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O amor em dois sonetos: Petrarca e Camões
Marina Machado Rodrigues
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
mr.marina@terra.com.br
Resumo:
O amor em dois sonetos: Petrarca e Camões
Este estudo tem por objeto o confronto entre o soneto de Petrarca, “ Voi ch’ascoltate in rime sparse il suono”, e o de Camões, “Oh! Quão caro me custa o entender-te,” que, apesar das semelhanças aparentes, divergem profundamente no que concerne aos efeitos causados por amor na subjetividade dos amadores, evidenciando a relação imitatio/transformatio na estética do século XVI.
Palavras-chave: Literatura Portuguesa. Camões. Petrarca.
Abstract:
Love in two sonnets: Petrarca and Camões
The purpose of this study is to compare and contrast Petrarca´s sonnet “ Voi ch’ascoltate in rime sparse il suono” and Camões’ “Oh! Quão caro me custa o entender-te”, which, in spite of apparent similarities, are completely different with respect to the effects of love on the subjectivity of lovers, thus foregrounding the relationship imitatio/transformatio in XVIth century aesthetics.
Keywords: Portuguese Literature. Camões. Petrarca.
Na história das literaturas européias, o código petrarquiano constituiu uma das mais importantes e duradouras tradições literárias – cujos reflexos se fizeram sentir, não só nas gerações que sucederam imediatamente o poeta – mas também nos séculos seguintes, ainda que nem sempre repercutissem a orientação original, em muito casos chegando a volver-se num antipetrarquismo.
A estética petrarquiana opera uma síntese que reflete e recria influências dos autores da Antiguidade, dos tardo-medievais, da lírica provençal, da poesia siciliana, da sículo-toscana ¹, do dolce stil nuovo, bem assim dialoga com a poesia de sua época que muito raramente resistiu ao crivo da crítica e do tempo.
A lírica de Petrarca não foi modelada no século XIV quando o sucesso de que desfrutava foi reconhecido por poucos, uma vez que sua poesia retratava um mundo cultural e geograficamente diverso do dos poetas lidos e consagrados à sua época. Como ensina Marco Santagata, ²
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É um dado de fato que nas recolhas miscelâneas do século XIV e de inícios do século XV, ou seja, manuscritos que fotografam o quadro do que efetivamente se lia, aparecem os nomes de Cavalcanti, Guinizzelli, Dante, mas aparecem menos do que os de outros rimadores do séc. XIV que hoje são, para nós, semidesconhecidos. (…) Um outro dado de fato é o de que até o nome de Petrarca também só esporadicamente se encontra. Mas do que de nomes, trata-se de textos. Na maior parte dos casos, as composições são anónimas e o anonimato atinge do mesmo modo grandes e pequenos. Para um leitor médio de poesia, nas primeiras décadas do século XV, os grandes autores não coincidem com os de hoje: são os Antonio da Ferrara, os Fazio degli Uberti, os Francesco da Vannozzo, os Simoni Serdini.
O crítico italiano observa ainda que nenhum dos líricos acima nomeados se distingue pelo valor, ao contrário do lugar que a posteridade reservaria a Petrarca. Este foi o responsável pelo relançamento da língua latina e do mundo clássico, de tal modo que, depois dele, a chamada cultura ‘alta’ é identificável com a latina e a literatura em vulgar entra em crise.
Somente na segunda metade do século XV, com a consolidação das cortes, em substituição aos estados tirânicos e senhoriais, dá-se o ressurgimento da lírica em vulgar, sob novas formas e em grande estilo. O género assume “a linguagem, as formas e o imaginário” de Petrarca (SANTAGATA, 2006, p.29).
Vítor Manuel de Aguiar e Silva define o petrarquismo como:
uma tradição literária rigidamente codificada sobretudo no âmbito da poesia lírica, mas também influente noutros géneros literários, desde a comédia ao poema épico, à novela e ao romance, embora manifestando-se algumas vezes sob a forma de paródia ou de uma intertextualidade ironicamente manipulada (SILVA, 1999, p.180).
Constituindo um amplo repertório de temas, traços e macroestruturas formais, o legado petrarquiano não foi passivamente reproduzido pelos poetas dos séculos XV e XVI, foi modelizado e transformado, assumindo características próprias de acordo com a época, o contexto em que se inseriu e a sensibilidade peculiar a cada um dos seus seguidores. Mas, sobretudo, como esclarece Rita Marnoto, o petrarquismo
é uma modalidade de reuso que tem na sua base a memória e a citação, afirmando-se, pois, como uma tradição, em sentido etno-antropológico, porquanto corpus de enunciados e conjunto textual organizado num sistema de valores ativo no âmbito de uma densa trama de práticas rituais, à qual é conferida a função de produzir, conservar e transmitir a própria identidade de um grupo social, a sua forma cultural. Por consequência, o sentido da escrita brota de um movimento de reduplicação,
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entre um texto primeiro e os sucessivos textos dele decorrentes, entre matriz e imitação, numa cadeia especular que consagra essa própria relação (MARNOTO, 2007, p. 56).
