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A CASA-TEXTO DE GUIMARÃES ROSA:
RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E PSICANÁLISE NUMA LEITURA DE CURTAMÃO À LUZ DOS NOMES DAS PERSONAGENS
Bruno Molina Turra1
Graduação (UFSCar)
bruno_turra@yahoo.com.br
Resumo:
Pautado nos conceitos lacanianos de lalangue e estilo aliados às teses sobre o conto de Ricardo Piglia, proponho uma análise do conto Curtamão de Guimarães Rosa apontando tal conto como um caminho para se compreender o universo lingüístico do autor.
Palavras-chave: lalangue, estilo, Guimarães Rosa
Abstract:
Based on the lacanian concepts of lalangue and style allied to Ricardo Piglia´s theses about the short story, I propose an analysis of Curtamão, a short story by Guimarães Rosa. In this analysis I suggest that this particular short story could be seen as a way to understand Rosa´s linguistic universe.
Key words: lalangue, style, Guimarães Rosa
A fim de pensar a relação entre Guimarães Rosa e a língua portuguesa, tomei como pontos norteadores de minha análise a primeira tese sobre o conto de Ricardo Piglia2 e o conceito de lalangue (lalíngua), formulado por Lacan. A análise tem por objetivo alçar elementos presentes no conto “Curtamão” que indiquem alguns caminhos para se pensar a inscrição do sujeito na língua bem como os processos em que tal inscrição pode ser percebida.
Piglia, em seu livro Formas breves, traz como a primeira tese sobre o conto a seguinte: “um conto sempre conta duas histórias”3, uma segunda história cifrada nos interstícios da primeira. Nesse sentido, minha análise visa estabelecer um paralelo entre história 1, história 2 e a inscrição de Rosa no conto, assim como os mecanismos de tal inscrição.
Segundo Vicentini de Azevedo, o livro Tutaméia, no qual o conto “Curtamão” está inserido, pode ser visto “como uma cuidadosa reflexão literária sobre o ofício da ficção”4. É a partir desta hipótese que estabeleço o fio narrativo da história 2 do conto. Se, numa história 1, o narrador-protagonista re-visita um episódio de sua vida, a construção de uma casa para um amigo, encontramos na segunda história uma reflexão de Guimarães Rosa sobre sua obra, estabelecendo então o lugar no qual o autor reflete sobre sua prática literária.
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Por se tratar de uma reflexão sobre a escrita, acredito que a noção de lalangue, formulada por Lacan, seja bastante produtiva para a análise. Vicentini de Azevedo entende que a lalangue se dá
entre a estrutura da linguagem e a particularização levada a efeito pelas línguas – portuguesa, inglesa, francesa etc. Além, ou aquém desse entre-lugar, uma outra dimensão da lalíngua se faz presente na onomatopéia do significante lalíngua: o blá-blá-blá, o sem-sentido da linguagem mãe-bebê, da língua materna. Tal categoria comporta tanto a acepção desta modalidade de troca linguageira entre mãe-bebê, quanto o sentido de ‘língua nativa’, língua (de) onde nascemos.5
Atendo-me à noção de lalangue enquanto entre-lugar de onde nascemos, buscarei ilustrar a relação de Rosa com a língua através da análise dos nomes das personagens ajudantes do narrador-protagonista na construção da casa do conto (história 1) e também ajudantes da produção literária de Rosa (história 2). Entretanto, antes de iniciar a análise, vale dizer algumas palavras acerca do papel do nome próprio na literatura.
Opondo-se às abordagens tradicionais6 a respeito do nome próprio, aquelas que o vêem desprovido de significado, atuando apenas como índice, Ana Maria Machado, na esteira de Lévi-Strauss7, atribui a este uma significação. Segundo a autora,
Por um lado, se o Nome é uma marca de individualização, de identificação do indivíduo que é nomeado, ele marca também sua pertinência a uma classe predeterminada (família, classe social, clã, meio cultural, nacionalidade, etc.) sua inclusão em um grupo. O nome próprio é a marca lingüística pela qual o grupo toma posse do indivíduo, e esse fenômeno é geralmente assinalado por ritos, cerimônias de aquisição ou mudança de nome.8 (grifo da autora)
Nesse sentido, o nome é próprio, de um lado, para individualizar, de outro, para apropriar. É por meio do nome próprio que o individuo é tomado pelo outro. Trago dois exemplos para ilustrar o pensamento da autora, são os casos de Nhinhinha e Severino9.
