização, em que nunca como agora o mundo foi tão fragmentário em termos identitários! – não resulte em encravamentos socioculturais e legitimação de hegemonias. Se tais operações podem ser vistas como corolários desta era da globalização, vale a pena lembrar, por outro lado, Alfredo Margarido para quem a globalização – ou a mundialização, como prefere o sociólogo português, na esteira da tradição terminológica francesa –, deveria ser a invenção da cidade, portanto numa dinâmica de superação das aldeias e não a soma delas (MARGARIDO, 2000, p. 81), com a consequente sedimentação lenta mas constante do conhecimento – sedimentação que partindo do “enraizamento”, contribua para a rarefacção da raiz, para a potenciação do rizoma e para a conformação de um corpo multiculturalmente diversificado nas suas mais-valias.
É verdade, portanto, que a eventualmente necessária postura ortodoxa e monolítica da enunciação anticolonial está a ser substituída por um gesto pulverizado por críticas, inesgotável autoquestionamento e constante destotalização de sentidos e formas – enfim, por uma “rejeição do consenso dominante” (APPIAH, 1997, p. 200) – através de uma estratégia a remeter para o processo paródico, no sentido em que sugere uma “distância crítica que permite a indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança” (HUTCHEON, 1991, p. 47): a semelhança é de objectivos que vêm da luta anticolonial que defraudaram expectativas. Por isso, o modelo pós-colonial é ainda caracterizado pelo recurso à História recente e remota – colonial e nacionalista, ambas, afinal, “oficiais” em suas espácio-temporalidades; porém, não com o figurino de uma recordação nostálgica ou necessariamente canibalesca: essa rememoração pode ser irónica e paródica, no sentido em que a paródia é uma forma intertextual, uma interlocução com o texto da doxa que se pretende transgredir para ultrapassar.
O pós-colonial pressupõe, por conseguinte, uma nova visão da sociedade que reflecte sobre a sua própria condição periférica, tanto a nível estrutural como conjuntural. Não tendo o termo necessariamente a ver com a linearidade do tempo cronológico, embora dele decorra, pode entender-se o pós-colonial no sentido de uma temporalidade que agencia a sua existência após um processo de descolonização – o que não quer dizer, a priori,
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tempo de independência real e de liberdade, como o prova a literatura que tem revelado e denunciado a internalização do outro no pós-independência. Leia-se, a propósito, O desejo de Kianda, com outros como Honório e os adeptos do “movimento cívico” dos desalojados do Kinaxixe; leia-se A geração da utopia, com outros como Sara, Mukindo e Aníbal, este mentor do “Movimento dos Marginalizados do Processo”, conheçam-se os angolares de São Tomé, os outros de Anguéné e Mar e mágoa, de Fernando de Macedo, os outros de Parábola do cágado velho ou os outros de A varanda do Frangipani – neste caso os velhos...
E nisso reside outra das ambiguidades do alcance do termo: se o pós-colonial remete, à partida, para o fim de um ciclo de dominação geopolítica, nem por isso aponta para a neutralização dos seus corolários, permitindo até a internalização de antigas relações de poder opressivas – e caberia, aqui, recuperar o substantivo plural “pós-coloniais”, proposto por Ella Shohat: “pós-coloniais” que são agora as mulheres, as minorias étnicas, as minorias sociológicas, os camponeses, os dissidentes ideológicos, os críticos do sistema políticos, enfim, os marginalizados do processo de globalização económica, geradora de periferias culturais.
Vemos, portanto, que a diferença continua a ser, também em tempos pós-coloniais, fautora de conflitos e a potenciar exclusões: seja o outro decorrente de diferença de género (como Sara), ideológica (como Aníbal de A geração da utopia e o velho Kakôlo de O suicídio cultural), social (os camponeses de Parábola do cágado velho), etária (como os velhos abandonados do asilo de A varanda do Frangipani), étnica (como os angolares) e cultural (os não falantes do português como Lutamos de Mayombe ou Mukindo de A geração da utopia)... É que nesta época de comprometimento generalizado a questionamentos vários (do saber, da identidade), e, simultaneamente, era de privatização da nação e de reivindicação segmental – apetece-me dizer fragmentária – está a operar-se um fenómeno que Aijaz Ahmad designou como sendo de substituição gradual da política de igualdade (que foi um paradigma temático da estética nacionalista) pela política de identidade enquanto “a idéia de ‘classe’ como um assunto histórico começa a ser descartada com desprezo” (2002, p. 13). Se se entende tal “substituição” na literatura cabo-verdiana, talvez ela não seja tão compreensível nas literatura angolana ou são-tomense, sociedades em que as desigualdades sociais raiam os limites do absurdo: leiam-se, por exemplo, o
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poeta José Luís Mendonça em Quero acordar a alva (poesia, 1997), Nélson Saúte em Os narradores da sobrevivência (romance, 2000) ou Conceição Lima em O útero da casa (poesia, 2003).