Embora presos a esquemas bastante rígidos, já que seus seguidores se utilizavam dos mesmos estilemas, imagens, símbolos, processos retóricos e configurações temáticas, a atualização do código comporta modulações, desvios e transgressões. O tema da memória adquire uma importância bastante significativa na produção dos poetas petrarquistas, uma vez que é através dela que o sujeito recupera as experiências passadas, irremediavelmente consumidas pela ação do tempo, eivadas quase sempre de uma disposição anímica marcada pela melancolia, esta intensificada na medida em que o século XVI avança, expondo o drama do sujeito e denunciando a herança petrarquiana.
O objeto de nosso estudo é o confronto entre dois sonetos de Petrarca e de Camões, respectivamente, “Voi ch’ascoltate in rime sparse il suono ³” e “Oh! Quão caro me custa e entender-te” (AZEVEDO FILHO, 2004, p. 123) e suas relações de identidade e diversidade.
Abaixo, transcrevemos a versão original do soneto italiano e sua tradução 4; e o soneto de Camões 5, para facilitar a leitura:
PETRARCA
Voi ch'ascoltate in rime sparse il suono del vario stile in ch'io piango e ragiono Ma ben veggio or sì come ai popol tutto e del mio vaneggiar vergogna è ‘lfrutto, |
Vós que escutais em rima esparsa o som do vário estilo em que eu discorro com Mas o falar de todo o povo escuto e desse enleio vão vergonha é o fruto, |
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CAMÕES
Oh! quão caro me custa o entender-te,
molesto Amor, que, só pera alcançar-te,
de dor em dor me tens trazido a parte
onde em ti ódio, e ira se converte!
Cuidei que, pera em tudo conhecer-te,
me não faltava experiência e arte;
agora vejo nalma acrecentar-te
aquilo que era causa de perder-te.
Estavas tão secreto no meu peito,
que eu mesmo, que te tinha, não sabia
que me senhoreavas desse jeito.
Descobriste-te agora; e foi por via
que teu descobrimento, e meu defeito,
um me envergonha, outro me injuria.
Petrarca inicia os Rerum uulgarium fragmenta em cerca de 1330, concluindo-os em meados de 1350, embora entre 1366 e até poucos anos antes de sua morte se tenha dedicado ao projeto de reescrita das composições, com vistas a uma versão definitiva da obra. Como informa Graça Moura, a par com o aperfeiçoamento dos versos, alguns desgostos provocaram no autor a mudança que se denuncia no percurso trilhado, como a morte da amada e a de patronos e amigos, vitimados pela peste negra (1348/1349). “Este período é decisivo para o reexame e reorientação de sua vida moral e para a revisitação de sua obra”, já que, como admite o poeta, “os próprios poemas lhe pareciam contraditórios e confusos, quase irreconhecíveis” (MOURA, 2003, p. 16), reclamando a necessidade de reelaboração, para expressarem uma nova verdade. Os Fragmenta reúnem um conjunto de 317 sonetos, 29 canções, 9 sextinas, 7 baladas e 4 madrigais, dispostos em duas partes: a primeira intitulada “in vita di madonna Laura”, contendo as composições de nº 1 a 263; e a segunda, “in morte di madonna Laura”, incluindo as composições de nº 264 a 366.
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intenções, inscrevem, a título de sentença, a vontade de arrependimento de “um homem bem diferente daquele outro que cometeu os juvenis errores”. Como afirma Aguiar e Silva, trata-se de um “canto palinódico paradigmático para outros poetas vindouros que, dilacerados pelo dissídio entre o desejo e a razão, entre a vontade e o intelecto, hão-de renunciar ao amor humano, condenando-o e penitenciando-se dos seus erros” (SILVA, 1999, p. 170). A crença na natureza pérfida do Amor dá ensejo a tais poemas, nos quais avultam o arrependimento e a vergonha por se ter experimentado o amor profano, tornando-o motivo privilegiado do canto. Este gênero encontra sempre mais aceitação na medida em que o século XVI avança e o clima imposto pela Contra-Reforma se adensa. Frei Agostinho da Cruz e Baltasar Estaço são exemplares na modalidade.
