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DE CLAUSURAS E DE PAIXÕES OU DE PAREDES E DE FLORES: UMA LEITURA DAS NOVAS CARTAS PORTUGUESAS
Claudia Amorim
(UERJ)
Resumo:
Este artigo faz uma leitura do romance Novas cartas portuguesas, publicado em 1972 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, enfatizando especialmente a intertextualidade que o romance apresenta com as Lettres portugaises traduites en français, obrasurgida no século XVII, cujas cinco cartas foram atribuídas à freira Mariana Alcoforado, e também com outras produções literárias portuguesas que tratam do universo feminino.
Palavras-chave: intertextualidade, romance contemporâneo, escrita
Résumé:
Ce travail fait une lecture du roman Novas cartas portuguesas, publié en 1972 pour Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta et Maria Velho da Costa, avec emphase surtout sur l’intertextualité que l’ouvre present avec les Lettres portugaises traduites en français, apparue au diz-séptièmme siècle donc les cinc lettres sont atribuits à la soeur Mariana Alcoforado, bien comme dautres productions litteraires portugaises que parlent d’univers féminin.
Mots-clés: Almeida Garrett; José Saramago; travel; History; national identity.
DE PAREDES E FLORES
de palavras se adiam (palpam) dores
e de paredes se rodeiam floresde flores se munem as palavras
que içam fogos
e de muros se alteiam
os lugares de amores(...)
qual de nós de seiva (em sangue)
emparedadas flores (NCP, 1974, p. 230)
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Dois anos antes da Revolução dos Cravos, que pôs fim a uma ditadura de quase meio século em Portugal, publicaram-se as Novas cartas portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. Traduzidas em dez línguas, as Novas cartas tecidas a três têm como fio condutor as cinco cartas de amor atribuídas à sóror Mariana Alcoforado, freira que viveu em Beja, nascida em 1640 e falecida em 1723. Publicadas em francês pela primeira vez no ano de 1669, quando ainda viviam Mariana Alcoforado e o destinatário das cartas, o francês Nöel de Chamilly, as Lettres portugaises traduites en français expõem a paixão desta freira pelo francês, com quem teria vivido um breve romance à época em que este servira em Portugal.
Não é nosso objetivo aqui discutir a polêmica que envolve a autoria das cartas portuguesas também atribuídas ao conde Gabriel de Guilleragues, durante muito tempo considerado o tradutor francês dos textos. Muitos estudiosos debruçaram-se sobre a questão e o problema da autoria ainda hoje não foi solucionado.
Nas Novas cartas, Mariana é personagem resgatada, inventada e, tomada como mote é também a escrita que dela fez sujeito:
(...)Se tome Mariana que em clausura se escrevia, adquirindo assim sua medida de liberdade e realização através da escrita; mulher que escreve ostentando-se fêmea enquanto freira, desautorizando a lei, a ordem, os usos, o hábito que vestia. (NCP, 1974, p. 91)
Tomemos Mariana e também as autoras — as três Marias e seus discursos sobre o feminino para ler o contexto em que estas escritas irrompem. As Novas cartas portuguesas publicam-se em 1972, portanto, três séculos separam as autoras e suas realidades da vida de uma freira que viveu em Beja, nos fins do século XVII e que é a autora provável das cinco cartas endereçadas ao amante. No século XVII, havia em Portugal um número muito grande de freiras, geralmente as segundas filhas de famílias não abastadas que então as enviavam para o convento, como forma de garantir-lhes algum futuro. Ao contrário destas, outras mulheres viam no espaço conventual um lugar para se escapar do controle rigoroso dos possíveis maridos a que estariam submetidas pelo casamento. Atrás das paredes conventuais, portanto, algumas mulheres, distantes de um efetivo controle masculino, acabavam por dedicar-se às letras, aos estudos e muitas acabaram mesmo produzindo algumas obras. E por estes e outros motivos, os espaços conventuais tornaram-se os lugares onde algumas dessas mulheres realizaram a vontade de escrever, de saber, convertendo-os também em espaços onde minimamente era possível produzir cultura.
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De lá para cá muita coisa mudou e as mulheres escritoras não precisariam mais viver enclausuradas para exercerem a vontade de escrever. Aliás, o século XX é marcado por uma maior organização da luta das mulheres em prol de direitos não reconhecidos em todos os campos sociais, a começar pela reivindicação do direito ao voto por parte das sufragistas, ainda no início deste.
