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REPRESENTAÇÕES DO FEMININO EM DOM CASMURRO:
O SILÊNCIO DE CAPITU1
Linda Catarina Gualda2
(UNESP/ Campus de Assis)
lindacatarina@hotmail.com
Resumo:
No romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, Capitu faz referência a uma construção social que tem a ver com a distinção masculino/feminino, colocando a mulher numa posição de inferioridade e veiculando uma imagem negativa dessa mulher – adúltera. Vista pelos críticos como o motivo da ruína emocional do narrador, Capitu é um produto do discurso falocêntrico, o qual enxerga a mulher a partir de uma cultura patriarcal impregnada de valores que só a desmerecem. Propomo-nos a examinar até que ponto a mulher está sujeita a um sistema moral, de que ela participa de forma passiva, na medida em que não detém a palavra, mas ao contrário é falada.
Palavras-chave: Capitu, representação do feminino, silenciamento de mulheres, Dom Casmurro.
Abstract:
In the novel Dom Casmurro, of Machado de Assis, Capitu refers to a social construction that is related to the distinction between masculine/feminine, which includes the woman in an inferior position and projects a negative image of this woman – adulterous. Seen by the critics as the reason for the narrator emotional ruin, Capitu works as a product of the phalocentric discourse that sees the woman from a patriarchal culture supported by values that only demoralize her. Our intention is to examine to what extent the woman is subject to a moral system, where she participates passively, since she does not have the word, but on the contrary she is spoken.
Key words: Capitu, feminine representation, women silence, Dom Casmurro.92
Considerações iniciais
Já é consenso que Machado de Assis é sem dúvida o maior escritor da literatura brasileira e talvez, por isso, um dos mais estudados. Criou um método inigualável de investigar a alma humana, compondo personagens que refletiam nossa condição e problematizavam nossa conduta perante a vida. Dom casmurro, romance pertencente à segunda fase machadiana – a também chamada fase madura do autor – coleciona inúmeros títulos, artigos e trabalhos, principalmente no que tange à questão da culpabilidade da principal personagem feminina. Apesar da imensa gama de pesquisa, escolhemos justamente a mesma mulher – Capitu –, mas não nos interessamos por esse tema já amplamente vasculhado. Se Capitu é inocente ou culpada não coube a nós inquirir; centramos-nos à sua representação dentro do romance considerando a ambigüidade narrativa. Nesse sentido, este artigo se justifica por termos escolhido um tema ainda não devidamente estudado ou não como merecia ter sido feito. Existem apenas análises esparsas e gerais acerca da atuação dessa personagem na obra e não de sua construção, carregada de ideal feminino e concebida por um homem. Tampouco há estudos que consideram a estratégia adotada pelo narrador como elemento principal para a efetivação de uma ambigüidade estrutural, que reflete intimamente na visão de mulher que nos é apresentada e tida como natural.
Fomos norteados pela busca em mostrar o que há de específico na obra, já que acreditamos estar diante de um texto que não capta apenas a alma da mulher, mas também transfere essa criação para a superfície da palavra com a qual o enredo, narrado em primeira pessoa, se constrói. Estudamos até que ponto a mulher está sujeita a um sistema moral, de que ela participa de forma passiva, na medida em que não detém a palavra, mas ao contrário é falada. Sabendo-se que é através da linguagem que se instaura toda forma de poder, procuramos destacar na narrativa algumas formas de discursos mistificadores de que nossa personagem é vítima.
1. O olhar estrábico de Bento Santiago: imagens de Capitu
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sancionam estruturas patriarcais, ou seja, a mulher objeto olhado, falado, desejado e consumido, coexiste com a mulher agente do discurso” (SCHMIDT, 1999, p. 24).