No poema petraquiano, a propósito do amor e de seus efeitos sobre o amante, explicita-se o ponto de vista do autor, resultante não só das experiências de vida, mas sobretudo da absorção de influências que denunciam o mestrado de Sêneca e de Santo Agostinho, ambos favoráveis à introspecção que, conduz à sabedoria, segundo aquele; e à busca de Deus, de acordo com este, afastando o homem das solicitações mundanas. Por outro lado, o soneto atesta a vivência de dispersão e erro, de que decorre o arrependimento presente.
Aqui não se faz menção à figura de Laura, ao contrário, enfatiza-se a exposição da interioridade do sujeito que faz do canto espaço privilegiado para o mea-culpa. A subjetividade é obsessivamente marcada pelo uso dos pronomes de primeira pessoa (meu peito, meu primeiro error, eu discorro, mim mesmo, comigo, me envergonho, arrepender-me), exibindo lapidarmente, a sintaxe meândrica, característica da estética petrarquiana. Tal técnica, como escreve Rita Marnoto, “consiste em uma estratégia sintática baseada na mobilidade do jogo entre sujeito e objeto gramaticais, de tal forma que o poeta ou é sujeito, ou então é introduzido obliquamente através do volteio da frase” (MARNOTO, 2007, p. 94-95), como se pode perceber no período iniciado no 1° verso (“Vós”) e só concluído no v.8, implicando o engrandecimento do sujeito em detrimento do objeto.
Por meio da apóstrofe (“Vós, que escutais…”) v.1, o eu lírico apela a um público que o ouve, e do qual espera obter “o perdão e a piedade”, mas sabe que, dentre todos, somente os que hajam provado os efeitos da paixão, poderão compreendê-lo. O juízo de valor expressado no v.3, (“no meu primeiro juvenil error”), surge da consciência das faltas cometidas na16
juventude; e mesmo se tratando de “um outro homem”, a que o sujeito se dizia ser em parte, os erros não o eximem do sentimento de culpa confesso no soneto. O “choro, as esperanças vãs e a vã dor” sinalizam as frustrações de um sofrimento inútil e alienante. Por isso, a paixão e a sujeição ao Amor deram azo, repetidamente, “ao falar de todo o povo”. Por escutar o julgamento do vulgo, o sujeito confessa a vergonha sentida no mais íntimo de seu ser (“De mim mesmo comigo me envergonho”). E a asserção de que “o que agrada ao mundo é breve sonho” atesta não só a certeza da inanidade das paixões como propicia o distanciamento entre o sujeito e as solicitações da vida mundana, buscando a salvação da alma e o conforto em Deus. O sujeito do presente é um homem pacificado que, mesmo eivado pela culpa, pretende obter a absolvição pela via do arrependimento.
Para Petrarca, no Amor, coexistem claramente duas dimensões: a física e a metafísica, que em tensão respondem pelo dissídio. Mas a experiência e a reflexão sobre todo o percurso de sua vida terminam por eleger a segunda como verdadeira.
Como se lê em Vasco Graça Moura, na citada carta Familiares, IV, 1, que o vate de Arezzo escreve a Dionigi de Roberti, há duas passagens que sintetizam todo o percurso moral petrarquiano. A primeira menciona a ascese ad beatam vitam, que implicava vencer os obstáculos mais difíceis, em paralelo com a metáfora da escalada montanhosa, para a qual não se prescinde da tenacidade voluntária. A segunda encerra de certo modo o programa implícito no Canzoniere, onde avultam as incertezas, os tormentos, as contradições e as ambiguidades em que se debate a consciência angustiada do poeta, que confessa:
O que costumava amar, já não amo; minto: amo, mas amo menos; ainda assim continuo a mentir: amo, mas mais envergonhadamente, mais tristemente; agora é que disse a verdade. De fato é assim: amo, mas desejaria não amar o que amo, desejaria odiá-lo; amo, todavia, mas sem querer, mas coagido, mas triste e em pranto. E, mísero, em mim mesmo experimento aquele famosíssimo dito: Odiarei se puder, se não, amarei apesar de mim (MOURA, 2003, p. 28).
E, apesar de si mesmo, o poeta não consegue deixar de amar Laura, cuja presença material, embora envolta sob um véu espiritualizante, aguça o desejo e desafia a razão. O amante, em guerra consigo, hesita entre o amor humano e o divino, entre a mulher e o anjo entre o sonho e a realidade. Reconhecendo a força do inimigo, mas não abrindo mão da lucidez analítica que lhe é inerente, não concede ao Amor total controle sobre si, mas não
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perde de vista igualmente que o ser humano não está isento de seus efeitos. Ou seja, se para ele o Amor não é um imperativo transcendente, de acordo com a concepção stilnovista, também não pode abrir mão do objeto, em nome de regras morais impostas pela tradição cortês ou pela ética cristã.