A literatura e as outras áreas do saber não ficarão omissas diante destes questionamentos. No campo da ensaística, Simone de Beauvoir lança, em 1949, O segundo sexo, obra que discute o lugar da mulher historicamente determinado pela sociedade patriarcal e incita à revisão deste lugar e dos valores preconizados por essa sociedade. Aumenta neste período o número de mulheres escritoras que, assim como os meios acadêmicos e instituições envolvidas nesta questão, buscam redimensionar o papel e o lugar da mulher na sociedade. Neste momento nebuloso — fim da Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria, vozes femininas fazem-se ouvir e algumas escritoras tenderão a assumir uma escrita marcadamente feminina. Em Portugal, podemos citar Maria da Graça Freire e Maria Judite de Carvalho como representantes desta escrita.
O final dos anos 1960 assiste à radicalização da luta pelos direitos da mulher, no momento em que esta luta ultrapassa os muros das universidades e instituições e ganha as ruas. As mulheres realizam alguns atos simbólicos, como o de jogar na lata do lixo da liberdade cintas, pestanas postiças etc., símbolos de uma imagem que precisava ser revista. Outras homenageiam, com uma grinalda, a mulher desconhecida do soldado desconhecido do Arco do Triunfo e, a partir daí, uma série de acontecimentos e atitudes assumidas pelo movimento feminista mudará substancialmente o comportamento das mulheres em quase todo o mundo.
Em Portugal, como em muitos países, algumas escritoras enveredam pela escrita que tematiza o feminino, ao mesmo tempo em que o próprio fazer literário experimenta a desconstrução da linguagem na literatura, tendência que, em linhas gerais, ensaia uma nova escrita num mundo em crise de representação. Entre alguns nomes deste momento, podemos citar: Ana Hatherly, Eduarda Dionísio, Maria Gabriela Llansol, entre outras.
Surgem, então, as Novas cartas portuguesas, desconstruindo pelo questionamento e pela linguagem uma imagem da mulher portuguesa e inventando outra, no momento em que a ditadura salazarista já mostra os sinais de seu esgotamento. Mesmo assim ainda tem força suficiente para processar e condenar as autoras das Novas cartas, que escapam da prisão somente porque dois anos depois eclodia a Revolução de Abril.
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Assumindo uma postura questionadora, esta obra discute o feminino e a opressão imposta durante tantos séculos às mulheres e denuncia o fato de esta opressão ser parte de um sistema todo ele opressor. Para as autoras, falar da situação das mulheres, e não só das portuguesas, é pôr abaixo as estruturas já condenadas de uma sociedade extremamente tirana e conservadora. Por isso, pronunciam-se as autoras no início da obra: “Só de nostalgias faremos uma irmandade e um convento, Soror Mariana das cinco cartas. Só de vinganças, faremos um outubro, um maio, e novo mês para cobrir o calendário. E de nós o que faremos?” (NCP, 1974, p. 9)
Entrelaçam-se aqui o particular e o universal. A história de Mariana das cinco cartas e de seu passado de rebeldia desencadeia nesta narrativa as histórias de tantas mulheres que viveram e ainda vivem sob o signo da opressão. Resgatar a causa das mulheres — simbolizada aqui pela freira que tem voz porque escreve — é também inventar um novo tempo, revolucionário em todos os sentidos.
No entanto, os tempos ainda são incertos e assim inicia-se com muitas interrogações esta escrita cúmplice que, desconstruindo a linguagem para um novo dizer, resgata a história da freira de Beja para inventá-la outra, despida de seu hábito, mulher que se desclausura, subvertendo a ordem, afirmando-se pela paixão e, quem sabe, também pela paixão da palavra: “J`écris plus pour moi que por vous (...).” (ALCOFORADO, 4.ª carta).
Aqui, sóror Mariana Alcoforado das cinco cartas é apenas pretexto, motivação para a leitura da história de tantas mulheres das quais Mariana converte-se em paradigma. São Marias, Anas, Marias Anas, Mônicas e tantas outras, famosas e anônimas; diferentes em suas origens, mas com um destino muito semelhante no que tange à vivência da opressão e à tentativa de se escapar a ela.
Uma das preocupações dos movimentos feministas em geral era o fato de se procurar tornar visíveis as experiências femininas que tinham sido apagadas da história. Seguindo esta linha, o resgate/invenção da história desta freira do século XVII vem mostrar que, da época em que viveu até os dias atuais, algumas conquistas se fizeram, mas a história da opressão vivida pelas mulheres ainda está por ser feita. Todas as mulheres que aparecem nas Novas cartas portuguesas revelam, pela fala e também pelo silêncio, as estruturas sociais profundamente castradoras a que estão submetidas.