Durante muito tempo, Capitu foi vista pelos críticos como o motivo da ruína emocional do narrador. Acusada de trair o marido com o melhor amigo dele e, pior, de enganá-lo com um filho ilegítimo, foi encarada como o protótipo da mulher devassa, sem caráter e impostora. Os exemplos desse tipo de análise são vastos, todos embasados na esperteza da personagem desde sua meninice, qualidade esta narrada por Bento, um homem amargurado e pouco confiável. Alfredo Pujol, a exemplo de tantos outros, não escapa a esse tipo de juízo e em sua obra Machado de Assis condena Capitu. De acordo com ele, “Capitolina – Capitu, como lhe chamava em família – traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim dizer, instintiva e talvez inconsciente” (1934, p. 238). O crítico vai mais além e arrasa a personagem.
Ardilosa e pérfida, acautelada e fingida, Capitu soube ocultar aos olhos do marido a sua ligação criminosa com Escobar. A verdade aparece a Bentinho esgarçada, a espaços, pelos fios tenuíssimos de coisas mínimas, que ele compara umas às outras, nas suas noites de insônia (PUJOL, 1934, p. 247-8 – grifo nosso).
Astrojildo Pereira (1959, p. 24) também não foge à regra, já que para ele Capitu é a “soma e fusão de múltiplas personalidades, espécie de supermulher toda ela só instinto metida na pele de uma pervertida requintada e imprevisível”. E acrescenta que “a sua dissimulação arrasa tudo, e o desfecho do seu caso vem a ser uma consolação bem melancólica de um mundo arrasado”.
Aí estão as imagens de mulher: ardilosa, pérfida, fingida, pervertida e dissimulada e é essa mulher que merece um fim “consolador”: o exílio seguido da morte. Na visão desses autores, “tudo deveria ser calmo, tranqüilo e suave, como a própria imagem da mulher que a sociedade produzia e cultuava” (WANDERLEY, 1996, p. 51). Para eles, determinadas características são inerentes à “feminilidade”: refinamento, tato, observação, sentimentos; enquanto outras – abstração, humor, poder, força – são qualidades meramente masculinas. Capitu foge desse modelo de mulher e, justamente por isso, merece, então, ser expulsa de casa simplesmente por ser forte. Na verdade, a personagem paga caro por não se adequar a esse modelo misógino: expressa seus sentimentos e não se contenta com a reclusão do círculo familiar.
Do ponto de vista físico, Capitu é descrita em linguagem de passaporte: “morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o queixo94
largo”3 (ASSIS, 1997, p.53); do ponto de vista moral, é um enigma, pois seu retrato fora traçado por um homem que nunca a entendeu. “Mas é possível que fosse apenas uma mulher que soube encantar o marido a ponto de prejudicar seu equilíbrio diante da vida” (TEIXEIRA, 1988, p. 131-2). A personagem problemática do romance é Bentinho, Capitu tornou-se mais famosa enquanto criação literária porque soube preservar toda sua paixão e mistério no narrador.
Há muitas passagens no romance caracterizando Capitu e a partir de agora analisaremos algumas delas a fim de definir o padrão de mulher que o autor desejava veicular através de um narrador que nos empurra suas impressões. No 32º capítulo, encontramos a famosa passagem que discorre sobre os “olhos de ressaca” de Capitu. A cena é belíssima e podemos afirmar que possui um toque mitológico, fazendo com que a moça se transforme em uma verdadeira deusa.
(...) Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me (ASSIS, 1997, p.85).
A força que emana dos olhos de Capitu só é comparável à sua força enquanto mulher. Com o propósito de verificar se a vizinha tinha realmente os “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” como lhe advertira José Dias, Bentinho resolve mirá-los não imaginando o que iria enfrentar. No início, reconhece a cor e a doçura que tão bem admirava, mas depois sente que é incapaz de desviar o olhar. A partir desse momento, o contar dos fatos se encerra (já não há mais o diálogo a respeito de sua ida ao seminário e este só retorna no momento em que Bento desvia os olhos de Capitu) e a narração flui como um delírio: ele esquece tudo e se fixa no olhar da garota que permanece imóvel. Seu delírio é tão intenso que Bentinho não encontra palavras para expressar “o que foram aqueles olhos de Capitu”: “Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram” (ASSIS, 1997, p. 85)
Outra maneira de caracterizar Capitu é a que encontramos no 34º capítulo que faz referência à entrada da mãe na sala imediatamente após o primeiro beijo de Bentinho e Capitu. A narração da cena é longa, porque se inicia na casa da menina e termina no quarto do garoto relembrando o momento do beijo: ”outra vez senti os beiços de Capitu”.
