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Luandino Vieira e Mario Vargas Llosa: trilhas e vozes. A viagem ao primitivo
Lílian Barbosa
UNES- Assis1
lilianvotu@yahoo.com.br
Resumo:
Este trabalho desenvolve uma análise comparativa das obras No antigamente, na vida de José Luandino Vieira e El hablador de Mario Vargas Llosa. Aspectos referente à linguagem como a oralidade, hibridismo, serão abordados com o intuito de observar o modo com que a construção narrativa eleva as vozes marginais e valoriza o primitivismo.
Palavras-chave: Luandino Vieira; Mario Vargas Llosa; literatura comparada, prosa, linguagem, oralidade.
Resumen
Este trabajo desarolla un analisis comparativa de las obras No atigamente, na vida de José Luandino Vieira e El hablador de Mario Vargas Llosa. Aspectos referentes a la lenguaje como la oralidad y el hibridismo, serán abordados con la intención de observar el modo con lo cual la construcción narrativa eleva las voces marginas y valoriza el primitivismo.
Palabras clave: Luadino Vieira; Mario Vargas Llosa; literatura comparada, prosa, lenguaje, oralidad.
A elaboração de narrativas modernas vale-se de elementos próprios da oralidade na composição literária, um dos resultados alcançados com esta escolha estética é a ruptura de padrões pré-estabelecidos e consagrados, tal atitude pode ser observada no trabalho literário de inúmeros escritores. Dentre eles pode-se citar José Luandino Vieira e Mario Vargas Llosa. Assim, tal recurso pode ser observado na elaboração das narrativas dos autores mencionados que, embora tenham sido construídas sob paradigmas inusuais para os moldes consagrados, conseguiram atrair atenção e respeito pelo aspecto inovador que alcançaram.
É verdade que os escritores contemporâneos Luandino Vieira e Mario Vargas Llosa possuem um determinado grau de distanciamento, causado, dentre inúmeros fatores, pelos contextos sócio-culturais dos países a que pertencem, isto é, Angola e Peru respectivamente. No entanto, se atentarmos para o trabalho literário dos citados autores, a referida distância fica redimensionada, uma vez que Luandino Vieira e Vargas Llosa executam um trabalho de recuperação das tradições de seus povos e em certa medida de reestruturação do projeto de identidade. Um dos recursos utilizados por ambos é a ruptura dos cânones pela utilização da oralidade, evidentemente cada escritor a seu modo, mas a valorização das
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culturas populares é um traço perene nas obras No antigamente, na vida e El habaldor, é, pois, justamente este olhar que aproxima as mencionadas obras.
Um dos pontos que os escritores carregam em comum é o inconformismo frente à situação das culturas que vivem à margem da sociedade. No entanto, este encontrar-se fora do centro, tanto no Peru quanto em Angola, concentra problemas ainda mais sérios dos que aqueles passíveis de observação nas culturas periféricas que se encontram mais próximas ao nosso cotidiano. Isso porque Angola, por exemplo, sofreu um violento processo de sufocamento causado pelo regime colonizador, que, aliás, só teve fim há poucas décadas, no entanto, ainda hoje conseqüências deixadas pela guerra assolam o país. Já o Peru, por sua vez, possui um complexo quadro de relacionamento no que diz respeito às culturas indígenas. Em ambos os casos, a imposição da cultura dominante acarretou inúmeros problemas para as comunidades nativas.
Em No antigamente, na vida, os matizes híbridos do texto recuperam ou se empenham em evitar o desaparecimento de alguns aspectos culturais, como, por exemplo, o próprio uso da linguagem marginal, bem como sinais da tradição popular. Assim, os musseques parecem funcionar como uma espécie de microcosmo ou janela por onde se vislumbra dentre outras coisas a identidade de um país. O quimbundo, língua utilizada nos referidos bairros luandenses, estabelece no texto um contraponto com a língua portuguesa e esta perde sua posição de prestígio enquanto a primeira ganha espaço.
Os matizes de oralidade presentes na narrativa alcançam efeitos interessantes, pois, ao mesmo tempo em que estão conectados com a contemporaneidade, encerram em si aspectos primitivos. O emprego do próprio código lingüístico, no caso, acaba sendo o responsável por estabelecer esta ponte entre o novo e o tradicional. Outro recurso que produz efeitos surpreendentes é o flagrante de costumes, pois confere vivacidade e verossimilhança ao texto.
O embate que travam Luandino Vieira e Vargas Llosa, valendo-se da oralidade, parece buscar a concatenação das tradições primitivas que o falar e recontar das gentes, na cultura popular, evita que desapareça. A busca pela harmonização das mesclas pode ser entendida como uma espécie de respeito e valorização da cultura que está inserida à margem.
O que se observa, ainda, em Vargas Llosa, na obra El hablador, é o empenho com que defende que as tradições primitivas das tribos peruanas não se percam no tempo ou na modernidade, já que o processo de mescla de culturas tem sido feito muitas vezes de modo que uma se sobreponha a outra sem exercer trocas. Assim a figura do “hablador”, inserido na tessitura do enredo, pode ser vista não apenas como um fator a estabelecer intertextualidade com as literaturas orais indígenas peruanas como também pode ser tomada como esforço em recuperar e perpetuar aspectos primitivos de cultura, organização social e identidade. Como fica demonstrado no exemplo:
- ¿Qué es lo que tanto te llamó la atención?
- ¿Que tienen de particular los habladores?
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(...)
