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GARRETT E SARAMAGO: VIAGENS PELO RIO DA HISTÓRIA OU PELO PEQUENO FIO DE ÁGUA QUE SE AFUNDA E SOME NAS AREIAS DO ESQUECIMENTO?
Amélia Cherulli Alsina
accherulli@hotmail.com
Resumo:
O objetivo deste artigo é o de analisar a questão da identidade nacional a partir do conceito de História nas obras Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, e Viagem a Portugal e A jangada de Pedra, de José Saramago. Tendo em vista as noções de nacionalismo e anti-epopéia nacionalista, História oficial e histórias populares, simultaneidade e sincronicidade, ver-se-á que essas viagens são, muito mais do que o simples deslocamento pelo espaço físico, viagens pelo passado português, contribuindo para definir identidades nacionais muito peculiares.
Palavras-chave: Almeida Garrett; José Saramago; a viagem na literatura; História; identidade nacional.
Abstract:
The objective of this article is analysing the concept of History and the national identity on the books Travels to my homeland, by Almeida Garrett, Travel to Portugal and The stone raft, by José Saramago. From the notions of traditional nationalism and anti-epic nationalism, official History and popular story, simultaneity and synchronicity, we will conclude that these travels are more than movement through space; they are travels through the Portuguese past, defining very special national identities.
Key words: Almeida Garrett; José Saramago; travel; History; national identity.1
Quando Saramago afirma que Garrett é para ele “uma referência fundamental”, admitindo haver “uma relação muito directa” entre o seu “trabalho de ficcionista” e o deste seu precursor (GUSMÃO, 1989, p. 98), ou quando, mais recentemente, questionado a respeito de “[rever-se] muito neste seu antepassado”, responde com a dupla afirmação: “Sim, sim, sobretudo nas Viagens. Todos nós temos uma memória vivíssima desse seu livro” (REIS, 1998, p. 127), é, entres outros aspectos¹, ao interesse pela História e pela identidade nacional portuguesas que ele se refere. Assim como o introdutor do romantismo em Portugal, Saramago, em parte significativa de seus romances, resgata importantes fatos históricos nacionais com vistas a reinterpretá-los, definindo, assim, interessantes imagens da pátria. Para isso, ambos os autores elegem, em seus romances, conceitos muito bem demarcados de História, os quais figuram como elemento de diálogo, mas também de argumentação entre eles.
No presente artigo, pretende-se cotejar as obras Viagens na minha terra, Viagem a Portugal e A jangada de pedra, exemplares de um diálogo intenso e rico entre os autores não só no que diz respeito à tamática da viagem e ao estilo retórico-estilístico por eles utilizado, mas também – aspecto que mais interessa aqui – ao conceito de História e à questão da identidade nacional por eles desenvolvidos. Está claro que a relação que se dá entre as duas primeiras obras é mais evidente, sendo muitas as semelhanças entre elas, a começar pelo título, mas não há como negar que a influência garrettiana estende-se a toda a obra de Saramago, sendo A jangada de pedra é exemplar nesse sentido, em essencial porque também trata de viagem – ou de viagens – pela terra portuguesa. Nela também se apresentam interesses comuns aos demais textos, inclusive o pela História, pelo que completa o ciclo da análise aqui pretendida. Ver-se-á também que a aproximação entre as obras servirá não só para situar a obra de Saramago em uma tradição literária importante, mas também para revalorizar tanto o clássico de Garrett como a sua figura literária e a contemporaneidade do seu pensamento
Em uma primeira análise, as obras em cotejo têm em comum a temática da viagem por terras portuguesas. Seguindo-se direção oposta à marítima, ou seja, contrária à das grandes descobertas, opta-se, nessas viagens, por adentrar o continente, em busca do encontro (ou do reencontro) com uma nação outrora preterida². Nessas peregrinações terra adentro, muitos e diversos são as buscas e os encontros dos viajantes: o espaço físico português, terra e paisagem, o homem que nele habita e a voz por ele proferida, a arte, a arquitetura e a literatura portuguesas. Esse deslocamento pela terra portuguesa é físico (mesmo que retoricamente, afinal, nas Viagens, isso se dá por meio de sinédoque), mas também abstrato, já que o deslocamento é igualmente temporal. Ao percorrer o território pátrio, automaticamente os viajantes viajam também ao passado, já que cada passo, cada encontro, cada visão suscitam a recordação de fatos históricos importantes para a reflexão sobre a identidade nacional. É nesse aspecto que o presente trabalho focar-se-á.
