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Tornar-se outro: A obra do jovem Lobo Antunes e o romance de formação
Gustavo Silveira Ribeiro
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
gutosr1@hotmail.com
Resumo:
Tornar-se outro: a obra do jovem Lobo Antunes e o romance de formação
Este artigo se propõe a ler os três primeiros livros de António Lobo Antunes, Memória de elefante (1979), Os cus de Judas (79) e Conhecimento do inferno (80) como um só “romance de formação”. Partindo da ideia de que eles constituem uma trilogia de acentuado caráter autobiográfico, procurei mostrar como as experiências-limite neles narradas, que incluem a solidão, a proximidade da morte e o contato com a loucura, contribuíram para uma formação em negativo de seu(s) protagonista(s), na qual o conhecimento da dor se dá ao mesmo tempo em que se processa uma difícil aprendizagem da escrita.
Palavras-chave: Romance de formação. Literatura portuguesa contemporânea. Ficção autobiográfica. Lobo Antunes.
Abstract:
On becoming another: Lobo Antunes´ work as a young writer and the novel of formation
The purpose of this article is to examine the first three novels written by António Lobo Antunes – Memória de elefante (1979), Os cus de Judas (79) e Conhecimento do inferno (80) – understanding them as one single novel of formation. Taking as a starting point the assumption that they constitute a trilogy characterized by its pronounced autobiographical nature, I try to show how the extreme experiences narrated in the novels (including the feelings of solitude, proximity with death and contact with madness) have contributed to the negative formation of their protagonists, a process in which the knowledge of pain overlaps with the hard task of learning how to write about it.
Keywords: Novel of formation. Contemporary Portuguese literature. Autobiographical fiction. Lobo Antunes.
1. Bildungsroman: origem e desdobramentos
O percurso do bildungsroman na história da literatura ocidental é curioso: surgido num contexto histórico-social particular, em fins do século XVIII na Alemanha, e tendo suas propostas estéticas e ideológicas muito ligadas a ele, esse gênero, no entanto, sobreviveu, adaptou-se a outras demandas históricas e passou por diversas transformações até firmar-se como modelo narrativo importante e bastante praticado. Goethe, seu primeiro teórico e realizador, além de Flaubert, Joyce e Proust são alguns dos autores que têm suas obras ligadas ao romance de
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formação. No Brasil, Jorge Amado e Graciliano Ramos, por exemplo, também flertaram com ele. Em meio a essa pluralidade de escritores e obras, caberia perguntar o que definiu e o que ainda define o bildungsroman como forma literária específica, ao que se pode responder: o centro dessa forma foi e continua sendo a história de uma personalidade, a formação – ou a dissolução – de um caráter que se transforma diante dos olhos do leitor.
O longo romance goethiano Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister é, segundo Wilma Patrícia Maas, o “cânone mínimo do romance de formação” (MAAS, 1999, p.13). Publicado em duas partes nos anos de 1795 e 1796, o livro narra a história do pequeno-burguês Wilhelm Meister, jovem filho de comerciantes que busca desenvolver suas aptidões e encontrar para si um lugar na fechada sociedade alemã de seu tempo. Abrindo mão do futuro que lhe estava reservado, tocar os negócios da família, Wilhelm procura uma formação humanista e universal, estudando diferentes disciplinas e dedicando-se a muitas atividades artísticas, dentre elas o teatro. Depois de peregrinar por alguns anos pela Alemanha e pela Itália, o protagonista acaba por encontrar no casamento com uma jovem aristocrata a resposta para algumas das questões existenciais que o acompanhavam desde o início de sua trajetória. O crescimento intelectual e afetivo do personagem, bem como o sentido social de sua “aprendizagem”, foram as questões decisivas da narrativa que contribuíram para a consolidação do gênero, questões essas ligadas profundamente à época em que a obra foi redigida e publicada.
Surgido num tempo de efervescência política e cultural na Europa, os anos imediatamente posteriores à Revolução Francesa, Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister é testemunha do singular desenvolvimento social alemão daquele período. A partir do relato de uma vida particular, o romance traça um panorama coletivo amplo, descrevendo a transformação por que passavam as classes sociais naquele país no auge da luta ideológica entre o conservadorismo do Antigo Regime e as novas forças sociais de inspiração iluminista.