- Son una prueba prueba palpable de que contar historias puede ser algo más que una mera diversión – se me ocurrió decirle - . Algo primordial, algo de lo que depende la existencia misma de un pueblo. (LLOSA, 1987, p. 92)
O caráter híbrido em No antigamente, na vida e em El hablador não se encerra unicamente na mescla do código lingüístico que, vale dizer, é bastante forte no texto de Luandino Vieira, uma vez que o escritor apropria-se de palavras e estruturas emprestadas do quimbundo:
-Cal’ a boca, burro! – xingou Zémaria.- Ele não é o Turito?
Desencontram-se na inteligência, se via. O cravo-fiel riu seus camabuinhis, todo simples – não era que na sua simpleceza estava ouvir música igual das esferas do Turito.
- o muene ki Turitu-é ! Muene u Ami ngó!... (VIEIRA, 1974, p. 48).
Ainda nesta linha de raciocínio, podemos atentar para a seguinte afirmação da teórica em literatura angolana Rita Chaves:
A precariedade de sua situação leva o narrador á crença na insuficiência da língua portuguesa como instrumento de comunicação. Os padrões constituídos por ela não lhe bastam, e ele investe na utilização de termos e estruturas do quimbundo visando adaptar a língua do dominador à expressão da visão de mundo do dominado. (CHAVES, 1999, p. 179).
Na obra El hablador, por sua vez, não se observa de modo tão contundente essa mistura das línguas empregadas por Luandino Vieira, ou seja, a língua indígena machiguenga não aparece tanto nas falas das personagens, exceto quando o narrador faz menções a nomes próprios, lugares e, por vezes, a cantigas tribais, como a que se segue:
Opampogyakyena shinoshinonkarintsi
Me está Miranda la tristeza
opampogyakyena shinoshinonkarintsi
Me está Miranda la tristeza
ogakyena kabako shinoshinonkarintsi
Me está mirando bien la tristeza
omakyena tampía tampía tampía
me ha traído el aire, el viento.
(Vargas Llosa, 1987, p. 83-84)
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A própria elaboração narrativa, na obra El hablador, é híbrida à medida que emprega dois narradores na malha do texto. Estes, por sua vez, constroem não duas histórias, mas sim um mosaico, uma colcha de retalhos. Assim, El hablador narra inúmeras lendas e mitos pertencentes ao imaginário e à tradição das culturas indígenas do Peru, mais particularmente dos machiguengas.
Luandino Viera e Vargas Llosa apresentam-nos, pois, duas trilhas para o percurso de uma significação mais ampla dos aspectos que de fato configuram culturas miscigenadas de comunidades que de um modo ou de outro são colocadas à margem da sociedade. A oralidade faz assim com que germine nos citados textos a identidade multifacetada dos povos retratados, desse modo soa-nos mais adequado o termo identidades culturais, pois o singular possui conotações demasiado reduzidas.
A figura do contador de histórias, tão presente na obra de Vargas Llosa, como se pode observar desde o título, convida o leitor a alçar vôo juntamente com a aldeia machiguenga até os limites tênues que separam a atualidade do primitivo, visto aqui no ato das personagens traçarem trilhas narrativas que constantemente balançam entre a atuação de personagens narradores/contadores que evocam o caráter espontâneo da fabulação, suscitado pelo recurso oral.
O fio da memória desenrola-se na atuação do contador de modo tanto a fortalecer a tradição, quanto a traçar caminhos possíveis que construam o instinto de uma identidade mais acertada.
Uma das funções do contador de histórias é recuperar, transmitir e, com isso, impedir que as tradições se percam no decorrer do tempo, com este objetivo o contador vale-se da oralidade para executar esse trabalho de transmissão das culturas populares aos mais jovens. Tal recurso pode ser verificado de maneira semelhante em El hablador, o contador transmite lendas e histórias aos demais membros da comunidade:
A una de sus hijas, que se durmió mientras yo hablaba, la despertó de un golpe: ((Escucha, no desperdicies estas historias, criatura, diciéndole. Conoces las maldades de Kientibakori. Aprende los daños que han hecho y nos pueden hacer todavía sus Kamagarinis.)) (LLOSA, 1987, p.60).
E mais adiante:
((Es hora de descasar)), ((Es hora de sentarse a escuchar lo que habla)). Así lo hacían: descasaban con el sol o se reunían a oír el hablador hasta que empezaba a oscurecer. Entonces desperezándose, decían: (( Ha llegado el momento de vivir.)) (LLOSA, 1987 p.62).
O recurso oral se propaga tal qual um falar alto entre gentes, um murmurinho incontido, irrefreável tanto em No antigamente, na vida quanto em El hablador. Com isto, narrativas tenazes que desmistificam o processo de canônico de criação e estilhaçam os estereótipos são construídas.
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Referências bibliográficas:
CHAVES, Rita. A formação do romance angolano. São Paulo: fblp, 1999.
GUTIÉRREZ, Ângela. Vargas Llosa e o romance possível da América Latina. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1996.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 8. ed. São Paulo: Ática, 1997.
MARGARITO, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980.
PELEGRINE, Tânia. Gêneros em mutação. In: A imagem e as letras. São Paulo: FAPESP, 1999, p. 79-121.
SCÜLER, Donald. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 1989.
TRIGO, Salvato. Ensaios de literatura comparada afro-luso-brasileira. Lisboa: Vega Universidade, 1985.
VARGAS LLOSA, Mario. El hablador. Santiago: Siex Barral, 1987.
VIEIRA, Luandino. No antigamente, na vida. Lisboa: Edições 70, 1974.
1Trabalho feito sob a orientação do Prof. Dr. Rubens Pereira dos Santos.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero8/jose.htm
Número 9 (2008) - ISSN 1981-870X