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Esse interesse em comum pela História pátria deve-se primordialmente ao fato de as obras desses autores se situarem em períodos de fecunda transformação político-social e literária da nação. Como sói acontecer nesses momentos de mudança substancial no contexto nacional, eles acabam refletindo, ao produzir seus textos ensaísticos e literários, sobre a própria nação, tendo em vista o desejo dos escritores de registar em suas obras as transformações ocorridas no imaginário individual e colectivo e, assim, contribuírem para o questionamento, a compreensão e a consolidação dessas mudanças. A começar por Garrett, este viveu, na primeira metade do século XIX, o contexto das lutas liberais, movimento em que se envolveu plenamente e que influenciou a sua prática literária. A ideologia liberal desse período contribuiu para que a abordagem histórica do Romantismo estivesse sempre aliada ao nacionalismo, sendo o aproveitamento de fatos e de personagens históricas um meio de exaltar o passado da nação. Sendo assim, mesmo mostrando-se às vezes crítico em relação a alguns aspectos relacionados à História que encontra pelo caminho (crítica que é, já, sinal da modernidade de Garrett), o viajante das Viagens busca neles um meio de ressaltar a glória de outrora. Quanto a Saramago, este assistiu muito de perto, na segunda metade do século XX, à transição do regime ditatorial para a democracia, momento literário também caracterizado pelo interesse pela História. A abordagem contemporânea, pós-25 de Abril, é, porém, bastante peculiar, já que, se não se pode dizer que é antinacionalista, pode-se afirmar que é anti-epopéia nacionalista; a exaltação dos fatos passados, neste caso, é reconhecida como estratégia usada pelo regime salazarista para impor uma imagem gloriosa da nação, como uma forma de compensação de uma realidade não tão gloriosa assim. Essa é tomada, assim, sob uma perspectiva bastante mais crítica, havendo uma tendência para que os fatos históricos relacionados com os grandes feitos da nação, juntamente com os heróis nacionais, passem a ser vistos sob um ponto de vista negativo, muitas vezes irônico ou paródico, sendo mesmo desmitificados.
Há de ressaltar-se, porém, que, nesse contexto de retomada e reavaliação dos fatos históricos, ao irem em busca da gloriosa memória nacional, os viajantes encontram, na maioria das vezes, decepção ou mesmo vazio. Nessas viagens por Portugal, o encontro marcado com a História oficial portuguesa acaba por tornar-se, às vezes, desencontro, já que nem sempre a expectativa criada pelos compêndios escolares é confirmada. No que se refere às Viagens, após a desilusão com o destino da personagem Carlos, que já dá sinais, no decorrer da novela, de que representa uma personalidade fraca e corruptível (o que vem a se confirmar quando ele se torna barão), Garrett tenta encontrar compensação na valorização do passado comunitário nacional, sendo este a alternativa para, segundo Victor J. Mendes, “redimir Portugal” (1999, p. 105) da sua conduta presente. É por isso que o narrador tanto se decepciona com a visita a Santarém, justamente porque esa cidade, que poderia ser a salvadora da alma nacional pela via histórica, torna-se exemplo da não preservação e da não conservação do passado. Ao procurar os monumentos nacionais e encontrá-los destruídos ou as sepulturas dos reis portugueses e achá-las vazias, o narrador considera deparar-se com a imagem de uma nação semi-destruída e, de um ponto de vista extremo, inexistente. Para Mendes, a “observação empírica dos monumentos” acaba por perturbar a “retórica da defesa do passado”,
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tornando-se, assim, mais um motivo da “crise da representação”, que, para este crítico, existe em vários níveis na obra. Na verdade, a crítica maior à nação portuguesa nestas Viagens está voltada para o presente, esta “modernidade deplorável”, que “revela uma inadequação para representar o passado”, para gerir o “Portugal antigo” (1999, p. 105), este sim glorioso, heróico. Para outro crítico, Pedro Serra, o “livro de pedra” que é Santarém – e, por sinédoque, Portugal – “é signo da amnésia, do esquecimento” (2003, p. 188), sublinhando a “disjunção entre a ‘grandeza antiga’ e a ‘desgraça presente’” (2003, p. 193). Portugal, não tendo História, passado, torna-se, assim, corpo agonizante ou mesmo túmulo vazio, nada, não havendo, portanto, identidade pátria possível.