Como se sabe, a Alemanha foi uma das últimas nações européias a unificar seu território e a afirmar-se como Estado nacional. A burguesia, apesar de possuir prestígio econômico cada vez mais destacado, ainda não havia se alçado a classe dominante no campo político. O país era dirigido por uma aristocracia feudal esclarecida e requintada, ligada às artes e à cultura, mas que
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mantinha boa parte de suas províncias num universo precariamente camponês. A divisão das classes sociais era bastante nítida, o que acarretava uma pré-determinação do futuro: o nascimento, de um modo geral, indicava a educação, o trabalho e as demais práticas sociais que o indivíduo poderia ter.
A história de Wilhelm Meister, a história de uma busca solitária que luta contra as amarras sociais de um destino limitado, pode ser vista como correlato objetivo da luta de parte da intelectualidade alemã, de origem burguesa, por espaço e visibilidade. Insatisfeitos com as perspectivas de uma vida mercantil vazia e repetitiva que lhes estava destinada, e desejosos da liberdade de espírito de que desfrutava a aristocracia, esses intelectuais – dentre os quais se pode situar o próprio Goethe, ainda segundo Wilma P. Maas – cultivaram o ideal de uma formação universalizante, artística e científica, próxima das propostas do Iluminismo. Entregando-se à experiência vária do mundo, Wilhelm desenvolve suas potencialidades ao longo do romance e acaba estabilizando-se economicamente (ainda que pelo matrimônio com alguém de outra classe), indicando o caminho a ser seguido a toda uma classe que almejava deixar para trás o papel secundário que exercia até então.
Nesse sentido, pode-se dizer que o romance de formação nasceu sob o influxo de um debate que transcendia a própria literatura. Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, no entanto, transcendeu, por sua vez, a problemática particular de seu tempo e o debate ideológico de que participou. Além de servir como modelo artístico e existencial para o novo homem e a nova arte que surgiam com a ascensão da burguesia, o bildungsroman de Goethe descortinava um novo modo de conceber o próprio romance. Funcionando como uma espécie de súmula de outras formas narrativas, notadamente o livro de viagens e os relatos religiosos dos séculos anteriores, o texto goethiano sistematizou um dos temas centrais da literatura do século XIX, e que iria persistir também no século XX, garantindo a sobrevivência do gênero até os dias atuais: a formação e desenvolvimento de uma personalidade, seja ela representativa ou não de um dado contexto social.
Afastada do primeiro plano a perspectiva sócio-política que marcou o surgimento do bildungsroman, o gênero foi gradativamente se transformando com o passar dos anos. Lembro aqui duas obras que bastam para observar isso. A Educação sentimental, de Flaubert, texto que
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pode ser lido como um romance de formação, deu ênfase à questão da experiência amorosa como elemento formador do indivíduo; a passagem que o protagonista empreende entre a ingenuidade da vida e do amor à desilusão amarga com a existência apresentam ao leitor as transformações que o tempo imprime em sua personalidade. Sem ater-se apenas ao desenvolvimento pessoal de Frédéric Moreau, sua figura principal, o livro de Flaubert, entretanto, utiliza-se da idéia goethiana de bildung para refletir sobre a força derrisória do tempo sobre as paixões humanas. Aparece com enorme força, nesse livro, o tema “perda da inocência”.
Exemplo mais interessante de obra que dialoga com o romance de formação, já no século XX, é o Retrato do artista quando jovem , de James Joyce. Esse romance, de clara conotação autobiográfica, relata trechos da infância e adolescência de Stephen Dedalus, protagonista do livro e alter ego do autor. Dedalus vai ser apresentado como um personagem solitário, sensível à arte e distante tanto dos seus familiares quanto do ambiente social em que vive. O excesso de rigor de sua educação católica e o radicalismo político dos jovens irlandeses de sua idade o afastam da convivência comum, fazendo com que ele se dedique cada vez mais à leitura e ao devaneio, o que vai prenunciar – como o título do volume já deixa explícito – o futuro escritor que o livro está descrevendo.
O que está em jogo aqui, ao contrário do romance de Flaubert, é a questão da não identificação do protagonista com o seu meio. A formação de Dedalus se dá muito mais pela denegação do mundo circundante do que pelo mergulho nele. Se em Educação sentimental está encenada a “perda da inocência”, como uma aprendizagem negativa, em Joyce o que se coloca como ponto central é o nascimento do artista, apresentado desde o início como uma espécie de “ser de exceção” – fato que conecta a narrativa de Joyce com a proposta do bildungsroman goethiano do “desenvolvimento das potencialidades do indivíduo”. Ambas as obras, no entanto, podem ser compreendidas como retomadas, em outro momento histórico e com outro efeito estético, do romance de formação germânico, o que as tornará também novos modelos para o gênero, demonstrando a sua maleabilidade e persistência na tradição literária do ocidente.
