Resenha
GARCíA, Flávio e MOTTA, Marcus Alexandre (Org.). O insólito e seu duplo. Rio de Janeiro: Eduerj, 2009 (Coleção Clepsidra 7), 273p.
Júlio França
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
julfranca@gmail.com
O insólito e seu duplo é o título do sétimo número da coleção Clepsidra, revista do Setor de Literatura Portuguesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Lançada no último mês de Novembro, a edição, organizada pelos professores Flavio García e Marcus Alexandre Motta, traz doze artigos que abordam o fecundo tema a partir de instrumentais críticos e teóricos bastante diversos – sobretudo os dos Estudos Literários, da Filosofia e da Psicanálise.
A multiplicidade de enfoques revela a força e o alcance da relação entre “narrativas insólitas” e o topos do duplo. Afinal, parece haver já no ato de considerar algo como “insólito” uma percepção de que se está diante de um “desvio” das coisas que consideramos comuns ou habituais. O insólito, portanto, não pode ser compreendido por si só, mas é em si mesmo uma noção cuja razão de ser depende do estabelecimento de uma relação com algo cuja existência lhe é anterior – algo normal, algo sólito. Em outras palavras, a noção de insólito já pressupõe em si a noção de duplo, ainda que de uma forma não radical de duplicidade. O que há por trás da percepção do caráter insólito de algo é a idéia de antagonismo, que faz com que atribuamos valores invertidos a termos semelhantes: o normal e o anormal; o são e o insano; o verdadeiro e o falso; o natural e o sobrenatural etc. Um exemplo literário do duplo antagônico poderia ser representado pela temática dos evil twins, os gêmeos fisicamente idênticos, mas de caráter invertido, como o personagem do rei Luís XIV e seu irmão no romance de Alexandre Dumas (pai), O Visconde de Bragelonne.
Há, contudo, outra noção de duplo mais perturbadora, que rompe com nossas categorias lógicas: a duplicidade da identidade. A própria enunciação de algo como a dualidade da identidade já soa como um contra-senso e é, em si mesma, uma ideia “insólita”, porque se opõe ao princípio lógico da não-contradição. Não por acaso, as obras literárias são pródigas em exemplos de exploração da contraditória noção de duplo. Elas próprias padecem, desde Platão, com seu ambíguo estatuto de duplicadoras, de produtos miméticos. O artigo de Daniela Beccaccia Versiani enfrenta essa questão, tomando o duplo tanto como processo de desdobramento e de criação de um novo “eu”, quanto como processo de duplicação de mundos através da representação artística. Através da
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leitura de obras de Saramago, Borges e Collodi, Versiani faz uma defesa da literatura como uma atividade muito mais de “apresentação” do que de “representação” de mundo.
Os artigos do livro são uma excelente demonstração de como o tema do duplo se faz presente na literatura. No campo da narrativa em língua portuguesa, Maria Helena Sansão Fontes toma José Saramago e reflete sobre o homem civilizado diante de seu avesso, abordando questões cruciais para o homem contemporâneo, como a indiferença pelo outro, a solidão e a impotência diante da barbárie. Já Cinda Gomes, lendo o romance de Lídia Jorge, A costa dos murmúrios, avalia o caráter insólito da própria existência humana, em nossa efêmera condição de mortais, no encontro da personagem Evita/Eva Lopo com seu duplo e, por fim, consigo mesma. Também existencialista é a reflexão de Elcio Luís Roefero, que nas narrativas da Felicidade clandestina, de Clarice Lispector, identifica o modo clariceano de afirmar a incompletude, a singular solidão humana e a impossibilidade de compreensão plena do Outro.
A literatura como um duplo da história é o tema de Claudia Amorim – que explora o efeito de duplicação da história portuguesa nos processos de deslocamento, descanonização e dessacralização identificados na obra de António Lobo Antunes – e de Shirley de Souza Gomes Carreira – que aborda a tensão entre o sólito e o insólito na sobreposição de espaços históricos, míticos, oníricos e memorialísticos em Mia Couto. Já no campo mais específico da historiografia literária, Flavio Garcia expõe um lado paradoxal de Teófilo Braga, escritor reconhecido pela tradição como um dos principais nomes da geração de 70, mas autor de uma obra surpreendentemente intitulada Contos fantásticos.
Se a literatura parece ser o ambiente ideal para as manifestações do insólito e do duplo, qual seria, portanto, o estatuto ontológico do duplo no fértil âmbito das narrativas ficcionais? De modo bastante genérico, pode-se entender a duplicidade como qualquer modo de desdobramento do ser: do simulacro criado pela reflexão especular – que concretizaria, de forma natural, a idéia da duplicação – até a duplicidade sobrenatural e ilógica de dois seres absolutamente idênticos. Fundamental, em ambos os casos extremos, é a relação íntima que o duplo sempre mantém com o ser do qual é um desdobramento. Essa relação entre duplicata e duplicado pode ter diversos graus de dependência: da dependência explícita que ocorre com as imagens produzidas pelo espelho – que só tem o poder de duplicar in praesentia do objeto duplicado – ao duplo que se destaca a ponto de desenvolver uma existência mais ou menos autônoma. Apesar dos diversos graus, a dependência entre duplicata e duplicado é obviamente essencial, uma vez que algo só é percebido como duplo sendo o duplo de outra coisa que não ela própria: “eu sou o duplo de mim mesmo” não parece ser
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um enunciado possível, ao contrário de “Lá está o meu duplo”, dito pelo duplicado, ou “eu sou o seu duplo”, dito pela duplicata.