Como não poderia deixar de ser, o texto destas falas, obrigadas ao silêncio durante tanto tempo, aparece-nos assim fragmentado, como fragmentado é o nosso tempo, fragmentada a nossa escrita. Assim, as Novas cartas vão se entretecendo de muitos outros textos, quase sempre dirigidos a uma interlocutora, e às vezes a um16
interlocutor, na tentativa talvez de se estabelecer, no mínimo, um diálogo, comprometendo o outro na construção do novo.
Daí que o texto das Novas cartas aparece pleno de bilhetes, poemas, cantigas e naturalmente cartas, assinadas por diferentes pessoas, vozes femininas e também masculinas, que também os homens têm algo a dizer sobre isto. Entre eles, Nöel de Chamilly comparece aqui com cartas e bilhetes a Mariana Alcoforado; não lhe fica, pois, vedada a palavra neste resgate/invenção da história da freira de Beja. Aos poucos, no curso desta nova narrativa epistolar, vai se desdobrando, à medida que novas cartas, bilhetes e demais textos surgem, um painel da vida de diversas mulheres dos nossos e de outros tempos. Aparecem aqui a estudante, a operária, a mulher a dias, a prostituta, a mulher casada etc., todas irmanadas pelo mesmo destino comum que lhes impingiu a sociedade patriarcal. Conscientes ou não das amarras que lhe foram impostas, estas mulheres apontam pelo seu discurso e até, em alguns casos, pela ausência dele a necessidade de construção de uma nova identidade feminina que passará necessariamente pela palavra escrita, mesmo que, a princípio, até isto seja posto em questão: “Mas o que pode a literatura? Ou antes: o que podem as palavras?” (NCP, 1974, p. 263).
Sem respostas prévias nesta aventura discursiva, inscrevem-se as autoras — as três Marias — femininas vozes a desconstruir/construir a memória das mulheres e desta Mariana em particular, não sem antes atentarem para o risco desta aparente brincadeira:
Considerai, irmãs minhas, (...). Considerai a cláusula proposta, a desclausura, a exposição de meninas na roda, paridas a esconsas da matriz de três. Moças só meio meninas bem largadas da casa de seus pais e arrematados já seus dotes em leilão de país. Nem vai ser isto, pois não é? Que vai ser de nós e Mariana depois desta partida, choro de ausência, de laguma falta, falha de Mariana ou quem – ou dela querer sabê-la? (NCP, 1974, p.13).
Devemos ressaltar ainda o fato de as Novas cartas serem fruto de um exercício a três. Entre outras coisas, o ternário é, entre os chineses, o número perfeito, disso resultando que nada lhe pode ser acrescentado. Além disso, o três é revelador por ser a manifestação de uma existência dual: o filho revela o seu pai e sua mãe, convertendo-se no novo, no ser que renova. Nas Novas cartas, as três autoras têm a função de revelar o que fora velado ou desvirtuado; propõem-se, ainda, a inaugurar o novo: uma nova Mariana, mulher de voz própria, fazendo-se existir pela palavra, pela paixão. E esta Mariana, tão plena de paixões, dores, reflexões, escreve ao seu amante, além das cinco conhecidas cartas, nesta narrativa desdobrada em tantas, alguns bilhetes e também a sexta e última carta. Mariana sujeito transborda-se em sua escrita e derrama-se em
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palavras, extensões do seu próprio corpo. “Escrevi-vos cartas de grandes amores e penares, Senhor, e de tanto de vós não ter comércio, pus-me de amá-las e ao gesto de as compor mais que a vossa figura ou memória” (NCP, 1974, p. 33).
Em referência direta às cartas atribuídas a Mariana Alcoforado, as Novas cartas guardam ainda o uso constante da intertextualidade, facilmente verificável na utilização de palavras, expressões e encadeamentos sintáticos encontrados nas cartas do século XVII. Além disso, a intertextualidade se faz presente ainda pelo diálogo deste com outros textos da literatura e até com personagens reais ou fictícios da história e da cultura portuguesas como é o caso, por exemplo, do poema que homenageia Inês de Castro, ou ainda do poema cujo incipit é “Por virtude do muito imaginar” que traz em suas entrelinhas o texto camoniano. Não faltará, ainda, neste percurso, uma cantiga de amigo à maneira de lamento, feita esta sim por um sujeito feminino:
Me tomam por tomada
a mim se dou
meu peito e meu convento
em troca de mais nadaque alheava andava
tão alheada andavaMe davam por freira
conformada
no hábito que habito
ou habitavaque alheada andava
tão alheada andava
(...). (NCP, 1974, p.73).