Na Viagem a Portugal, de José Saramago, há igualmente esse sentimento de decepção quanto aos fatos passados, mas também uma preocupação com uma memória que pode estar prestes a se perder. Se se levar em conta o seu próprio comentário de que esta sua obra “é o último livro de um Portugal que já não existe, que estava a deixar de existir naquele momento” (REIS, 1998, p. 118) (o que se deve já à consciência da entrada do país na modernidade pós-25 de abril), pode, então, considerar-se que, nessa obra, o passado nacional também beira ao esquecimento, estando a identidade portuguesa em um momento de oscilação (ou também de agonia). Ao afirmar, mais adiante nesta mesma entrevista, que o livro “mostra a última imagem de qualquer coisa” (REIS, 1998, p. 118), ele também prevê um Portugal à beira da morte, já à beira do túmulo, prestes a tornar-se o Portugal-ninguém, o Portugal fantasmático garrettiano, entrevendo-se, portanto, nesse comentário, não se sabe se intencionalmente ou não, um diálogo com o escritor romântico.
N’A jangada, há igualmente uma espécie de desilusão em relação aos grandes feitos heróicos nacionais, já que, na maioria das vezes, é com teor crítico que estes são comentados; mas há também nessa obra uma forma peculiar de vazio histórico, já que é intencional. Ao imaginar a separação da Península e o seu distanciamento da Europa, o autor expressa uma intenção deliberada de romper com o passado de dominação e subjugação relacionados à Europa (simbolizados pela entrada de Portugal para a Comunidade Econômica Européia) e a tentativa de inscrever uma nova história para as nações ibéricas. São justamente o não à Europa comunitária e o sim à história de irmandade com Espanha e a de comunicação com África e América Latina que permitirão concretizar-se, na obra, um presente alternativo ao de 1986 (ano da entrada de Portugal na CCE), mas, enquanto isso não acontece, há uma espécie de suspensão do fluxo temporal, histórico [segundo Manuel Gusmão, uma contraposição “à efectiva sequência histórica” (1998, p. 15)], e a proposição de um tempo histórico utópico. Dessa forma, como nas duas outras obras em estudo, há um vazio relativo ao presente, a existência de um Portugal-nada, talvez “ninguém”, mas agora consciente da sua condição, aliás desejada, procurada, ansiada .
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que o narrador vai ao “reino das sombras” (1983, p. 113) à procura do Marquês de Pombal e encontra-o a jogar cartas com outros mortos ilustres e, diga-se de passagem, a “esconder o seu jogo” (1983, p. 114); ou daquela em que, ao passear por Santarém, o narrador imagina Nun’Álvares Pereira a passear pela Ribeira, “dando a ‘correger’ a bela espada velha de seu pai ao rústico profeta que tantos vaticínios de grandeza lhe fez, que o saudou condestável, conde de Ourém e salvador da sua pátria.” (1983, p. 285). Apesar do desejo desse viajante de encontrar (simbolicamente) o herói, não há vestígios dessa figura histórica em Santarém, já que o espaço onde se poderia dar o encontro fora muito alterado pelas sucessivas reparações e deteriorado. Na Viagem a Portugal, é descrito um evento muito similar a este último, quando, na visita a Guimarães, a cujo castelo o viajante chega com a expectativa de encontrar o “berço da nacionalidade” portuguesa, ele se depara com uma paisagem de tal modo modificada e degradada, tão diferente do que era na época de Afonso Henriques, que imagina a irônica cena do rei a chegar, nos dias atuais, de alguma batalha e a perder-se no caminho de entrada do castelo, ao mesmo tempo em que o empregado do jardim, após dar-lhe as direções, comenta ironicamente: “Vê-se cada um.” (2002, p. 60). O mesmo tratamento jocoso ocorre, na Viagem, em relação às dinastias reais portuguesas, como a figura do rei Dom Sebastião, quase sempre tratado com tom depreciativo e diminuidor. N’A jangada, as viagens quinhentistas de descoberta tornam-se o alvo, sendo sempre referidas no seu aspecto cruel e violento, com um olhar crítico e pouco engrandecedor comparativamente à fabulosa viagem da Península e daqueles que dentro dela também viajam.