O soneto de Camões relê a tradição petrarquiana de modo diverso, mostrando que, se no Maneirismo o código petrarquista continua a gozar de grande prestígio, a recriação e a releitura dessas referências tende a se distanciar cada vez mais da imitação direta, enfatizando os processos de transformação.
Os textos refletem a interioridade de dois sujeitos líricos que experimentam um comum sentimento de vergonha. Se no primeiro, vergonha e arrependimento decorrem da alienação provocada pelos amores da juventude, que desviam o ser humano de seus mais nobres objetivos, e, em última instância, são inspirados em princípios morais tributários de uma ótica religiosa; no segundo caso, o sujeito não espera perdão ou piedade para suas falhas. Suas queixas se voltam contra Amor, qualificado aqui como “molesto”. O v.1 atesta a dificuldade de compreensão de um sentimento que não pode ser racionalmente explicado, mas que para ser plenamente compreendido exige ser conhecido em plenitude. O conhecimento se faz pela via da dor e da desonra chegando a transformar o próprio sentimento em seu contrário (“de dor em dor me tens trazido a parte/ onde em ti ódio, e ira se converte), acrescentando-se ainda mais. O sujeito, para quem não faltavam “experiência e arte”, não imaginava que Amor pudesse plantar-lhe na alma “aquilo que era causa de perder-se”. Não revelado (“secreto em meu peito”), porém, o sentimento o tinha sob total domínio (“não sabia/ que me senhoreavas desse jeito”), e o sujeito, que o guardava, desconhecia a força do tirano. O último terceto traz a revelação: (“descobriste-te”) e de tal modo (“e foi por via”) “que o teu descobrimento e meu defeito, /um me envergonha e outro me injuria”. O espanto que abala e abate o sujeito inclui a certeza do jugo e da inexorável impotência frente ao opressor.
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por Amor para colocar à prova este sujeito e para se dar a conhecer inteiramente a quem julgava que já tivesse provado todos os tormentos possíveis.
Através de recursos largamente utilizados pelo código petrarquista, tais como a antítese ou a enumeração, cujo emprego tende a realçar a inquietude e o sentido de fragmentação que o dominam, explicita-se o drama do sujeito. Também aqui a sintaxe meândrica tanto dá voz à interioridade do eu lírico, quanto atesta a presença do dissídio e a vivência de dispersão. Uma série de entidades que conspiram contra ele, como o fado, a estrela, o tempo e o acaso costumam ampliar o sofrimento inflingido por Amor. Aliada a uma ou a todas estas circunstâncias, a experiência amorosa será responsável pelos tormentos experimentados.
O sentimento comum nos dois textos é motivado por causas distintas. Em Petrarca, através da memória e de uma postura eminentemente analítica, o sujeito lírico julga os atos do passado e os excessos amorosos cometidos na juventude que o conduziram à alienação e ao posterior arrependimento. A vergonha procede da culpa. Em Camões, não são os imperativos morais ou religiosos que precedem ao julgamento, mas os ontológicos. A vergonha é motivada pela submissão e humilhação de um sujeito que ama tanto mais, quanto mais indigno parece ser o objeto deste amor. Por outro lado, a insegurança e o assombro avultam frente ao fato de o sujeito desconhecer a força deste amor, apesar da experiência passada. Tal desconhecimento conhece que nem o próprio Amor tem leis constantes, o que amplifica o nível de insegurança. A propósito do universo camoniano, Rita Marnoto considera que embora o sujeito
possa distinguir com a maior lucidez, por via intelectiva, os caminhos do bem, as suas opções levam-no à imperfeição (…). Nesse ponto o amante carece daquela força volitiva que, segundo Santo Agostinho, é absolutamente necessária ao efetivo domínio das paixões e cuja ausência o lança irremediavelmente para o estado de dissídio (MARNOTO, 2007, p. 20).