Sobre a apresentação da protagonista d’ “A Menina de Lá”, tem-se: “E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita”10. Disso, infiro que o nome da personagem, Maria, bastante comum em países católicos, e conseqüentemente no Brasil, não tem o poder de individualizar e portanto de apreender, pelo contrário, tal nome é metonímia utilizada ad nauseum da mulher sofredora, que se entrega, Maria “é o som, é a cor, é o suor/ É a dose mais forte e lenta/ De uma gente que ri quando deve chorar/ E não vive, apenas agüenta”11. E, por esse motivo, a menina é apreendita Nhinhinha, mas mesmo assim, devido à suas características, ao fato de ser de lá, nem mesmo seu apelido lhe apreende. Este apelido-diminutivo, de sonoridade estranha e mesmo difícil de ser dito, permite à menina que escape à propriedade: “Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo”12.
Uma outra tentativa de apreensão, esta por parte do nomeado, ocorre em Morte e Vida Severina. Na primeira cena do Auto de Natal Pernambucano, o protagonista se apresenta ao leitor e, através de um
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sentimento de não se sentir apreendito, vai adicionando a seu nome o nome de sua mãe, de seu pai e do lugar em que habita. Entretanto, mesmo com todos estes nomes, não consegue se dizer, convence-se, então, de seu papel metonímico de sertanejo.
Sobre o nome próprio, mais especificamente em Guimarães Rosa, Ana Maria Machado conclui que a relação deste com o autor é a de “questionar o próprio texto”13; o nome próprio “desempenha um papel importante na própria geração do texto, no engendramento dos sintagmas, na produção da página escrita, no ato de fazer a obra”14. Para a autora, os nomes em Rosa não se limitam a índices ou mesmo a meros elementos alegóricos. E em suas palavras,
Na obra de Guimarães Rosa, os Nomes formam um sistema global de significação e, dessa maneira, desempenham um papel classificador. Ao mesmo tempo, significam em seu sistema a própria existência da significação, provando que não é possível falar em um sentido único para o texto, mas obrigando à incorporação de uma pluralidade de leituras – o que é completamente diferente de uma diversidade de interpretações, e é a manifestação do destino de abertura do texto15. (nota da autora).16
Vale ressaltar ainda que quanto à escolha de um nome pelo autor, não vejo a necessidade de discutir se esta foi proposital, acidental ou de qualquer outra ordem. O que busco com minha análise, e isso invalida qualquer questão a respeito da maneira como foi nomeada a personagem, são os efeitos de sentido que tais nomes podem produzir dentro da narrativa e não a intenção do autor de nomeá-la dessa ou daquela maneira.
Agora, a análise.
Na história 1 de “Curtamão”, a que se dá ao nível do visível, segundo Piglia (2004), as personagens Dés, Nhãpá, Lamenha e Tio o Borba são os ajudantes do narrador-protagonista na construção da casa. “Dés, ajudante correto, e servente o Nhãpá, cordato”17, estes eram responsáveis pelos profundamentos, e “Tio o Borba, dunga jagunço, e o Lamenha nosso, qüera curimbaba”18, responsáveis pela segurança da construção. O narrador-protagonista se ocupa da estrutura da casa: “De carpinteiro tão bem entendo: para o travejável, de lei, esteios de madeira serrada”19, e de seu desenho: “o risco mudamente eu caprichava”20.
Passando para a história 2, a que se apresenta nos interstícios da primeira, o que observo nestes personagens é a explicitação da lalangue de Rosa, ou seja, o modo como o autor acredita se constituir pela linguagem. Os ajudantes do pedreiro Rosa são os ajudantes do escritor Rosa. Trata-se, acredito, dos mecanismos os quais Guimarães Rosa se utiliza ao passar da linguagem para a língua, esses ajudantes auxiliam-no neste deslocamento.