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de interpretar os insólitos acontecimentos, mostram-se insensatos, agindo sempre em favor de seus próprios interesses.
A voz popular também se expressa, mais indiretamente, nas obras, por meio do uso de uma linguagem muitas vezes popular e coloquial, assim como de expressões, frases e provérbios que representam uma memória pátria comum. A própria melodia frasal, caracterizada, em ambos os autores, pelo “escrever como se falasse alto” (SARAIVA & LOPES, 1997, p. 726), é uma forma de representar a voz do homem comum e as histórias que ele tem para contar. Devido a esse estilo de escrita, a linguagem garrettiana é considerada inovadora para a época literária que ele viveu; mas é com Saramago que essa oralidade atinge o seu máximo até os dias de hoje, com a invenção de uma linguagem totalmente nova que procura resgatar a narrativa de tradição oral. Para além do uso recorrente dos ditos populares, a pontuação inovadora praticada por ele é uma homenagem aos contadores de histórias e um elogio à oralidade. Vale ressaltar que essa melodia textual simbolizada pela pontuação, se não está presente na Viagem, está pelo menos representada pela intenção do viajante de ouvir atentamente os casos que o povo tem para contar e registrá-los cuidadosamente.
Também é válido ressaltar a importância da literatura na construção dessa nova identidade nacional. Garrett e Saramago, nas obras aqui em análise, dão voz a muitos outros autores, construindo, nas palavras de Julia Kristeva, um verdadeiro “mosaico de citações” (1997, p. 98) que, lado a lado com a voz popular, contribui para uma imagem diferente, não heróica, da nação. Nas Viagens, são citados autores da literatura universal e portuguesa, com destaque para Camões e Cervantes. Já na Viagem, Saramago refere vários autores, principalmente os nacionais, recuperando toda uma tradição literária portuguesa que vai das crônicas de Fernão Lopes à poesia e ao romance modernistas. D’A jangada, destacam-se as alusões a autores como Estrabão, Bandarra, António Vieira, Fernando Pessoa e Unamuno, que representam não só o pensamento literário, mas também o filosófico, de Portugal e da Península. Não se deve esquecer que, nessa obra, como também nas Viagens, há referências a uma das maiores obras produzidas na Península, Dom Quixote (Roque Lozano e seu burro são uma alusão a Sancho Pança; e a peregrinação pelo interior do território espanhol e português também não se diferencia daquela feita pelo Cavaleiro da Triste Figura). São, portanto, essas vozes e memórias literárias, juntamente com as populares, parte do projeto dos autores de reescrever uma história nacional.
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mais autêntica, em detrimento da oficial, tornada motivo de paródia e crítica às vezes feroz por parte do narrador.