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Ouvimos passos no corredor; era D. Fortunata. Capitu compôs-se depressa, tão depressa que, quando a mãe apontou à porta, ela abanava a cabeça e ria. (...) Assim, apanhados pela mãe, éramos dois e contrários, ela encobrindo com a palavra o que eu publicava pelo silêncio (ASSIS, 1997, p. 87-8).
Note que Bento fica completamente atordoado e por isso não se mexe nem profere palavra alguma, optando pelo silêncio que o denuncia. Por outro lado, Capitu consegue se recompor imediatamente e isso o assusta porque lhe parece estranho que a menina possua a capacidade de fingir, de mentir, de encobrir verdades. E é a imagem de mentirosa e fingida que o narrador passa ao leitor, de que Capitu é rápida e hábil o bastante para se sair de uma situação embaraçosa “encobrindo com a palavra” o que deveria ser ocultado. O sentimento épico que se instala em Bentinho ao chegar à casa e sentir-se homem por ter beijado Capitu (“O gosto que isso me deu foi enorme. Colombo não o teve maior, descobrindo a América, e perdoai a banalidade em favor do cabimento...” – ASSIS, 1997, p. 89) faz parte de uma armadilha narrativa para nos mostrar que sua futura esposa já possuía desde menina o germe da falsidade, o caráter pérfido. O que ele não mostra é a sua covardia, a sua incapacidade de saber lidar com situações adversas e nem de aceitar que uma mulher se saia melhor do que ele em momentos delicados.
Ainda no que tange à caracterização de nossa protagonista, o 113º capítulo deixa clara a obsessão de Bento Santiago pela mulher. Ao discorrer sobre sua atitude em relação à Capitu após a chegada do filho, Bento afirma que o menor gesto o afligia e que não descuidava da esposa: “(...) cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança” (ASSIS, 1997, p. 204). Seu grande temor era que Capitu gostava de ser vista e, mesmo sendo visto também, não tinha olhos para outra.
Naquele tempo, por mais mulheres bonitas que achasse, nenhuma receberia a mínima parte do amor que tinha a Capitu. À minha própria mãe não queria mais que metade. Capitu era tudo e mais que tudo; não vivia nem trabalhava que não fosse pensando nela. Ao teatro íamos juntos; só me lembra que fosse duas vezes sem ela... (ASSIS, 1997, p. 204).
Outra forma de representar Capitu pode ser vista no 18º capítulo, intitulado “Um Plano”. Ao contar para Capitu sua ida forçada ao Seminário, Bento percebe que, a princípio, Capitu emudece e fica paralisada com a notícia:
Capitu não parecia crer nem descrer, não parecia sequer ouvir, era uma figura de pau. Quis chamá-la, sacudi-la, mas faltou-me ânimo. Essa criatura
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que brincara comigo, que pulara, dançara, creio até que dormira comigo, deixava-me agora com os braços atados e medrosos (ASSIS, 1997, p.60).
Contudo, de repente, a situação muda: num rompante de raiva Capitu explode e acaba ofendendo a mãe de Bento, responsável pela ordem de torná-lo padre. Atordoado, Bentinho não entende porque tanta fúria, mas acaba acreditando que ela agira daquela maneira por gostar demais dele, não desejando sua partida para longe. Vejamos a cena.
- Beata! carola! papa-missas!
