Resenha
Era uma vez um Alferes e outras histórias
CARVALHO, Mário de. Era uma vez um alferes e outras histórias. São Paulo: Cia das Letras, 2008, 307p.
Flavio García
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
flavgarc@gmail.com
Era uma vez um alferes e outras histórias é a estréia, no mercado editorial brasileiro, do contista português Mário de Carvalho, que, em 2005, com Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto (São Paulo: Cia das Letras) e, em 2006, com Um Deus passeando pela brisa da tarde (São Paulo: Cia das Letras), já estreara como romancista.
Era uma vez um alferes e outras histórias, conforme adverte o Editor brasileiro, “reúne os contos originalmente publicados em Casos do Beco das Sardinheiras (1982), Os alferes (1989) e Quatrocentos mil sestércios seguido de O conde Jano (1991)”. Casos do Beco das Sardinheiras, teve sua primeira edição em 1982 (Lisboa: Veja) e conta com várias reedições e reimpressões, sendo a mais recente de 2004 (Lisboa: Caminho); Os alferes, publicado em 1989 (Lisboa: Caminho), reúne contos antes já publicados esparsamente ou em outras antologias do autor; Quatrocentos mil sestércios seguido de O conde Jano foi publicado em 1991(Lisboa: Caminho).
O título da edição brasileira – Era uma vez um alferes – advém de um dos contos de Os alferes, publicado isoladamente em 1984 (Lisboa: Rolim). Os alferes se compõe de três narrativas: “A última cavalgada”, “Há bens que vêm por mal” (já anteriormente publicado em Contos Soltos, Lisboa: Quatro Elementos, 1985 – título jamais reeditado ou reimpresso, do qual quase não se tem notícias nas histórias literárias e na bibliografia do autor.) e “Era uma vez um alferes”. A unidade do volume se dá pela presença, nas três narrativas, da(s) personagem(ns) alferes, envolvida(s) ou nas guerras de África (“A última cavalgada” e “Era uma vez um alferes”) ou no Timor (“Há bens que vêm por mal”). Nesses relatos, o autor problematiza a história recente de Portugal e suas relações com as ex-colônias, refletindo, ainda, mesmo que de maneira indireta, sobre sua própria biografia, como ele mesmo admite em entrevista dada à Revista Ler (“Alguma coisa me perturba” In: Ler nº 34. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p. 38-49.), ao comentar que, quando saiu da prisão, uma vez que fora preso pelo regime salazarista, acusado de ações subversivas, “soube, por via
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muito segura, que estava destinado à Companhia Disciplinar de Penamacor, para onde eram remetidos todos os cadastrados de delito comum (...). Também muitos presos políticos passaram por lá. Iam como soldados rasos e as funções na Guerra Colonial eram as mais perigosas: desmontagem de minas e coisas desse gênero”. Na altura, Mário de Carvalho “achou que era de mais e resolveu sair do País”. Mas sua personagem em “Era uma vez um alferes” age diferentemente do autor, que “esteve exilado em França e Suécia, regressando após o 25 de Abril de 1974”, que o surpreendeu na Suécia. A personagem carvalhiana lamenta não ter fugido em exílio e ter acabado ali em África – “Maldita Nhambire, maldita África. África das cores fortes, da imundície, das doenças podres, da crueldade tão animalesca, quase inocente.” –, segundo informa o narrador: “O alferes não queria, não queria estar ali. E mais uma vez se recriminava por não ter desandado para Paris como outros, pela ingenuidade de se deixar vir para onde vinha o povo, para enquadrar o povo fardado. O seu dever...”. Dos três livros originários que compõem a edição brasileira de Era uma vez um alferes e outras histórias, este apresenta notável singularidade em relação aos demais, afastando-se da poética do insólito que permeia quase toda a narrativa curta do autor, conforme se verifica, por exemplo, em Contos da sétima esfera (Lisboa: Vega, 1981) e A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho e outras histórias (Lisboa: Rolim, 1983), além, é claro, de Caos do Beco das Sardinherias e Quatrocentos mil sestércios seguido de O conde Jano.