O tratamento dado à História por esses autores também se diferencia no que se refere à noção de temporalidade. A começar por Garrett, este opta, em geral, por aceitar o fato histórico como fato decorrido. Apesar de estes eventos também servirem para que se repense o tempo presente, o autor vê o passado como pertencente ao próprio passado, ou seja, visto, pelo homem do presente narrativo, com o natural distanciamento temporal e tendo-se plena consciência da relação de causalidade existente entre eles. Ao narrar o já citado trecho referente a Nun’Álvares, o narrador não deixa de reconhecer o atrevimento da suposição, tratando-a como um “anacronismo”. Já Saramago, mais especificamente n’A jangada, (e em seus demais romances) opta pela noção de “sincronicidade”, esta muito bem colocada por Mary L. Daniel. Para ela, o passado saramaguiano é visto apenas como parte de um todo, em conjunto com o presente e o futuro, em uma relação de “overlapping and interpenetration of lives and events at all levels”. Essa relação pode ser denominada, paradoxalmente, “synchronicity of intentional coincidences” (Daniel, 1991, p. 541), o que justificaria a mistura indiscriminada, no texto narrativo, de fatos passados, presentes e futuros em um mesmo plano, a mistura de vozes antigas e actuais e a preocupação do narrador, expressa no próprio texto d’A jangada, com a estratégia a ser usada para narrar simultaneamente os insólitos acontecimentos, “por em escrito, no mesmo tempo, dois casos no mesmo tempo acontecidos” (2002, p. 14). Na Viagem a Portugal, apesar de o conceito de sincronicidade não estar ainda totalmente pronto, essa idéia começa a delinear-se, já que não é a cronologia dos fatos que define o novo contar; esses vão surgindo em função do percurso de viagem e dos interesses do viajante. Essa estratégia também se concretiza, por exemplo, no encontro entre Afonso Henriques e o empregado do castelo de Guimarães, cena que ilustra perfeitamente a interação entre presente e passado.
A partir desse tratamento dado por Garrett e Saramago aos fatos históricos oficiais, pode deduzir-se que cada um dos autores elege para si um conceito de História. Garrett, apesar de crítico em relação ao antigo regime absolutista (no que segue a tendência liberal), aceita o sentido comumente reservado à História, respeitando a seqüência cronológica dos fatos, como organizados pelos compêndios oficiais, e tomando-os como verdade absoluta e incontestável. Há, sim, em sua obra, uma precoce tendência para criticar alguns fatos históricos, como as transformações pós-terremoto de 1755 empreendidas pelo Marquês de Pombal ou a própria guerra entre liberais e conservadores, mas o desejo de preservar o passado glorioso da nação prevalece. É a “retórica da defesa do passado” definida por Mendes (1999, p. 105).
Já Saramago adota uma postura inaugural no tratamento da História, sendo eswe um dos aspectos mais marcantes de uma significativa parte da sua escrita romanesca. Ilustrativa desse comportamento é a maneira como o termo é utilizado na Viagem a Portugal, quase sempre com inicial minúscula, mesmo quando se refere à História oficial – excepto duas vezes, quando refere a “mão severa da História” (2002, p. 218) e a “uma presença constante de História” em Évora (2002, p. 343), comentários dotados de crítica
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em relação a esse tipo de narrativa. Para ele, a História registada nos livros é apenas uma história possível, contada a partir de um único ponto de vista, podendo, portanto, ter sido escrita de maneira totalmente diversa se outro fosse o seu contador. Veja-se como, na penúltima parte do livro, o narrador tenta recuperar (imitar) ironicamente o discurso histórico (o oficial) para contar parte significativa da História de Portugal:
São complicadas histórias de uma história geral que alguns teimam em fazer passar por simples: primeiro havia os Lusitanos, vieram os Romanos, depois os Visigodos e os Árabes, mas, como era preciso haver um país chamado Portugal, apareceu o conde D. Henrique, a seguir seu filho Afonso, e após ele, entre Afonsos outros, alguns Sanchos e Joões, Pedros e Manuéis, com um intervalo para reinarem três Filipes castelhanos, morto em Alcácer Quibir um pobre Sebastião. E pouco mais. (2002, p. 382)
Percebe-se que o narrador, ao tentar simular uma representação do discurso histórico, fá-lo de maneira por demais simplista, o que se evidencia no irônico contraste entre as expressões “complicadas histórias” e “pouco mais”, para além do registo de toda a História de Portugal em poucas linhas, com referência à sucessão de períodos históricos e de reinados. Haverá, como visto, em toda a obra, a tentativa de reescrever essa História, seja recontando-a, seja reflectindo sobre ela. É por isso que, na passagem em que narra Afonso Henriques a entrar pelo castelo de Guimarães, o narrador é bastante crítico no comentário do funcionário, o qual sequer sabe quem é aquele cavaleiro que entra. O passado, portanto, é esquecido, e o viajante, que “gostaria que o rio da história lhe entrasse de repente no peito”, percebe que “em vez dele é um pequeno fio de água que constantemente se afunda e some nas areias do esquecimento.” (2002, p. 60) O que deveria ser memória torna-se, então, desmemória.