Fiquei aturdido. Capitu gostava tanto de minha mãe, e minha mãe dela, que eu não podia entender tamanha explosão. É verdade que também gostava de mim, e naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, coisa bastante a explicar o despeito que lhe trazia a ameaça da separação; mas os impropérios, como entender que lhe chamassem nomes tão feios, e principalmente para deprimir costumes religiosos, que eram os seus? (...) Quis defendê-la, mas Capitu não me deixou, continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz tão alta que tive medo fosse ouvida dos pais. Nunca a vi tão irritada como então; parecia disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a cabeça... Eu, assustado, não sabia que fizesse; repetia os juramentos, prometia ir naquela mesma noite declarar em casa que, por nada neste mundo, entraria no seminário (ASSIS, 1997, p.60-1).
Qualquer um percebe que Capitu não gostou da notícia e, mais do que isso, ficou furiosa, uma atitude muito natural para alguém que acabara de saber estar apaixonado. Mais natural ainda para adolescentes que, além de terem oscilação de humor, acham que sabem e podem tudo. Todavia, Bentinho não demonstra entender isso e não deixa em sua narrativa o ar da naturalidade, ao contrário, se assusta, diz que não reconhece a vizinha e nos deixa a impressão que Capitu é agressiva e descontrolada. Esse tipo de representação do feminino, de uma mulher que toma o homem de assalto, que o surpreende por alguma característica ou atitude negativa e mesmo prejudicial, pode ser percebido durante toda narrativa: a força de Capitu se transforma em algo perigoso e, por se tratar ainda da primeira parte do romance, sabemos que o narrador está construindo o alicerce para edificar sua teoria de ter sido traído por uma mulher que, segundo ele, já dava sinais de autoritarismo, controle da situação e engenhosidade. Mais uma vez fica nítido o contraste entre a capacidade de Capitu em lidar com adversidades, ou então, de mostrar seus reais sentimentos num momento inesperado e a letargia de Bentinho que, por não conseguir pensar em nada, opta por ficar paralisado, mudo e aturdido.
Tudo isso deixa claro que Machado de Assis optou por imagens fortes para se referir à personagem mais enigmática do romance: escolheu os olhos, aqueles capazes, segundo a tradição literária, de captar a essência das pessoas, partindo do pressuposto de que os olhos são os espelhos da alma. Entretanto, as imagens que a tornaram popular
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não a caracterizam propriamente: referem-se a ela, embora defina duas outras personagens – José Dias e Bentinho. O primeiro a considera falsa, interesseira e, por isso, diz que seus olhos são “de cigana oblíqua e dissimulada”; já o segundo se arrebata por ela e, por essa razão, os chama de “olhos de ressaca”. Em nenhum dos casos temos os olhos propriamente ditos, apenas as impressões que estes causam em diferentes personagens. Isso acontece porque o uso da metáfora em Dom Casmurro define certos estados de alma do narrador, o qual traduz em imagens concretas o jogo escondido do pensamento ou do sentimento que se desenvolve em seu âmago. A obra é fundamentalmente ambígua, constituída por uma pluralidade de significados que convivem em um só sentido. Tal obra pode lograr o máximo dessa ambigüidade de acordo com a intervenção ativa do leitor.
Na verdade, o tema sintetizado pela metáfora concorre para dar à realidade subjetiva e poética do romance sentidos múltiplos, que se tornam tão oblíquos como os olhos que o agregado insistia em ver em Capitu. As representações do romance através de imagens, metáforas e símbolos, sob seus variados aspectos, deixam evidente que a mórbida emotividade de Bentinho prende-se a um contraste de valores. Isso pode ser percebido no 31º capítulo em que confessa que Capitu era mais mulher do que ele era homem. Há ainda outros exemplos: a adolescência que aparece como um período de descoberta e euforia passageira, a casa como solidão e refúgio, a velhice como paz e tédio, a pseudo-autobiografia como consolo e justificativa e Capitu como desejo e ciúme. Por esse modo, a protagonista é
submetida a um processo sagacíssimo de despersonalização, que duplica os atrativos da mulher incorporando-a, simultaneamente com o mar, ao mito do Eterno-Feminino. A metáfora-adjetivo – “olhos de ressaca” – tem, afinal, efeito preconcebido sobre a psicologia de Capitu muito característico da realidade oscilante da obra, produto de uma imaginação que o pseudo-autor designa com outra metáfora da mesma filiação: “égua ibera”. E ambas as metáforas são inteiramente responsáveis pelo subjetivismo tendencioso e unilateral disseminado por toda a narrativa. (GOMES, 1967, p. 102).
