ANA HATHERLY: SOU A GATA
Nadiá Paulo Ferreira
(UERJ)
nadia@corpofreudiano.com.br
Ana Hatherly (Porto, 1929), além de poeta, artista plástica, cineasta e ensaísta, é professora aposentada da Universidade Nova de Lisboa, onde se dedicou ao estudo do Barroco português. Além dessas atividades, liderou junto com o poeta Melo e Castro o movimento da Poesia Experimental Portuguesa.
Em 2007, lança mais um livro de poesia, A Neo-Penélope, publicado pela editora &etc. No ano seguinte, em 9 de fevereiro, o jornal lisboeta, Diário de Notícias, publica, nas páginas 16-17, a entrevista que Ana Marques Gastão, poeta, redatora cultural e crítica literária, fez com Ana Hatherly, para celebrar 50 atividades literárias. Eis a entrevista: |
Ana Marques Gastão: Comemora, em 2008, 50 anos de actividade literária com a publicação de A Neo-Penélope pela &etc. Meio século depois, a sua obra continua a ser marginal e insituável. Quer fazer um balanço?
Ana Hatherly: Cinquenta anos é muito tempo. Aconteceram muitas coisas na minha vida, no nosso país e no mundo.O meu trabalho foi muito intenso e múltiplo. Abarca três vertentes: a literária, a artística e a pedagógica. No que diz respeito às duas primeiras, escolhi o caminho da independência sem me preocupar com êxitos fáceis. Quanto ao ensino universitário, decorreu da minha investigação da cultura do período Barroco português, que foi e continua a ser um trabalho de eleição.
Ana Marques Gastão: Quem é esta Neo-Penélope que “Não tece a tela / Não fia o fio / Não espera por nenhum Ulisses”?
Ana Hatherly: É uma descontrução do mito de uma passividade feminina que (só?) o homem dinamiza. A Neo-Penélope não espera por nenhum herói – Ulisses, Cavaleiro Andante, Príncipe Encantado – nem considera obrigatório ser esposa de ninguém. Mas isso não quer dizer que tenha desistido de amar.
Ana Marques Gastão: O seu desenho, que ilustra a capa, contém a desconstrução e a fragmentação, qualquer coisa das damas japonesas e do “seu secular
117sequestro”, o erotismo, algo da arte funerária cicládica. A figura, andrógina, não tem olhos nem boca. Fala mudo?
Ana Hatherly: Exactamente. É uma postura caracteristicamente feminina. Ana Marques Gastão: Traz dentro de si a sátira, raríssima na poesia feminina, produto também da sua ligação ao Barroco, no qual se especializou... |
Ana Hatherly: A sátira, um género antiquíssimo, assim como a ironia – afiado gume da crítica elegante – são recursos estilísticos que eu aprecio muito e pratiquei largamente na minha escrita criativa, de que são exemplo, entre outros, O Mestre (1963), Anagramático (1965-1970) e as 463 Tisanas (1969-2006). Na sua forma nobre, são raros na literatura prtuguesa e, de facto, quase inexistentes na literatura feminina. É mais um dos aspectos em que a minha obra é uma excepção.
Ana Marques Gastão: Numa linha de coerência com toda a sua obra, A Neo-Penélope é, de algum modo, uma partitura, com três andamentos. No primeiro ciclo de poemas, faz o retrato do temperamento feminino, da subtileza à audácia, da paixão à crueldade, do corpo-alma à sombra-luz. Que levou a fazê-lo?
Ana Hatherly: Tem, de facto, essa semelhança estrutural. As três partes em que está composto o livro correspondem ao que poderá descrever-se como três andamentos de uma partitura musical. Como já foi observado por alguns estudiosos da minha obra, o pensamento musical tem nela uma presença estruturante, vejam-se por exemplo as 31 Variações sobre a Leonor de Camões. Em A Neo-Penélope esse aspecto é também muito claro. Utilizei-o porque o considerei funcional.
Ana Marques Gastão: Partindo da fábula de Alice – a que não são alheios os estudos psicanalíticos –, faz, no segundo andamento (Alice no país dos anões), um mínimo tratado poético sobre a visão masculina tradicional sobre a inocência da mulher. Alice como paradigma. Que país dos anões é este de que fala?
Ana Hatherly: De facto, a minha abordagem actual da fábula de Alice tem muito a ver com os estudos críticos e psicanalíticos feitos em Inglaterra na década de 1970, que eu agora reli, nos quais é analisada a vertente lúbrica que nela se pode encontrar, como aliás em outros exemplos de literatura infantil tradicional. Na Neo-Penélope, Alice surge como paradigma de uma certa atitude masculina em relação à mulher, que busca na imagem da sua inocência o reforço da sua prepotência. Quanto ao país dos anões, preciso lembrar que O País das Maravilhas sem que Alice é lançada é
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um país do absurdo, um país do non sense em que ela sofre e até chora um lago de lágrimas.
Ana Marques Gastão: Alice não quer pertencer ao sonho de outra pessoa, não deseja ser majorette, resiste dolorosamente, está cansada dos “petites apetites” dos malévolos anões, dos pedófilos disfarçados. Quem é esta menina-mulher?
Ana Hatherly: É a Neo-Penélope. É a criança que acordou. A criança que se tornou adulta e não quer pertencer à coutada do homem insensível onde apascenta as coelhinhas que colecciona. Também não quer ser nem menina-tonta, nem Lolita, nem Barby.
Ana Marques Gastão: O terceiro andamento (Epigramas e sátiras) dir-se-ia uma jocosa crítica social na qual até subverte mitos como o de Ícaro? Concorda?
Ana Hatherly: Toda a sátira implica crítica a determinados aspectos da sociedade contemporânea. Abordo, neste livro, algumas das suas facetas violentas. Quanto a Ícaro, transformando-o em trapezista, salvo-o de afogamento, mas coloco-o no arriscado baloiço do equilíbrio instável…
Ana Marques Gastão: A Neo-Penélope move-se no domínio da contemporaneidade, tal como demonstram Carta de Amor em Metáfora de Automóvel ou Carta de Amor Informático. Sempre a transgredir?
Ana Hatherly: Na Carta de Amor em Metáfora de Automóvel (que neste caso é a Musa da História), transformo com o modelo tradicional da “queixa de amor” numa criação neobarroca contemporânea. Na Carta de Amor Informático, o vocabulário usual da queixa de amor é violentamente transposto para um léxico típico do século XXI.
Ana Marques Gastão: É como se, neste livro, na reformulação da tradição, se fizesse uma síntese de todas as suas preocupações: o desejo, o amor, a improbabilidade, o desaparecimento, a morte, a escrita, o fantasma, a transgressão. A Neo-Penélope é um labirinto em que nem a questão do Mestre fica de fora?
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Ana Hatherly: O jardim secreto é uma encantadora metáfora de uma realidade terrível.
Ana Marques Gastão: É isso que fazem alguns grandes artistas: apropriam-se dos símbolos, dos mitos e sobre eles erguem a sua obra?
Ana Hatherly: Sim, como já em outro lugar eu disse, o poeta, como emblema do criador, persegue todos os símbolos, todos os vestígios, ou seja, toda a memória que corre no seu sangue, e para além do espelho inventa o inaudito.
Ana Marques Gastão: Ana Hatherly é como o gato de Cheschire? Desaparece, de súbito, mas deixa ficar atrás de si um sorriso?
Ana Hatherly: Sou a gata.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero8/jose.htm
Número 9 (2008) - ISSN 1981-870X