Sendo assim, Saramago considera a História registada nos livros apenas uma das versões possíveis, contada a partir de um único ponto de vista, podendo, portanto, ter sido escrita de maneira totalmente diversa se outro fosse o seu contador. Neste caso, o viajante, ao deparar-se, pelo caminho, com resquícios da História, oficial, quase sempre a recusa ou a modifica, ridicularizando heróis e soberanos nacionais ou recontando o fato de maneira diferente. Ele aprecia escrever histórias que poderiam ter sido, que teriam possivelmente ocorrido lado a lado com a oficial, ou preencher as suas lacunas, os não-ditos do texto oficial, de modo a desconstruir os mitos nacionalistas tão apreciados pela História. Essa postura fica evidente na Viagem a Portugal, obra em que, da mesma maneira que opta, na viagem que faz, por percorrer uma trajectória alternativa em relação aos percursos turísticos, escolhe contar uma história diferente, também alternativa, de Portugal – conseqüência da descoberta de um Portugal diferente, em mudança. Ao visitar, por exemplo, o Museu de Arqueologia e Etnologia de Lisboa e ver as peças expostas, o viajante é acometido pela vontade de contar uma nova história:
O viajante gostaria de pegar na mais antiga e depois seguir a história até à mais recente. Tirando alguns deuses conhecidos e uns tantos imperadores romanos, o resto é arraia-miúda, anónima, sem rosto nem nome. Há uma palavra para designar cada objecto, e o viajante descobre, estupefacto, que a história dos homens é afinal a
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história desses objectos e das palavras que os nomeiam, e dos nexos existentes entre eles e elas, mais os usos e os desusos, o como, para quê, onde e quem produziu. A história assim contada não se atravanca de nomes, é a história dos actos materiais, do pensamento que os determina, dos actos que determinam o pensamento. (2002, pp. 290-291)
A citação acima é decisiva não só para esse livro, mas para toda a obra de Saramago, já que representa o momento em que o próprio autor reinventa o conceito da história para ele mais conveniente: ao invés de esta constituir-se de nomes e datas, ela se revela na voz e no trabalho dessas pessoas anônimas, cujos objectos criados guardam, em si, o seu próprio passado, o seu próprio valor e, portanto, a história da nação a que pertencem. O que importa, na verdade, é o que há de humano em cada peça. Assim, a história de Portugal que Saramago (re)conta nesta sua Viagem é também, como em Garrett, a do homem comum português, expressa no registo oral, nos monumentos históricos, nas manifestações artísticas e literárias, no trabalho e nos traços humanos.
No que diz respeito às obras de Saramago em geral, principalmente as escritas posteriormente à Viagem a Portugal, como A jangada de pedra, o ponto de vista com que Saramago observa o passado histórico, diferentemente de Garrett, não é o do passado situado no próprio tempo passado, distante do presente, mas sim o do seu tempo, do tempo seu contemporâneo. Esses acontecimentos, trazidos à actualidade e abordados à sua luz, são vistos e revistos sob o domínio constante de um narrador claramente marcado pela sua contemporaneidade. Nas palavras de Manuel Gusmão, ao indagar o autor sobre este aspecto, “há sempre essa inscrição do presente que de alguma forma marca o modo como se reencena o passado.” Essa melange temporal, mas também identitária, surge como representação do “desejo de uma outra história, que é também um outro tempo a vir” (GUSMÃO, 1998, p. 15), de um depósito total de confiança no futuro, totalmente novo, provavelmente fabuloso (nos vários sentidos que este termo pode adquirir: como fábula, produto da imaginação, mas também como espectacular, admirável).