2. O retrato de Capitu: a construção de um monstro
Como já dissemos anteriormente, o romance traz um retrato feminino feito por um homem, que traça o perfil das duas mulheres de sua vida – a mãe e a esposa –, com dois conceitos simplistas e redutores: santa e infiel. Daí a ambigüidade depende da maneira como o marido vê Capitu. “Além disso, sendo um retrato moral, jamais poderia ser preciso” (TEIXEIRA, 1988, p. 123).
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De acordo com Roberto Schwarz (1997, p. 24-5), Capitu satisfaz todos os quesitos da individualização, justamente por não fugir da realidade para a imaginação, por não se dar ao luxo de fantasiar. De acordo com ele, a personagem é forte o bastante para não se desagregar diante da vontade patriarcal, superior. “Embora emancipada interiormente da sujeição paternalista, exteriormente ela tem de se haver com essa mesma sujeição, que forma o seu meio”. Seu encanto se deve principalmente ao fato de ela ser capaz de transitar no ambiente que superou e o fazer com intensa naturalidade.
Entretanto, desde que entrara no meio social de Bentinho e não possuindo permissão para se casar, coloca-se numa posição bastante delicada ao se apaixonar pelo chefe da família. Por essa razão, “Capitu é literalmente incapaz de agir conforme seus interesses, pois toda declaração de sentimentos verdadeiros será inevitavelmente interpretada como ambição” (GLEDSON, 1991, p. 68). Pensando nisso, não há como negar que para Machado o amor não é uma emoção que possa ser isolada das pressões sociais. Em suma, este é o dilema de Capitu: ao ser adotada por Dona Glória por razões pessoais, não pode se abrir por medo de ser considerada interesseira e seus impulsos, seu silêncio e suas aparentes contradições podem ser o resultado dessa situação ambígua ou a maneira pela qual consegue existir num meio que não lhe pertence.
A inocência de Capitu e Bento se baseia numa ilusão, porém Bento jamais se livra dela, acreditando que o amor pode superar todos os obstáculos. Sua falha está no fato de não perceber que há uma escolha a ser feita: sente-se atordoado quando Capitu insulta sua mãe, mas evita o problema quando sua namorada o faz enxergar que precisa escolher. Incapaz de encarar a verdade ou a realidade, Bento se satisfaz com sua própria versão delas, “e assim se torna a vítima, bem como o criador de seu ponto de vista sobre a própria existência, e sobre a de outros – ponto de vista organizado, metafórico e aparentemente verdadeiro, mas falso” (GLEDSON, 1991, p. 70). Isso porque sua imaturidade decorrente de uma criação superprotetora, além de impedi-lo de optar por outros caminhos, desempenha importante papel em sua ruína.
A narrativa de Machado joga com os valores culturais e sociais vigentes, isto é, a condição feminina apresentada é clara: está presa ao estabelecido, conserva o padrão; mas no discurso reservado, no fluxo do pensamento, as suas personagens refutam, questionam os papéis que lhes são destinados na sociedade brasileira. Capitu é um exemplo de mulher que transcende a definição de esposa, mãe e ao mesmo tempo o estereótipo de mulher. Ela busca uma maneira de transpor o estabelecido; luta por emancipar-se, pois está cansada das obrigações sociais e familiares que lhe são impostas; quer experimentar algo que saia de si própria. De fato, a heroína pode ser também um exemplo da humanidade aterrorizadora, porque permanece incognoscível
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ao ser apresentada através da visão doentia e perturbada de Bento Santiago. Este, como vítima de sua própria retórica e de visão distorcida da realidade, está no plano da imaginação e pode ser encarado como um perdedor.