A tensão opositiva que em Petrarca acaba por ser neutralizada pela via da sublimação é extrapolada no universo camoniano, ocasionando os sentimentos de desconcerto e desvalia. A intensificação do dissídio decorre de dois processos conceituais que não podem ser ignorados: a presença do tardo-gótico, inerente à cosmovisão maneirista, e a inquietude, como consequência da “ordem desagregadora decorrente da tensão neoplatônica” (MARNOTO, 2007, p. 15). Contudo, a lírica camoniana não se afina com a teoria do conhecimento
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ficiniana, que se desenvolve em dois momentos distintos: o primeiro, “de inquietude, que leva o homem a buscar um maior grau de certezas no mundo exterior”; e o segundo, puramente contemplativo, que permite a ascensão a Deus “num único pensamento sistemático e que graças ao movimento ascendente da alma resolve a inquietude tacitamente pressuposta”. No universo camoniano só o primeiro prospera, pois as certezas se transformam cada vez mais em incertezas, na medida em que decorre o tempo e se enriquece a experiência vital. Por outro lado, a ascensão espiritual tentada através de um percurso intelectual em Camões é sempre falhada, uma vez que para o poeta os afetos terrenos e a comunhão com o divino compartilham planos distintos.
Também aqui, não se trata de cantar a palinódia, como no soneto petrarquiano, já que remorsos só cabem quando o sujeito pode exercitar o livre-arbítrio. Para o lírico português, a experiência amorosa é algo que foge ao controle do indivíduo, só lhe restando sofrer passivamente os efeitos de Amor, sem qualquer prerrogativa de escolha. Aqui fica muito evidente a crítica à falência da razão para explicar o que já em outros momentos a poesia camoniana parecia compreender muito bem: “Amor não se rege por rezão”. Deste modo, não cabem remorsos, mas vergonha, resultante da impotência. O estado de dissídio é levado às últimas consequências.
Na poesia de Petrarca, o equilíbrio e a harmonia inerentes ao clima mental do Renascimento não propiciavam a instauração de tal nível de fratura na interioridade do sujeito; já a cosmovisão maneirista, refletindo as sucessivas crises sociais, mentais e espirituais que assolaram o séc. XVI, ao favorecerem tal estado de espírito, impunham uma releitura e reatualização do código petrarquista. A lírica camoniana expõe não só a subjetividade de um ser cindido, mas sobretudo a dor de um século fragmentado, em que a razão humana, impotente para explicar as circunstâncias adversas que se lhe sobrepõem ao destino, só encontra na desrazão o sentido do mundo. Para o sujeito não há qualquer solução possível.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Sonetos de Camões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2004.
MARNOTO, Rita. A Vita Nova de Dante Alighieri. Lisboa: Colibri, 2001.
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_______. Sete ensaios camonianos. Coimbra: Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2007. Col. Estudos Camonianos, v.3.
PETRARCA. As rimas de Petrarca. Trad. Vasco Graça Moura. Lisboa: Bertrand, 2003.
SILVA, Vítor Manuel de A. Camões: labirintos e fascínios. 2ª ed., Lisboa: Cotovia, 1999.
1 Como esclarece Rita Marnoto: “Estes poetas, cuja localização geográfica não é exclusivamente toscana, situam-se numa área de encontro entre influências meridionais e setentrionais. Ao usarem o vulgar de sua região como língua de poesia, seguem o exemplo dos seus ilustres predecessores sicilianos, dos quais herdam temas, imagens, alguns traços da língua e uma forma de expressão poética capital – o soneto. Mas a proximidade de uma tradição trovadoresca, que a partir dos finais do século XII tinha vindo a ser filtrada e adaptada ao clima cultural do Norte, fornece-lhes, simultaneamente, ricas sugestões. A recuperação do sirventês e o tratamento de assuntos de caráter histórico e político respondia aos anseios de intervenção dos grupos sociais emergentes, por entre a grande variedade de interesses de um público substancialmente alargado, ao passo que o aperfeiçoamento a que foi sujeita a estrutura compositiva da balada prenuncia a grande estação do lirismo toscano do séc. XIV”. O mais destacado poeta desse movimento é Guittone d’Arezzo. (MARNOTO, Rita. A Vita Nova de Dante Alighieri. Lisboa: Colibri, 2001, p.24).
4 As duas versões do soneto petrarquista foram transcritas da edição preparada por Vasco Graça Moura.
5 O soneto camoniano integra o corpus minimum, com tríplice testemunho quinhentista, figurando nas seguintes fontes da tradição manuscrita: CrB – 66; LF – 132; MA – 18v. Texto estabelecido criticamente por Leodegário A. de Azevedo Filho, partindo da lição manuscrita em confronto com a tradição impressa.
Marina Machado Rodrigues
Doutora em Letras, UFF, 2006
Professora Adjunta, UERJ
Programa de Pós-Graduação em Letras, UERJ
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero11/mariana.html
Número 11 (2009) - ISSN 1981-870X