Essas definições do conceito de História estão em consonância com a identidade nacional portuguesa descrita pelos autores. Observando-se os títulos das obras (estes como elementos representativos de cada obra como um todo), podem definir-se coordenadas importantes para a imagem de Portugal desenvolvida em cada uma delas. Assim, deve considerar-se o pronome possessivo do título Viagens na minha terra uma revelação de Portugal como terra amada (mas nem por isso não criticada), com a qual o viajante tem uma relação de proximidade e de familiaridade, reconhecendo-a como espaço de onde provêm as suas raízes histórico-culturais; terra que figura, principalmente, como espaço de viagem (marcado pela preposição em), estático, estando o foco ativo da obra no próprio escritor e no exercício estético por ele praticado. Na Viagem a Portugal, esse país é tornado terra longínqua, destino para o qual o viajante se dirige com o intuito de descobri-lo, conhecê-lo e, assim, passar a identificar-se mais com ele e consigo próprio. A preposição a define a posição externa do viajante em relação à sua terra, espaço em relação ao qual, na primeira página do livro, ele simula exterioridade e depois adentra.
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Esse posicionamento seria no mínimo estranho se não fosse a tendência saramaguiana de buscar sempre um ponto de vista inusitado para escrever os seus romances. Pensando no título d’A jangada de pedra, esse revela que Portugal, juntamente com Espanha, se torna a própria jangada, o veículo que conduz toda aquela massa de terra e gente em direção a um novo tempo; terra em movimento, ela própria elemento ativo, em estado de total mudança e em direcção a um novo rumo. Nesse sentido, depreendem-se, da sequência cronológica em que as obras foram escritas, diferentes representações da nação portuguesa: a de Portugal como espaço (de paragem), a de Portugal como destino e a de Portugal como veículo ou a própria viagem.
Vê-se, desse modo, que as ideologias desenvolvidas nas obras (e subentendidas nos títulos) estão relacionadas com os conceitos de História eleitos pelos autores. Se, no caso das Viagens, a idéia de terra amada, apreciada, está de acordo com o conceito de História preconizado pelo nacionalismo, na Viagem a noção de terra estranha, a descobrir, está relacionada com uma visão pós-25 de abril, a de um Portugal que está ao lado, mas que, tão mudado se encontra que, se não for visto atentamente, não se compreende. A idéia da nação como veículo dela própria está em consonância com uma vontade coletiva nacional de que Portugal interrompa a sua condição de inércia e garanta um futuro promissor. Neste caso, a própria História pátria e o homem que a constrói ganham dinamismo, já que o passado e o presente não são simplesmente aceitos como acabados, absolutos; é um Portugal ativo, dinâmico como barco em alto-mar, que Saramago descreve.
Vê-se, dessa forma, que as obras analisadas representam a tentativa de preenchimento de um vazio correspondente à História à identidade nacional portuguesa, a partir da recuperação e da valorização de um certo passado. Não há dúvidas, porém, de que essas novas histórias que os autores pretendem contar representam, na verdade, o desejo de construção de um porvir e de esperança no futuro. Parte-se de um tempo presente ausente, seja voluntariamente ou não, mas com um pensamento futurológico, confiante no que virá. Para Garrett, é a tradição, conservada e repassada pelo povo, a maior esperança nacional, tanto que, no final do livro, o narrador consegue vislumbrar uma nova viagem, em que ele “vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para (…) contar.” (1983, p. 338). Segundo Mendes, “Portugal, mesmo desaparecido como nação, continuará milagrosamente a existir nas terra, família e raça”, estas defendidas pela “identidade potencial” (2003, p. 152) que é a popular. Quanto à Viagem a Portugal, o último capítulo é importante, pois nele o viajante confirma a esperança no porvir, afirmando que a viagem, afinal, não acabara – mesmo os viajantes, que, estes sim, acabam, “podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa” (2002, p. 387). Isso confirma a intenção de o autor, por meio da sua obra, contornar o pessimismo presente e contribuir para a construção do futuro: para ele, um porvir também esperançoso na tradição popular, nos espaços naturais intactos, na arte, na literatura e na escrita nacionais, na história nova contada e preservada. N’A jangada, se se nega a História oficial e o presente em que Portugal estava prestes a adentrar, recupera-se, por um lado, um passado mais remoto, um tempo arcaico, o da formação da Península (este representado por Pedro Orce e sua cidade, Venta Micena) e, por
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outro, inscreve-se, na voz daqueles homens comuns que decidem viajar juntos e descobrir a Ibéria, uma nova história, que tem como marca ter nascido da renovação. Essa transformação também continua para além da última página, pois, afirma o narrador, a viagem não acaba, continua para além dessas histórias.