Capitu representa a mulher emancipada, a que se coloca tanto no plano espiritual, quanto no sexual e se mantém ativa, nunca passiva, apesar de não ser detentora da palavra. Seu traço mais pertinente é uma independência quase intrínseca à sua natureza, uma capacidade de não se deixar subjugar. Há uma leveza, uma espontaneidade em seu espírito que a coloca acima dos papéis que lhe eram reservados na cultura e na sociedade a que pertencia.
Podemos perceber ao longo de nosso trajeto que a construção da figura de Capitu é intencional como montagem de uma armadilha narrativa. Certas características sugeridas na primeira parte do romance têm o papel de apoiar a traição que o narrador da segunda parte nos empurra. Ao longo desse percurso, o objetivo de Bentinho parece ser o de caracterizá-la como uma jovem voluntariosa, ativa, extremamente racional, calculista, capaz de lidar facilmente com situações embaraçosas e que está disposta a tudo para atingir suas metas – o casamento com alguém de uma classe social mais elevada. Toda a caracterização de Capitu por Bentinho parece fazer parte de um projeto narrativo interessado, que tem propósitos específicos e se rege por uma sucessão de forjadas evidências interligadas. Nesse retrato cresce a imagem de Capitu construída por José Dias – “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” – que será corrigida por Bentinho, num lance que aprofunda o caráter enigmático e talvez destrutivamente sedutor que este quer atribuir à companheira, para “olhos de ressaca”. Uma imagem que lhe interessa compor no sentido de confirmar o posterior – e suposto – adultério.
O que se pode dizer é que o narrador montou sua narrativa de modo a fazer caber na Capitu de Matacavalos a Capitu adúltera da Glória e a fez parecer como um ser reprimido, sem contorno e silenciado. É bem verdade, que na segunda parte do romance, Capitu vai esvaziando gradativamente e a esterilidade do ato amoroso emblematiza o descentramento da paixão. Isolada na própria casa, desacreditada e acusada sem provas, o silêncio é a arma que escolhe para não se entregar às neuroses do marido e também é a única possibilidade que o narrador lhe garante, a fim de não tirar a validade de sua teoria. Dessa forma, silenciado o monstro, Bento Santiago pode falar o que bem lhe aprouver já que detém a palavra, pode engendrar as mais profícuas teses, porque não há quem o conteste, não há outro ponto de vista, é o senhor soberano de sua narrativa e, por isso, sua “verdade” é única.
A história de Capitu é contada por outro que, além de não lhe dar voz, a constrói segundo sua ótica misógina, aquela que vê a mulher como boa ou má, santa ou100
prostituta. Na Idade Média já existia um discurso domesticado da mulher que fundia a imagem da bruxa na da Virgem Maria, logrando criar um modelo binário, detentor do bem e, ao mesmo tempo, de uma potência do mal. As situações vividas pela personagem mostram que sua voz fora silenciada pela dignidade ferida, que se arquiteta a partir de uma dúvida jamais esclarecida. Movida pelo orgulho e pelo respeito à sua condição, Capitu se transforma em fantasma de si mesma e o silêncio é seu único refúgio. De fato, a mulher em Dom Casmurro parece presa numa redoma que paralisa suas ações e limita suas trajetórias.
Considerações finais
Podemos dizer que Capitu é uma personagem emblemática: representa a força ferida, a mulher punida. De origem humilde, provoca paixão no vizinho rico e a partir daí recaem suspeitas sobre sua inocência. Prefere a morte a revelar se cometera ou não adultério. Assim como muitas outras personagens femininas (Helena, Jane Eyre), Capitu é uma moça pobre que alcança a estima e até o amor da família e do homem que a acolhe. Dotada de inteligência, sensibilidade, dignidade e beleza, ela não deixa de pertencer ao espaço do agregado, da dessemelhança, já que sente na pele o paternalismo nas relações e o direito de mando sobre si. Sua voz é embargada “pela susceptibilidade que atormenta os que vivem sob o domínio das relações de favor” (WANDERLEY, 1996, p. 73). Capitu abdica do amor do marido, da vida estável na capital do Império e da própria vida, em favor da honra e da dignidade pessoais. O esmagamento lento mas inexorável da personagem se assemelha à destruição do inocente Bentinho transformando-o no desagradável Dom Casmurro.