Por ter sua existência condicionada – isto é, só poder ser entendido enquanto uma extensão de um outro ser, sob pena de perder sua condição de duplicata – o duplo não abandona sua condição de simulacro, de mera sombra. Essa parece ser a sua peculiar condição ontológica: tem sua origem em um indivíduo, ao qual pode se assemelhar até quase a identidade plena, mas não possui o mesmo estatuto dele: ele sequer é um “outro” pleno, uma vez que não tem valor em si mesmo, mas apenas aquele que o seu modelo lhe fornece.
A peculiar condição ontológica do duplo será explorada no livro em três artigos: no de Mário Bruno, em sua análise deleuziana do confronto entre a “essência da identidade” e a “diferença e a multiplicidade do simulacro”, no romance O Baphomet, de Pierre Klossowski; no de Manuel Antônio de Castro, que, refletindo sobre a Poética como uma dobra das noções de real, investigará a condição paradoxal do duplo, que precisa dar conta da permanência na mudança, enquanto duplica continuamente a realidade; e no de Marcus Alexandre Motta, que nos apresenta em sua intensa experiência de leitura do poema pessoano “A outra”, uma reflexão sobre desdobramentos e duplicidades nas relações entre a criação poética, as condições anímicas da recepção e a própria realidade.
A idéia do duplo está, em muitos casos, relacionada com o despertar da autoconsciência do sujeito. Os desdobramentos das imagens do eu e as autoduplicações da consciência podem revelar tanto a semelhança quanto a diferença. Têm, muitas vezes, um benéfico poder revelador para o indivíduo, que reconhece e identifica, na semelhança do duplo, aspectos até então desconhecidos de seu próprio caráter. Outras vezes, porém, o processo revela um mal, uma doença ou mesmo a finitude da existência humana, suscitando assim o horror. Contudo, a aversão a esse “outro” representado pelo duplo possui uma força ainda mais terrível: o mal aqui é identificado não com o que é radicalmente diferente, mas com algo que mantém com o sujeito uma estranha familiaridade – como Mr. Hyde, se tomado como um desdobramento da personalidade de Dr. Jekill.
A abordagem psicanalítica marca presença no artigo de Nadiá Paulo Ferreira e no de Sônia Leite. No primeiro, as considerações de Freud sobre o “Estranho” são o ponto de partida para uma análise de narrativas de Maupassant e de Hatherly que permite à ensaísta acompanhar a “estranheza” da transformação da imagem especular em imagem do duplo. No segundo, Sonia Leite
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partirá de Freud e Rosset para examinar a tendência à duplicação no ser humano e propor uma leitura lacaniana do conto O espelho, de Machado de Assis.
Na tradição ficcional do ocidente, a coexistência entre o ser e seu duplo não costuma ser pacífica. Em geral, o duplo apresenta, por trás da semelhança aparente, características que impedem a perfeita identificação entre duplicado e duplicata e acaba gerando um conflito deflagrado por essas diferenças irreconciliáveis. Em William Wilson, conto exemplar da tematização do insólito e do duplo, Allan Poe explorou ao extremo essa relação. Já no início da narrativa, uma observação feita pelo narrador-protagonista sobre o Reverendo Dr. Bransby – sua solenidade e aparência benigna de pastor, contrastando com seu desleixo, sua sisudez e mesmo crueldade como educador – revela o paradoxo natural da duplicidade humana. Mais adiante, quando enfrenta o seu próprio duplo, o que maravilha, exaspera e aterroriza o protagonista é exatamente o reflexo de si mesmo que seu homônimo possibilita. O duplo de Wilson se anuncia como uma pletora de possibilidades elevadas, idealizadas e jamais alcançadas. Na narração do confronto final, após ferir o seu duplo mortalmente com o florete, o narrador confessa ter imaginado, enquanto contemplava o agônico fim de seu duplo, estar diante de um grande espelho.
O paradoxo que sustenta a possibilidade da existência de um duplo parece ser a representação do próprio paradoxo do caráter humano. Talvez William Wilson mostre-nos o funcionamento geral do duplo e o que ele carrega de tão atemorizante: a visão do duplo é o modo doloroso de cumprirmos a recomendação inscrita nos pórticos do Templo de Apolo, em Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”. O duplo encerra o terror de sermos quem somos.
Julio Cesar França Pereira
Doutor em Literatura Comparada, UFF, 2006
Professor Adjunto de Teoria da Literatura, UERJ
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero11/julio.html
Número 11 (2009) - ISSN 1981-870X