Na verdade, a própria existência dessas três obras, e o empreendimento lingüístico em que elas se constituem, contribui para o resgate e a conservação do passado português e colabora para o questionamento sobre o presente e para a construção de um futuro diferente. A retomada do patrimônio cultural, histórico e lingüístico, com a crítica que caracteriza o olhar desses autores, é a contribuição dada por eles à formação de novas identidades pátrias. Tendo em vista a contemporaneidade da escrita e do pensamento de ambos, os resultados fazem perceber-se ainda hoje e podem estender-se ainda por muito tempo, sendo o leitor responsável pela escrita de novas histórias, quiçá mais heróicas.
Vale frisar-se, por fim, a importância da aproximação entre esses dois autores tão diferentes e distantes no tempo, pois essa serve para valorizar ambos. Saramago, ao trazer para os seus textos (com maior ou menor evidência) palavras e idéias de Garrett, faz reviver esse clássico do Romantismo, relendo sua obra, mostrando-a ao público da atualidade e comprovando, no aproveitamento e na releitura que dele faz, a modernidade do seu pensamento e da sua escrita. Ao mesmo tempo, revela-se parte dessa tradição que inaugurou a reflexão sobre a nação portuguesa, valorizando o que nela há de mais autêntico – o povo e sua voz, seus escritos e sua memória – para também valorizar-se e firmar-se como um dos maiores escritores da contemporaneidade.
Referências:
ALSINA, Amélia Cherulli. Viagens da minha terra: um encontro entre Garrett e Saramago. Lisboa, 2006, 174 p. (Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea) – Lisboa: Universidade de Lisboa, 2006, 174 p.
DANIEL, Mary L. “Symbolism and syncronicity: José Saramago’s Jangada de pedra”. Hispania 74/3, pp. 536-541, 1991. Disponível em http://www.cervantesvirtual.com. Acesso em: 23 Março 2006.
GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Lisboa: Estampa, 1983.
GUSMÃO, Manuel. “Entrevista com José Saramago”. Vértice 14, pp. 85-99, 1989.
GUSMÃO, Manuel. “O sentido histórico na ficção de José Saramago”. Vértice 87, pp. 7-21, 1998.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1978.
LOPES, Óscar & SARAIVA, José. História da literatura portuguesa. Porto: Porto Editora, 1997.
LOURENÇO, Eduardo. “Da literatura com interpretação de Portugal (de Garrett a Fernando Pessoa). In: O labirinto da saudade – psicanálise mítica do destino português. Lisboa: Gradiva, 2001, pp. 80-117.
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MENDES, Victor J. Almeida Garrett – Crise na representação nas Viagens na minha terra. Lisboa: Cosmos, 1999.
REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1998.
SARAMAGO, José. A jangada de pedra. Lisboa: Caminho, 2002.
SARAMAGO, José. Viagem a Portugal. Lisboa: Caminho, 2002.
SERRA, Pedro. “Linguagem, memória e história nas Viagens na minha terra”. In: PAIVA, Ofélia & SANTANA, Maria Helena (org.). Almeida Garrett – um romântico, um moderno. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003, pp. 187-213.
¹Sobre outros aspectos referentes à influência de Garrett em Saramago, entre eles o interesse pelo tema da viagem e por sua simbologia, além do estilo retórico-estilístico por eles utilizado, ver a dissertação de mestrado por mim defendida: Alsina, Amélia Cherulli. Viagens da minha terra: um encontro entre Garrett e Saramago. Lisboa, 2006, 174 p. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea) – Universidade de Lisboa.
²Mesmo n’A jangada de pedra, cujo enredo principal trata da viagem da Península Ibérica mar afora, é no interior de Portugal e Espanha que se dá uma outra jornada tão importante e intensa quanto a outra – a dos cidadãos de ambos os países por suas próprias terras, de carro ou por seus próprios pés, numa peregrinação que acaba por ser nova descoberta.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
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Número 9 (2008) - ISSN 1981-870X