Quatrocentos mil sestércios seguido de O conde Jano é a reunião de duas únicas narrativas, ambas anunciadas no próprio título do volume originário, que se referem aos períodos antigo e medievo, ficcionalizando relações da portugalidade. Em “Quatrocentos mil sestércios”, a história se passa em Olisipo, com o que o autor resgata a ancestral fase românica da capital lusitana, forjando origens helênicas, por assim dizer, para a nacionalidade portuguesa. Em “O conde Jano”, como admite o próprio escritor, a história é baseada “num antigo rimance popular”, do qual se encontram várias versões “nos romanceiros de Garrett e Teófilo”, lá nomeadas por “‘Conde Alberto’, ‘Conde Alves’, ‘Silvana’, ‘Conde Alarcos’, ‘Conde Yanno’, ‘Conde Iano’, etc.”, mas que preferiu “chamar-lhe ‘O conde Jano’.” A intertextualidade que essas narrativas estabelecem com textos da História, em sentido lato, é muito clara, desconstruindo, pela via do inusitado, do inesperado, do inaudito, portanto do insólito, versões assentes na tradição e na memória históricas portuguesas, para ressignificar valores. Em comparação direta com os relatos de Os alferes, cabe realçar o recurso à poética do insólito, quase ausente nos episódios de África ou Timor que compõem a trama das narrativas daquele volume, à exceção de um insólito absurdo – de todo surpreendente – que se pode apontar em “Era uma vez um alferes”. Trata-se de um Mário de Carvalho no entre-lugar da história e da ficção, fugindo do sistema literário real-naturalista, já antes muito utilizado para abordar temas históricos, e recorrendo a estratégias de construção narrativa correlacionáveis ao Fantástico, ao
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Realismo Maravilhoso, ao Absurdo, como ferramentas de desconstrução/reconstrução da identidade nacional portuguesa.
Casos do Beco das Sardinheiras é singular. Todas as suas onze narrativas, emolduradas por um Prólogo de fundamentação real-naturalista e um Epílogo explicitamente inusitado, têm eventos insólitos não ocasionais como seus móveis e apresentam marcas da banalização do insólito por parte do narrador e das personagens. Bocejando distraidamente, Andrade da Mula engole a Lua; Tareca, a gatinha, dá à luz apenas um filhote, que crescerá para além do normal, terá por gosto devorar fardados e terminará em terras de Espanha alimentando-se de guardas civis; sem explicação segura, uma corda pende do ceu e lá fica sobre o Beco, até, igualmente sem explicação, desaparecer; os homens da Companhia, que escavavam próximo ao Beco para reparar um cano, esbarraram numa pedra preta, do tamanho de uma mão, que nenhum homem conseguia mover, mas o pequeno Pedrinho, sem esforço tira-a e repõe-na no lugar como Artur fizera com Excalibur; brincando no quarto da gateira, o menino Pedro e seus colegas movem um volante que faz cair do céu uma torneira d’água, destroçando o calçamento do Beco, o que só cessa quando tornam o volante à posição anterior; Marina Moita e Zeca da Carris compram uma máquina de costura de segunda mão que, estranhamente, gela tudo à volta e acaba servindo de frigorífico; Quim Ambrósio toma uma pancada em lado da cabeça e passa a não entender o que falam em português e, como remédio, dão-lhe uma pancada no lado oposto, e ele passa a entender mas a falar em outra língua que ninguém entende; Lecas Pasteleria acorda assombrada por uma nuvem que chove e relampagueia sobre ela, em seu socorro, todos perseguem a nuvem que, presa em um balde, acaba enterrada, ligam um cano com bica ao balde, e transforma-se em um chafariz, que a Companhia d’águas quer encerrar por não ser legal; Tó Valente dá a seu tio Bento, recém viúvo e vindo com ele morar, um trombone para o entreter, mas o trombone, sempre que tocado, suga e engole, fazendo desaparecer, tudo à volta; uma caixa dos Correios abre passagem estranhamente para outro lugar, sugerido ser a parte contrária do mundo, de onde vem um pequeno chinesinho; um padre alentejano faz experiências fora da ordem e da normalidade, alterando a rotina – já nada rotineira – do Beco. São onze casos sem pé nem cabeça, se lidos a partir da lógica exterior às narrativas, mas cuja verossimilhança narrativa interna é exemplar. Como adverte a personagem-narrador ao final do Prólogo, “de resto, o que acontece no Beco das Sardinheiras não difere do que se passa noutro lado qualquer, desde Benfica à Ajuda. A questão é estar-se atento, abrir-se bem os olhos.”
Enfim, ler Era uma vez um alferes e outras histórias, recém publicado no Brasil (2008), é adentrar o vasto e diversificado universo da narrativa curta de Mário de Carvalho e, estando atento e de olhos bem abertos, deparar com um conjunto orgânico e sistêmico surpreendente, ainda que
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sempre se espere o encontro com o insólito, já que o narrador carvalhiano não conduz o leitor pela mão aonde o que levar, mas lhe diz “sei por onde vou, vou por aqui... e, querendo, vem comigo”. E se o leitor não quiser, não lhe restará escolha, pois os labirintos construídos por Mário de Carvalho não têm saídas fáceis, aliás, talvez nem mesmo tenham saída.
Flavio García
Doutor em Letras (Literatura Portuguesa), PUC, 1999
Professor Adjunto de Literatura Portuguesa, UERJ
Professor do Programa de Pós Graduação em Letras, UERJ
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
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Número 11 (2009) - ISSN 1981-870X