Seguem de perto as três Marias a desclausura de Mariana, convertida, pela paixão, em sujeito desejante, corpóreo, invertendo o lugar de objeto do desejo tradicionalmente associado às mulheres. A Mariana das Novas cartas, movida pela paixão, descobre o próprio corpo:
De subido se despe Mariana para mãos que a firam, a provoquem, a desvariem na sua própria descoberta. Não sei se sonsa como afirmas nas cartas, se esperta na lástima ostentada, assim se desculpando, se ilibando, apossando-se, todavia, do cavaleiro, servindo-se dele como alimento da sua paixão, sustento da sua liberdade. (NCP, 1974, p. 44)
Porque de mulher se trata, presente está nas Novas cartas a sexualidade feminina. Franqueada a palavra, o corpo, ou antes, o discurso feminino sobre o corpo, explora-o, descobre-o em seus mistérios, rompendo com o fato de a palavra da mulher
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sobre a sua sexualidade lhe ter sido negada durante tanto tempo em nome de uma moral imposta pelos discursos religioso e burguês, aliados em seus objetivos comuns de aproximar mulheres e homens da Igreja e do trabalho, respectivamente, negando-lhes, e principalmente às mulheres, o direito ao prazer.
A clausura do convento vivida por Mariana simboliza o impedimento, a privação da liberdade, a negação a ela imposta e, por extensão, às mulheres, de tomarem posse do próprio corpo. A Mariana do século XVII nos fala da paixão essencialmente, a Mariana das Novas cartas, resgatada pelas três Marias, descortina-nos sobretudo o seu desejo. Misturam-se as falas é verdade, porque a paixão não exclui o desejo e vice-versa. Mas inegavelmente esta nova Mariana expõe seu corpo porque a própria fala feminina ganhou mais contornos, mais firme está e de certo modo, coletiva se torna, fruto dos novos tempos.
E aqui é preciso ressaltar ainda o caráter transgressor do discurso que elabora a sexualidade, o erotismo, sendo este discurso antes de tudo um conhecimento, um saber cuja natureza é dual, pois diz respeito à individualidade e à constituição da diferença, que só se realiza no contato com o outro. O corpo, o próprio e o alheio, é uma ponte para a liberdade, pois que é o primeiro campo de batalha para a afirmação do sujeito.
É inegável que as Novas cartas portuguesas apresentam um novo olhar sobre a sexualidade feminina, configurando a explosão do erotismo na literatura portuguesa. Nesse romance, o suposto romance entre a freira de Beja e o oficial francês, imortalizado pelas cartas a ela atribuídas, é redimensionado em razão de uma fala feminina que não lamenta somente a ausência do amante, mas que se coloca enquanto sujeito desejante, colocando em cena a tematização da sexualidade — feminina e masculina — provocando a gênese de um novo tempo, de um novo conhecimento.
Nas Novas cartas, é Mariana inventada, freira desclausurada, que faz este caminho da descoberta de ser mulher, da descoberta da paixão por si mesma.
Compraz-se Mariana com seu corpo, ensinada de si, esquecida dos motivos e lamentos que a levam às cartas e a inventam. – ‘Descobri que lhe queria menos do que à minha paixão (...)’: – ei-la que se afunda em seu exercício. Exercício do corpo-paixão, exercício da paixão na sua causa. (NCP, 1974, p. 49)
É pelo exercício da paixão que Mariana se liberta do lugar às mulheres destinado. É pela invenção da escrita que ela se converte para nós em mulher libertária.
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E é pela paixão da escrita e pela escrita da paixão que as três Marias derrubam paredes, claustros com flores. Conheceriam mais tarde a vitória dos cravos.
Referências:
ALCOFORADO, Mariana. Cartas portuguesas. Porto Alegre: L&PM, 1997.
ARIÈS, Philippe & DUBY, Georges (org.) História da vida privada. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, vol.2.
BARRENO, Maria Isabel; COSTA, Maria Velho da; HORTA, Maria Teresa. Novas cartas portuguesas. São Paulo: Abril (Círculo do Livro), 1974.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. 5ed. (Tradução: Sérgio Milliet). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
FERREIRA, Nadiá Paulo. O mito do amor sob o signo da paixão. In: Paixão e revolução. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.
PAULO NETTO, José. Portugal: do fascismo à revolução. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986. (Série Revisão, 20).
ROUGEMONT, Denis de. História do amor no ocidente. (Tradução: Paulo Brandi e Ehel Brandi Cachapuz). São Paulo: Ediouro, 2003.
SARAIVA, José Hermano. História de Portugal. 4ed. Lisboa: Europa-América, 1993.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero8/jose.htm
Número 9 (2008) - ISSN 1981-870X