Mesmo Machado sendo um defensor das idéias femininas, ainda não havia espaço para o questionamento da condição da mulher na puritana e moralista sociedade da época. É nesse pano de fundo que surge Capitu, a metáfora da exclusão da voz e do direito à defesa, mostrando que numa sociedade exigente do comprimento do paradigma de valores fixos atribuídos ao feminino, a mulher infratora deve ser condenada à pena do exílio. Há claramente uma tentativa de silenciar a mulher, reprimindo sua experiência numa visão alienada, mentirosa e degradante.
Em outras palavras, Machado de Assis perpetua a construção da mulher dentro de um espaço restrito e lança seu olhar para comportamentos e fatos ocorridos no ambiente doméstico. Tal olhar mostra o não-estar feminino no mundo, ou seja, sua ausência no lugar social de prestígio e também o seu não-saber, sua incapacidade moral e intelectual. Nesse sentido, a mulher é vista superficialmente, já que os eventos se101
desenrolam num universo feminino limitado e sempre retratado como um ambiente negativo e inferior. Na obra fica evidente que a ausência da mulher no campo pertencente ao homem – o meio externo, visto como superior – detecta preconceitos que norteiam o comportamento feminino na sociedade. Em Dom Casmurro apresenta-se a sociedade patriarcal e reacionária, na qual inevitavelmente é reservado à mulher o papel de sombra silenciosa ou mero acessório. Capitu sofre uma repressão tão violenta que culmina em sua condenação: a perda total da palavra e a solidão do exílio.
Talvez o fato mais importante na elaboração do retrato da passividade feminina imposta pela cultura patriarcal seja a incapacidade de a mulher assumir a palavra para falar de si mesma e de suas necessidades. No caso de Dom Casmurro, vemos que da palavra cassada, Capitu tem a vida cassada, de tal forma que, mesmo muda, a personagem acaba interiorizando uma linguagem que não é a sua própria, mas uma linguagem autoritária que a reduz ao silêncio. Podemos acrescentar que Capitu só tem possibilidade de ocupar um espaço dentro da sociedade em que vive se este lhe for reservado pela expectativa criada por uma ideologia autoritária e patriarcal, em outras palavras, não é possível sair de seu espaço fechado para investir seu desejo e suas pulsões num mundo mais amplo do trabalho e da realização pessoal.
Referências bibliográficas:
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GLEDSON, John. Machado de Assis: impostura e realismo: uma reinterpretação de Dom Casmurro. Tradução de Fernando Py. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
GOMES, Eugênio. O enigma de Capitu. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
PEREIRA, Astrojildo. Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.
PUJOL, Alfredo. Machado de Assis. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1934.
SCHMIDT, Rita Therezinha. Recortes de uma história: a construção de um fazer/saber. In: RAMALHO, Christina (Org.). Literatura e Feminismo: propostas teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Elo, 1999. pp. 23-40.
SCHWARZ, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras 1997.
TEIXEIRA, Ivan. Apresentação de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
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WANDERLEY, Márcia Cavendish. A voz embargada: imagem da mulher em romances ingleses e brasileiros do século XIX. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.
1O presente artigo é um recorte de um dos capítulos de minha dissertação de mestrado defendida em janeiro último e intitulada “Representações do feminino em Dom Casmurro e The Turn of the Screw”.
2Mestre pela UNESP/ Campus de Assis e aluna do curso de doutorado pela mesma instituição; professora efetiva da Rede Estadual de Ensino na cidade de Limeira/SP, onde ministra aulas de Língua Portuguesa e Língua Inglesa.
3Todas as citações do romance Dom Casmurro são extraídas de ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero8/jose.htm
Número 9 (2008) - ISSN 1981-870X