Vejo em Dés, além da menção à língua francesa, idioma este que Rosa já lia aos seis anos de idade21, uma referência ao poema de Mallarmé Un coup de dés jamais n’abolira le hasard22, marco da poesia moderna e obra na qual Mallarmé, em seu prefácio, discute a construção espacial do poema, a
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utilização dos brancos, dos silêncios, o truncamento das sentenças, a sentença que acompanha o leitor até o final do poema. Nas palavras de Mallarmé:
Les ‘blancs’, en effet, assument l’importance, frappent d’abord; la versification en exigea, comme silence alentour, ordinairement, au point qu’un morceau, lyrique ou de peu de pieds, occupe, au milieu, le tiers environ du feuillet: je ne transgresse cette mesure, seulement la disperse. (....) La fiction affleurera et se dissipera, vite, d’après la mobilité de l’écrit, autour des arrêts fragmentaires d’une phrase capitale de le titre introduite et continuée. (...) Ajouter que de cet emploi à nu de la pensée avec retraits, prolongement, fuites, ou son dessin même, resulte, pour qui veut lire à haute voix, une partition.23
O trecho acima me traz inevitavelmente à memória não só o estilo roseano de escrita, mas a casa que o narrador-personagem constrói. “[A casa] que fechei redonda e quadrada”24, “a minha construção, desconforme a reles usos”25, “a casa de costas para o rual, despeitando frente a horizonte e várzeas”26, a casa, toda ela truncada, irregular.
A segunda personagem, Nhãpá, servente cordato, que na língua falada no Brasil forma nhapango (mestiço)27, na lalangue de Rosa representa a influência tupi de seu idioma único, aquele que o possibilita dizer “qüera curimbaba”, por exemplo, em que qüera (ou cuera) no tupi significa de velho, antigo, o passado28, e curimbaba, também do tupi, força, valentia, valor, que em mineirês significa capanga, homem de confiança29.
O terceiro ajudante do pedreiro-escritor, “Tio o Borba”, faz uma irrecusável referência a Machado de Assis e sua obra Quincas Borba30, a mais machadiana de todas, o que me remete ao português castiço, o (e não um) português, O Borba. É interessante notar, ainda a respeito desta personagem, as designações que lhe são atribuídas: “o ajudador”, “dunga jagunço”31. Vejo como função do tio do pedreiro (tio, porque se trata de línguas parentas), a de regulador, protetor, valente jagunço do dizer.
Seu último ajudante, Lamenha, que na lalangue de Rosa diz Alemanha (ou o idioma alemão) é apresentado, da mesma forma que o tio do narrador-pedreiro, como capanga, aquele que está a serviços geralmente ligados à proteção do contratante. Entretanto, o que diferencia o Tio o Borba de Lamenha é a experiência do mais vivido: “qüera”, o que, a meu ver, remonta a toda a tradição literária da língua de Goethe, referência a uma das maiores fontes de Rosa.
É, portanto, por meio desta leitura que faço do conto, que vejo o entrelaçamento da literatura com a psicanálise, pois as personagens do conto podem ser vistas como representação da lalangue de Guimarães Rosa. Da mesma forma que os ajudantes auxiliam no trabalho do pedreiro-narrador, as línguas mencionadas acima auxiliam Rosa no magnífico trabalho que faz com a linguagem.
Tendo analisado a construção das personagens-ajudantes do pedreiro-escritor, destaco agora como é composto o protagonista de “Curtamão”. Vale notar que esta personagem somente se designa por eu (e outros pronomes de primeira pessoa – me, mim, minha), não revelando ao leitor seu nome próprio, aquele
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do qual nos utilizamos para nos apropriar dele. Para melhor explicar o que acabo de dizer, trago um excerto de Benveniste:
Cada instância de emprego de um nome refere-se a uma noção constante e “objetiva”, apta a permanecer virtual ou a atualizar-se num objeto singular, e que permanece sempre idêntica na representação que desperta. No entanto, as instâncias de emprego de eu não constituem uma classe de referência, uma vez que não há “objeto” definível como eu ao qual se possam remeter identicamente essas instâncias. Cada eu tem a sua referência própria e corresponde cada vez a um ser único, proposto como tal.32 (grifos do autor)
Dessa forma, preciso criar mecanismos para apreendizê-lo e, por se tratar de um texto de Guimarães Rosa, essa tarefa se torna muito mais difícil. Como se pode notar, nas páginas anteriores, utilizei narrador-protagonista, pedreiro Rosa, escritor Rosa, narrador-personagem, pedreiro-escritor, pedreiro, tudo isso na tentativa de apreendizê-lo, o que dificulta uma aproximação deste narrador.