Por isso, embora possa parecer paradoxal, o pós-colonial denuncia a sua marca de dependência e um compromisso contraditório com o empreendimento que o precedeu e possibilitou e que, para combater, tem de digerir – o que, a meu ver, não tem conseguido, antes antagonizado as diferenças. Para criticar o colonial, o pós-colonial teria de se imbuir do colonial, incorporá-lo, dialogar com ele para o descrever e prescrever, pois, como observa Richard Werbner “em muitos lugares, as pessoas trazem consigo traços poderosos e às vezes intimamente dolorosos do passado colonial e pós-colonial que informam a(s) política(s) do presente” (WERBNER, 1998, p. 2).
E assim a pós-colonialidade literária tem como ponto de partida a colonialidade literária nos seus vários desdobramentos – tal como acerca da relação entre o modernismo e pós-modernismo disse Fredric Jameson (1994, p. 176). O processo de transformação do modelo anterior pela literatura pós-colonial realiza-se pela incorporação daquele modelo visando a mudança, muitas vezes dentro da continuidade: o que aquele tempo fornece ao presente é uma realidade discursiva cujo referente é o passado sociocultural e ideológico. Por isso, o modelo anterior não é apenas o colonial mas também o seu antítese, o anticolonial: o modelo anterior ao pós-colonial é o modelo tensionado que resulta da dialéctica luta de contrários. Não sem razão pensa Appiah a pós-colonialidade como lugar em que se operam as contradições do colonial, ora em sinergia, ora em competição. No entanto, a dialéctica (não resolvida) desta tensão – que seria, na figuração da praxis, a realização das propostas do discurso nacionalista – resultou no esvaziamento do próprio modelo, levando ao fim das certezas – Luís Kandjimbo fala, por isso, da “Geração das Incertezas”, referindo-se àquela geração de escritores que se manifestaram imediatamente após a independência política – e a consciência dos limites que tornam provisório e contingente o novo modelo pós-colonial, pautado agora por dúvida, ambiguidade e continuidade. Na verdade, o “discurso colonial”, o da literatura colonial (como ela é entendida nos estudos literários africanos), pressupõe o discurso anticolonial, o da literatura nacionalista, que indica um modo diferente de pensar o cultural, o intelectual, o económico e o político do processo colonizatório. É esse modo que visou o desmantelamento do
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colonialismo e seus nichos de desigualdades e de exclusão, de alienação cultural e glotofagia.
Por outro lado, o colonial continua a ser não apenas uma presença obsidiante – como já demonstrei em outro lugar, referindo-me à literatura são-tomense4 – como continua a enformar o eixo narrativo de referência, numa marcha temporal que caminha nitidamente do pré para o pós e que deixa descobertas as suas relações ambíguas com novas formas de colonialismo, isto é, com o neocolonialismo – e recupero de Shohat a afirmação epigráfica deste texto: “A narrativa colonial de fundação está, entretanto, a ser triunfantemente reencenada” (1996, p. 327). E mesmo se, como lembra Stuart Hall, “essa renarração desloca a ‘estória’ da modernidade capitalista de seu centramento europeu para suas ‘periferias’ dispersa em todo o globo” (2003, p. 113), é o “centro europeu” que continua, ainda assim, a assumir o lugar matricial do “pensamento pós-colonial”. Poderá pensar-se que esta reencenação não é apenas do encenador mas também do espectador, leitor dessa narrativa, com o olhar contaminado por categorias do “cânone ocidental” e na posse do instrumental teórico exigido na análise de “obras canónicas”. Não se trata, aqui, de uma questão meramente colonial ou neocolonial, situação que um programa de convergências levado a efeito pelas elites nacionais poderia debelar; trata-se, sim, de relações “assombrosamente directas” entre cultura e política imperial, de relações de dependência cultural – do tipo o escritor ou crítico “periférico” à espera de aval do “centro metropolitano” – relações estudadas por, entre outros, Edward Said no seu livro Cultura e imperialismo (1993). Em última instância, é disso que fala Mia Couto quando, numa entrevista ao jornal Público, no ano passado, “lamentava” o facto de aos escritores africanos ser exigido o “passaporte para provar que são tipicamente africanos. Têm de transportar os seus valores históricos, tradicionais” (COUTO, 2002). Essa exigência tem a ver com a “expectativa”, muitas vezes satisfeita, do “centro” em relação à “periferia”... Note-se, porém, que não há nada de “inédito” neste lamento questionante de Mia Couto: já em 1986 já Fredric Jameson falara disso, ao estudar o heterogéneo espaço literário do Terceiro Mundo quando afirma que, na lógica do “capitalismo tardio”, essas literaturas “projetam uma dimensão política na forma de alegoria nacional: isto é, a história do destino individual e privado é sempre uma
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alegoria da situação de luta da cultura e sociedade públicas do Terceiro Mundo” (1986, p. 69).