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2. Três romances de António Lobo Antunes
Publicados num curtíssimo espaço de tempo, Memória de elefante (1979), Os cus de Judas (1979)e Conhecimento do inferno (1980), os três primeiros livros do escritor português António Lobo Antunes podem ser considerados como narrativas que dialogam, contemporaneamente, com o romance de formação. É comum a crítica referir-se a eles como uma trilogia, dada a grande quantidade de temas, procedimentos estilísticos e técnicas narrativas que se repetem de livro para livro. A mesma voz apresenta as três histórias, e parece não haver nenhum constrangimento por parte do autor em deixar claro que estão interligadas.
O mesmo personagem, um médico psiquiatra, trinta e poucos anos, separado, ex-combatente da guerra de Angola, ao que tudo indica um duplo do autor, narra sua própria história nos três romances, ora optando por ver-se à distância, através do uso de uma terceira pessoa que não chega a dar objetividade ao relato, ora falando em seu próprio nome, na primeira pessoa. A matéria narrativa é diferente em cada um dos romances, mas todos são compostos segundo a técnica da mescla de tempos distintos. A partir da narração de fatos de uma situação qualquer, que parte geralmente de simples cenas cotidianas, o narrador vai interpolando a elas sucessivas camadas de memórias, formando assim o corpo de seus romances. O conteúdo de suas lembranças é vasto, mas circula sempre pelos mesmos motivos que vão se repetindo, aliado a outros elementos que conferem unidade aos textos: o fracasso de seu casamento e a atroz solidão que o acomete; a experiência da guerra colonial e os horrores do confronto com a violência e a morte; seu trabalho num hospital psiquiátrico de Lisboa, onde se defronta diariamente com a dor e a miséria dos pacientes e dos métodos usados para tratá-los.
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respectivamente, das três narrativas, são exemplos disso. Em Memória de Elefante, há a constatação do fracasso existencial: “Quando é que eu me fodi?, perguntou-se o psiquiatra” (ANTUNES, 2006, p. 25); em Os cus de Judas, o confronto entre passado e presente traz à tona as consequências do período na África: “Talvez que a guerra tenha ajudado a fazer de mim o que sou hoje” (ANTUNES, 2003, p. 69); e, finalmente, em Conhecimento do inferno, o convívio degradante com o sofrimento dos doentes mentais leva à internalização da condição de médico, chamado ironicamente “carcereiro” pelo próprio narrador: “Nunca saí do hospital, pensou ele, nunca sairei do hospital” (ANTUNES, 2006, p. 113).
Em todos esses trechos, e em vários outros, o contraste entre passado e presente salta aos olhos e faz pensar a relação que a trilogia de Lobo Antunes mantém com a idéia da bildung. Diferente do sentido humanista que o termo tem na literatura romântica alemã, para Lobo Antunes a “formação” parece se dar em termos negativos, num misto do que ela representou, segundo propus anteriormente, para os personagens de Flaubert e Joyce. Formar-se, para o autor de Esplendor de Portugal, quer dizer perder algo, degradar-se um pouco mais, assimilar o sinal de menos que o estar-no-mundo proporciona. Do mesmo modo que Stephen Dedalus repudiou uma realidade estranha a si e Frédéric Moreau teve de desiludir-se com os homens para que ambos pudessem ter a sua aprendizagem, as criações de Lobo Antunes têm de descer à mais funda abjeção para ter as suas.
A frustração amorosa e existencial, o contato prematuro com a morte e a loucura parecem ter descortinado ao(s) narrador(es) antuniano(s) um horizonte sem perspectiva, uma ruptura dolorosa com qualquer esperança anteriormente nutrida, o que contribuiu como fator decisivo para a formação da persona literária e humana que se vai mostrando ao leitor à medida que avança na leitura dos textos. Para corroborar essa hipótese de leitura, de que a formação nos romances do jovem Lobo Antunes se dá como perda, analisarei algumas das características do estilo e das técnicas narrativas empregadas por ele, bem como seus temas mais frequentes. No intuito de facilitar a exposição, passo a enfocar cada romance separadamente, para depois tornar a reuni-los mais à frente.