Outro fato que dificulta uma aproximação mais tranqüila é a presença dos jagunços, protegendo a obra, a casa-texto. É através deste trabalho conjunto de pedreiro, ajudantes e jagunços que vejo se metaforizar o estilo roseano.
Sobre estilo, distancio-me da noção proposta pela retórica clássica a qual entende estilo como um ornato ao texto, aproximando-me do que propõe o escritor e crítico inglês, John Middleton Murray: “[estilo] não são as roupas que um homem usa, mas a carne e o osso de seu corpo”33. Aproximando-se desta noção de estilo, mas relacionando-a às questões psicanalíticas, Vicentini afirma que “o estilo se define pela relação do sujeito com o objeto que o marca, como uma tatuagem, um estigma. (...) [pondo] em cena uma pontiaguda experiência de castração, de experiência de falta tanto no sujeito quanto no Outro”34.
É com essa noção de estilo que prossigo minha análise a partir do trecho que segue: “Primeiro o sotaque, depois a signifa – eu redizendo; com meu Tio o Borba, ajudador, e nosso um Lamenha dando serventia. Nhãpá e o Dés cavavam os profundamentos; o risco mudamente eu caprichava.” (p. 552)
A primeira sentença do trecho se mostra bastante reveladora quanto à preocupação de Rosa com o som (pour qui veut lire à haute voix35, como disse Mallarmé), sons muito trabalhados, traçando um jogo sinestésico com o leitor, “Olhem. O que conto”36. A questão do sotaque remete-me também à fala do sertanejo, o mineirês com o qual brinca a lalangue de Rosa.
A outra sentença do trecho selecionado que me parece bastante significativa é “o risco mudamente eu caprichava”. Esse risco me remete ao que Vicentini de Azevedo aponta como estilo:
(...) o instrumento latino de escrita, o stilus. É ele que, ao ferir, marcar, cravar a superfície da prancha de cera, vai dar origem ao que as línguas modernas chamam de estilo. Tal conexão não escapou à aguda sensibilidade de Lacan, que abre seus Escritos com um comentário sobre estilo – uma maneira de escrever que também diz respeito a maneira como o sujeito é ferido, marcado pelo objeto (1996, p. 9 – 10) (p. 06).
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Sendo o estilo, portanto, um lugar no qual se observa a inscrição do sujeito na língua o que, em Guimarães Rosa, se configura de maneira extraordinária. Em uma famosa conversa com Günter Lorenz, Guimarães Rosa fala de seu trabalho com a língua e da construção de seu idioma tão particular, e é por meio desta fala que justifico a relação entre o conto “Curtamão” e a escrita roseana que propus neste trabalho.
Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como o usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outros idiomas. (...) Eu incluo em minha dicção certas particularidades dialéticas de minha região, que são linguagem literária e ainda tem sua marca original não estão desgastadas e quase sempre são de uma grande sabedoria lingüística (pp. 35 – 46).
Referências Bibliográficas:
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LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962.
MACHADO, Ana Maria. Recado do nome – Leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens. São Paulo: Martins Fontes, 1991
MALLARMÉ, Stéphane. Poème – Un coup de dés jamais n’abolira le hasard. In : http://www.math.dartmouth.edu/~doyle/docs/coup/scan/coup.pdf acessado em 21/10/2006.
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PEREZ, Renard. Perfil de Guimarães Rosa. In: ROSA, J. Guimarães. Primeiras estórias. 12 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero8/jose.htm
Número 9 (2008) - ISSN 1981-870X