Esse “lamento” tem a ver também com o facto de as literaturas africanas em línguas originariamente europeias, sendo legitimadas com base numa crítica estrangeira – mormente europeia, da antiga metrópole – pensarem-se dentro de um sistema que é legado branco-ocidental. Vale a pena lembrar, neste contexto, o crítico beninense Noureimi Tjidani Serpos que afirma que, quando o escritor africano produz, as ressonâncias literárias que ele convoca, e que o orientam, para servirem de modelo ou para serem subvertidas, provêm da tradição com a qual o escritor sempre se relacionou literariamente, mesmo no decurso do seu percurso da educação formal. Porém, actualizadas em formas em que se vazam quaisquer experiências africanas. Assim, as suas estratificações literárias (modais, genológicas e funcionais) buscam-se na tradição literária ocidental, em formas que logram conter a experiência africana. Diz, a propósito, Serpos:
(...) quand l’écrivain africain se met à produire, consciemment ou non, il est déjà sommé d’identifier sa pensée dans les formes idéologiques appelées roman, théâtre, etc. Peu importe, semble-t-il, que sa culture ait connu ce genre de différenciations littéraires ou non. (SERPOS, 1994, p. 8)
Portanto, este é um condicionamento histórico e inevitável e porventura inconsciente, a que está submetido o escritor africano e a que o crítico também não está livre. Mas nem por isso o reconhecimento desse imperialismo cultural alivia a questão: ele pode ser tão eficaz nas opções artísticas como também actuar no mundo da crítica. Que os críticos dessas literaturas tenham a sagaz coragem para conciliar o postulado ético da crítica com a conveniência das imposições teóricas e não descurem as exigências que, ontem como hoje, ainda se impõem, e não apenas ao escritor. Porque tal como o autor, o crítico é também um escritor – com todas as implicações que tem este estatuto em sociedades ainda precarizadas em termos técnico-culturais.
Referências:
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1 É o que me parece estar a acontecer quando se pretende “aplicar” a teoria que explica a formação das sociedades crioulas insulares, de África ou das Américas, para espaços africanos em que os sujeitos e os efeitos das políticas coloniais foram completamente diferentes – aqui por conveniências ideológicas.
2 Sobre esta questão ver duas posições: uma, apologética, a de Fernando Cristóvão – ”Os três círculos da lusofonia”. Revista Humanidades (Lisboa), Setembro de 2002; a outra, crítica, a de Alfredo Margarido – A lusofonia e os lusófonos: novos mitos portugueses, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000. Ver também: Eduardo Lourenço: A nau de Ícaro seguido de imagem e miragem da lusofonia, Lisboa, Gradiva, 1999.
3 No artigo “Notes on the ‘Post-Colonial’ (1992), Ella Shohat fala da transformação desta expressão num substantivo plural para designar“os sujeitos da condição pós-colonial”. Padmini Mongia (Ed.), Contemporary postcolonial theory – a reader, New York, Arnold, 1996 (321-334). p.323.
4 Inocência Mata, “A prosa de ficção são-tomense: a presença obsidiante do colonial”. M.ª Josefa Postigo Aldeamil (Coord.), La narrativa en lengua portuguesa de los ultimos cincuenta años. Estudios dedicados a José S. Ares Montes. Revista de filología románica. Anejos II, Madrid, 2001
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero8/inocencia.htm
Número 8 (2008) - ISSN 1981-870X