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Memória de elefante
Relato que acompanha um dia na vida do narrador, o psiquiatra que já conhecemos, Memória de elefante usa, assim como o terceiro livro que compõe a trilogia, um recurso narrativo muito comum aos romances que se aproximam do conceito de “formação”: o livro está organizado como um périplo, uma pequena viagem. Aqui, por Lisboa, cidade onde transcorrem os sucessos corriqueiros que são o estofo narrativo do volume. Do hospital em que trabalha pela manhã, o médico parte para uma jornada bastante prosaica: ir ao dentista, almoçar com um amigo, ir à sessão de análise de grupo, ver as filhas à porta da escola, beber e retornar a seu apartamento, já alta madrugada, na companhia de uma prostituta barata e decrépita. Todos os pontos de seu percurso, no entanto, pontuam-se de reflexões e lembranças, a maioria delas associada à recente e dolorosa separação da mulher. E esse caráter de busca, simbolizado no romance pela viagem, no plano espacial, através da capital portuguesa, e nas voltas da memória, no plano temporal, é o que ressalta o aspecto “formador” dessa narrativa: são deslocamentos empreendidos por um narrador à procura de si mesmo, sequioso de autoavaliação, e que só encontra em si e no mundo queda e degradação.
Como afirmei acima, a guerra, a falta de sentido da vida e a loucura estão presentes nos monólogos do narrador nos três romances, mas parece que cada um deles dá destaque a um desses temas de modo especial. Em Memória de elefante, a solidão e a incomunicabilidade ocupam a maior parte do espaço. O vazio existencial do protagonista aparece a cada passo, e é essa a sua aprendizagem: ao repensar, num dia comum, suas experiências familiares e amorosas, ele se descobre irremediavelmente só, rodeado de outras pessoas também elas sós, isoladas em suas ilhas de incomunicabilidade. A certa altura afirma: “Cheguei ao fundo dos fundos, pensou o psiquiatra, e não tenho certeza de conseguir sair dos limos onde estou” (ANTUNES, 2006, p.76), frase que, com variações, se repete o romance inteiro a repercutir para o leitor o estado de ânimo do narrador.
Por fim, a consciência de seu atual estado, o “isto em que me transformei”, alcança pontos altos de tensão dramática no livro em duas cenas decisivas: a observação das filhas, de longe, e o encontro erótico final com a prostituta. A primeira, que transcorre no fim da tarde, faz contrastar
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a inocência pura da infância, inocência das filhas que o narrador localiza também em seu próprio passado, e a situação presente dele mesmo e dos que o cercam. Depois de algumas páginas de digressões líricas acerca das crianças, nas quais as observa sem ser visto do balcão de um bar, surge uma interpelação inesperada, que expõe toda a crueza do ambiente e sua abissal diferença em relação ao olhar claro das filhas. Um mendigo, que havia estado próximo do narrador enquanto este olhava melancólico suas meninas, pergunta: “Dão-te tesão, ó malacueco?”, sobre o que anota, perplexo: “E pela segunda vez nesse dia o psiquiatra teve vontade de se vomitar a si próprio, longamente, até ficar vazio de todo o lastro de merda que tinha”. (ANTUNES, 2006, p. 121)
Marcante também será o encontro noturno com a garota de programa. Por ele confirmamos que o narrador sabe de sua degradação, sabe no que a falta de sentido e a incomunicabilidade que o oprime o transformaram. Após apresentar a triste condição da mulher, um ser carente e falastrão, de aparência repugnante, que tenta preencher seu vazio com um discurso ainda mais vazio, o narrador conclui pela indiferenciação de ambos:
no fundo não eram diversos um do outro, e em certo sentido os seus frenéticos combates aparentavam-se: fugiam ambos à mesma solidão impossível de aguentar. (ANTUNES, 2006, p. 194)
Os cus de Judas
Se em Memória de elefante a ênfase recai na solidão do protagonista, nesse segundo romance de Lobo Antunes é a experiência da guerra colonial o que vai motivar o relato e servir como índice da formação de seu narrador. Organizado como uma espécie de abecedário da dor, o livro desde o início deixa explícita sua ligação com o bildungsroman. Estruturado como um falso diálogo do narrador com uma mulher num bar, à noite, só conhecemos de fato a sua voz. Ele narra as suas memórias da guerra de Angola de modo mais ou menos progressivo, entremeando o relato com algumas digressões sobre o ambiente em que se encontram, a bebida que tomam e as insinuações de uma relação sexual que se concretiza nos capítulos finais do romance. A memória, mais uma vez, funciona como motor da narrativa, que vai entrecruzando sucessivas lembranças num movimento contínuo de busca por sentido.
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De “A” a “Z”, Lobo Antunes passeia por tempos distintos, ligados por algum acontecimento da guerra colonial, episódio que vai servindo como fio condutor de seu monólogo. A perspectiva de que essa experiência-limite terá um sentido de aprendizado fica clara desde o capítulo de abertura. Nele, ao focalizar cenas de sua infância, o narrador ironicamente refere-se à profecia de uma tia sobre sua futura incorporação militar: “Felizmente que a tropa há de torná-lo um homem” (ANTUNES, 2003, p. 15). Ao fim do romance, depois de expor o horror do contato com a mutilação, a crueldade e a morte que a guerra proporcionou para si, o narrador relembra essa mesma parenta e retoma sua inventiva para concluir por sua formação negativa e vazia, desumanizadora até: “Estás mais magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mas contigo não há nada a fazer” (ANTUNES, 2003, p. 241).
A própria divisão dos capítulos da obra, um ABC, traz a idéia de aprendizado e formação. Percorrer as letras: absorver o contato com o mundo e o que ele proporciona. O aspecto negativo da experiência formadora, na literatura de António Lobo Antunes, nunca foi tão claro como nesse romance, um dos mais populares do autor. “A dolorosa aprendizagem da agonia” (ANTUNES, 2003, p. 43), trecho final do capítulo D, no qual se inicia a narrativa da guerra, explicita isso, e, talvez por esse motivo, é o título que Maria Alzira Seixo escolhe para seu interessante estudo da obra incluído em Os romances de António Lobo Antunes. Apesar de não se concentrar no problema da formação propriamente dita, Seixo acaba por explorar indiretamente o tema, fazendo uma leitura da obra mais próxima do seu significado político-ideológico.
Apesar de reconhecer a importância dos aspectos históricos de Os cus de Judas, creio ser mais interessante observar nessa obra como um indivíduo, o narrador, relata a falta de lugar que sente após sua passagem pelo exército. O drama existencial dos “retornados” (nome dado aos portugueses que viveram ou lutaram em Angola), já de algum modo exposto no romance anterior, apesar das diferenças de foco das duas obras, aparece aqui ligado ao absurdo da violência e da carnificina da guerra colonial. Ao olhar para si mesmo enquanto conta suas lembranças da guerra, o narrador tem dificuldade de recompor sua própria imagem. É como se ela tivesse ficado perdida no meio da barbárie vivida na África, e o sentido de sua formação seria aqui, por esse motivo, a perda de sua identidade. Formar-se, nesse romance, é perder seu próprio rosto e as certezas que acompanham cada vida individual.
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A solidão e a incomunicabilidade, temas centrais de Memória de elefante, vão reaparecer n’Os cus de Judas como impossibilidade de fala, como silêncio diante do indizível da guerra. Paradoxalmente essa impossibilidade de diálogo na obra – que pode ser vista, entre outras coisas, na negação da voz do outro, a mulher que o acompanha no bar e que ouve suas lembranças – se traduz num excesso de linguagem. O protagonista fala o tempo todo, e sua linguagem é caracterizada pela demasia de imagens e de metáforas, ou ainda pelas repetições frequentes dos mesmos motivos ao longo de todo o livro. São dois opostos idênticos: seja pela falta, seja pelo exagero, o processo comunicativo se apresenta aqui fraturado.
Por fim, é preciso ressaltar que alguns aspectos da formação daquele que narra se confundem com outra formação, mais ampla e complexa: a de seu próprio país. Ao rever-se como sujeito cindido e sem identidade, despedaçado pela experiência bélica, o narrador, às vezes, retoma temas e personagens tradicionais da história e da literatura portuguesas, o que autoriza dizer que a narrativa de sua formação em negativo pode ser estendida também a Portugal, país que, em meio a sua sangrenta aventura colonial, (des)fez-se como nação. As referências sarcásticas de Lobo Antunes às grandes navegações, ao camoniano gigante Adamastor, à “superioridade ilusória de Antônio Nobre” (ANTUNES, 2003, p. 41) demonstram isso, e podem ser ilustradas com a reflexão final do primeiro capítulo do romance, “A”, agressivamente bem feita ao unir o destino pessoal do protagonista ao da pátria lusitana:
De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida ao Governo que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais, consentindo, num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão agitada e anônima semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir, impotente, à sua própria morte. (ANTUNES, 2003, p. 16)
Conhecimento do inferno
A terceira parte da trilogia antuniana concentra-se no problema da loucura. Nela são reveladas as experiências do narrador no trato das doenças mentais de seus pacientes. O mesmo horror da guerra e a mesma sensação da incomunicabilidade absoluta que o cercam retornam nessa narrativa ligados agora à loucura e à crueldade dos métodos terapêuticos da psiquiatria. Ao
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viajar de carro pelo país, sozinho, o narrador vai recordando-se dos doentes com os quais convive diariamente, bem como dos colegas de profissão, e a partir desse material é que vai ser construído o Conhecimento do inferno.
Desde o seu título é possível sentir a presença da ideia de formação. “Conhecimento” é quase um sinônimo para aprendizagem, conceito caro ao projeto do bildungsroman. A relação do narrador com o microcosmo do hospital Miguel Bombarda, onde trabalha, e com as recordações frequentes do pai, também psiquiatra (e que o levava ali quando pequeno), é marcada pelo aprendizado lento da desrazão de médicos e pacientes, bem como pela absorção de um destino – ser psiquiatra – que lhe estava previamente traçado pela família, mormente pela influência paterna. À parte toda a denúncia que o texto pretende fazer da instituição terrível da psiquiatria, observo no livro, como nos que o precederam, preocupação semelhante do narrador em apresentar-se e avaliar-se perante o leitor, numa investigação desapiedada de si mesmo.
O motivo da viagem retorna em Conhecimento do inferno, acrescentando novos significados ao papel formador que o “deslocar-se” tem na trilogia de Lobo Antunes. Ao percorrer parte do país em seu automóvel, saindo de uma casa de praia da família no Algarve para se dirigir a outra propriedade familiar na Praia das Maçãs, o narrador não só opera um mergulho em si mesmo, como o percurso de Memória de elefante sugeria; sua relação com o pai, bastante ligada a seu presente como psiquiatra, ganha destaque, por mais que não seja referida a cada passo. O círculo que se perfaz na narrativa, de uma casa à outra do pai, não deixa dúvidas quanto à importância que esse tema tem no livro. A cena com o porteiro, logo no segundo capítulo do romance, ilustra isso: “- Raios me partam se não é o filho do senhor professor” (ANTUNES, 2006, p. 28), diz o personagem logo ao ver o narrador chegar ao hospital para seu primeiro dia de trabalho.
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aprendizagem, se a conectarmos com o que ele vai concluir páginas adiante sobre a profissão escolhida, entre divertido e desesperado: “Gaita, se soubesse o que sei hoje tinha seguido dentista” (ANTUNES, 2006, p. 62).
Enquanto o confronto com a morte, nos campos africanos, fez o sujeito da escritura defrontar-se com a vacuidade de sua identidade de português, médico e “homem de bem”, em Conhecimento do inferno a vizinhança da loucura expõe a falência da razão e da ciência diante do imponderável humano, fazendo com que o narrador, jovem de inegável formação científica, perca mais uma de suas referências e contemple, ainda uma vez, a sua transformação num indivíduo esquivo, ontologicamente deslocado, não importando em que lugar se encontre ou que atividade realize. O caráter monstruoso da proximidade da insanidade mental, que fez dessa experiência algo tão impactante, pode ser entrevista nessa brutal comparação entre o que ele já vivera e o que experimentava agora:
Em 1973, eu regressara da guerra e sabia de feridos, do latir, de gemidos na picada, de explosões, de tiros, de minas, de ventres esquartejados pela explosão das armadilhas, sabia de prisioneiros e de bebés assassinados, sabia do sangue derramado e da saudade, mas fora-me poupado o conhecimento do inferno. (ANTUNES, 2006, p. 22)
Interessante aproximar ainda a descrição que Antunes faz dos internos do hospital e a imagem que vai construindo de si ao longo do relato. Ao passo em que os doentes estão despersonalizados, ocos pelo excesso de medicamentos e pela falta de contato com a vida exterior ao hospício, o narrador vai se apresentando ao leitor, sutilmente, numa identificação progressiva com eles. Sua aversão pela profissão e sua descrença nos homens da ciência o mostram tão isolado quanto os domesticados loucos que ele tem de atender diariamente em Miguel Bombarda. A personalidade que sobressai, ao fim da narrativa, é parecida com a que se revela ao longo de Memória de elefante e Os cus de Judas. Perdido entre os demais, esvaziado de certezas e esperanças, o narrador parece confirmar a sua (de)formação inexorável. Ao invés de adquirir ou incorporar experiências do mundo e utilizá-las para o cultivo de si mesmo – tal como sugerira o conceito original de bildung, o narrador da trilogia antuniana vai se despindo de anteparos e com a ausência de tudo construindo (narrando) a sua vida.
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3. A formação do escritor
Até agora não mencionado, há outro elemento presente em todos os romances da trilogia inicial de António Lobo Antunes. Além dos já referidos, o desejo e a experiência da escrita literária perpassam cada um de seus livros, permanecendo como pontos de referência constante do narrador, e que podem servir de base, também, a mais uma consideração acerca do caráter formativo dessas obras do autor de Fado alexandrino.
“- Tens escrito?” (ANTUNES, 2006, p. 70) Com essa pequena pergunta conhecemos no primeiro romance de Lobo Antunes a sua ligação com a literatura. Entrevista apenas em pequenas e diluídas referências anteriores, a representação e algumas reflexões sobre o ato da escrita afloram em meio a Memória de Elefante e se espalham pelos demais romances de modo crescente. Durante o almoço com um amigo, nesse mesmo livro, o narrador comenta ainda: “(...) para o psiquiatra o manuseio das palavras constituía uma espécie de vergonha secreta, obsessão eternamente adiada” (ANTUNES, 2006, p. 70). Essa “obsessão adiada”, entretanto, parece ir-se esvaindo com a dificuldade que o narrador encontra para ajeitar-se no mundo: sua formação desumanizadora que, conforme comentei, abriu uma espécie de fosso entre ele e seus semelhantes, ao que tudo indica, destravou no narrador aquilo que o fazia não escrever. O que era adiamento tornou-se presente, e escrever passou a ser uma obsessão renovada, na prática, diariamente.
Timidez, vaidade, excesso de severidade consigo mesmo: qualquer que fosse o motivo que fazia com que o alter ego de António Lobo Antunes não compusesse seus romances e os desse ao público, ele parece ter-se ido com as outras inúmeras perdas experimentadas pelo narrador ao longo de sua “viagem sem fim ao avesso das coisas” (ANTUNES, 2006, p. 37). Se o casamento, a fé nos homens e o apreço à medicina foram deixados dolorosamente para trás, abriram-se ao(s) protagonista(s) da trilogia antuniana as perspectivas da literatura. Tendo chegado a essa conclusão, recupero aqui o sentido acima discutido do bildungsroman na obra de juventude antuniana e o revejo: não só de perdas e renúncias o trajeto do personagem/escritor se
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fez. A transformação por que passou contemplou também, ainda que isso seja abordado sub-repticiamente nos romances, a ideia de que as experiências-limite da incomunicabilidade, da guerra e da loucura puderam proporcionar, em parte pelo menos, a aprendizagem decisiva da escrita. Tornar-se outro: eis o que, quem sabe, o narrador da trilogia buscou, às vezes sem o saber. E ao longo dessa sua jornada, por fim, surgiu e se impôs diante do leitor a figura de um grande artista, António Lobo Antunes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, António Lobo. Conhecimento do inferno. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2006.
_________ Memória de elefante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
_________ Os cus de Judas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
FLAUBERT, Gustave. A educação sentimental. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Editores, 1963.
GOETHE, Johann Wolfgang. Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister. Trad.de Nicolino Simone Neto. São Paulo: Ed. 34, 2006.
JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. Trad. de José Geraldo Vieira. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1971.
LUKÁCS, Georg. Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister como tentativa de uma síntese. In: Teoria do romance. Trad. de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Ed. 34, 2000.
MAAS, Wilma Patrícia. O cânone mínimo: O Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Ed. UNESP, 1999.
SEIXO, Maria Alzira. Os romances de António Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.
Gustavo Silveira Ribeiro
Mestre em Literatura Brasileira, UFMG, 2008
Doutorando em Literatura Comparada, Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da FALE/UFMG
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero11/gustavo.html
Número 11 (2009) - ISSN 1981-870X