Tradução
O silêncio das sereias de Kafka: Uma aproximação literária da voz como objeto pulsional
Jean-Michel Vivès
Université de Nice Sophia-Antipolis
vives.jean-michel@wanadoo.fr
Tradução de Robson Dutra
Universidade do Grande Rio Prof. José de Souza Herdy/UNIGRANRIO
Robson.dutra@oi.com.br
Revisão técnica de Cristina Batalha
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
cbatalh@gmail.com
Resumo:
Kafka, em um pequeno texto de 1917, revisita o mito das sereias. Nele, as sereias emudecem e Ulisses faz-se de surdo. O autor deste artigo tem como objetivo mostrar como a torção desse célebre episódio mítico prenuncia e aclara as teses de Lacan sobre a voz
Palavras-chave: ponto surdo, pulsão invocante, sereias, voz.
Por ocasião de um pequeno texto, datado de 23 de outubro de 1979, no « Caderno G », intitulado O silêncio das sereias (KAFKA, 1988, p. 542-543), Kafka propõe uma interpretação bem peculiar do célebre episódio do encontro entre Ulisses e as sereias que Homero narra no canto XII da Odisseia. Kafka usa essa história bastante conhecida e o conhecimento anterior que o leitor tem dela para suscitar um estranho sentimento de incompreensão. Na obra de Homero, a feiticeira Circe, após permitir a partida do seu amante, lhe revela os perigos a serem encontrados no caminho de regresso a Ítaca. Circe avisa:
Tu encontrarás as sereias que seduzem todos os homens que delas se aproximam; mas todo aquele que, por imprudência, ouve seu canto está perdido, de modo que sua esposa e filhos jamais presenciarão seu retorno (…) Escuta-o, se quiseres, mas faça que teus companheiros te amarrem com cordas, no convés do navio, pelos pés e mãos, antes que escutes a voz voluptuosa das sereias (HOMÈRE, 1998, canto XII).
Ulisses também tampa os ouvidos de seus companheiros com cera e se faz amarrar ao mastro para escutar o canto mortal.
Vejamos, agora, como Kafka comenta e reescreve esse episódio mítico:
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Para se prevenir das sereias, Ulisses tampa as orelhas com cera e se faz prender ao mastro (…) Ele confiava totalmente no punhado de cera, nas cordas que o prendiam, e no prazer inocente de confrontar as sereias, que possuem uma arma ainda mais terrível do que seu canto, que é o seu silêncio. Pode-se conceber, embora tal não aconteça, que alguém possa escapar de sua música, mas certamente não de seu silêncio. (...).
E, de fato, quando Ulisses chega, as poderosas sereias param de cantar, seja porque julgavam que só com o silêncio poderiam conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses - que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes – as fez esquecer de todo e qualquer canto.
Ulisses, contudo, – se é que se pode dizer assim – não escutou seu silêncio, mas acreditou que elas cantavam e que tão somente ele estava protegido do perigo de escutá-las. Por um momento, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semi-abertas, porém achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis ao seu redor. Logo, no entanto, tudo deslizou do seu olhar dirigido para o além. As sereias literalmente desapareceram diante de sua determinação e, quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as considerava
Mas elas – mais belas do que nunca – esticaram seus corpos e se contorceram, deixando seu cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam suas garras dos rochedos. Já não queriam mais seduzir. Desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses (KAFKA, 1988, p. 542-543).
Para que se perceba a pertinência da « interpretação » de Kafka que, nesse ponto, destorce o mito, emudecendo as sereias e ensurdecendo Ulisses (!), é necessário recorrer ao mito original.
As sereias são demônios marinhos, metade mulheres, metade pássaros. Elas são mencionadas pela primeira vez por Homero no canto XII (versos 1 a 200) da Odisseia. São em número de dois. Em outras tradições posteriores, são mencionadas em número de três ou quatro. São consideradas musicistas extraordinárias e, de acordo com Apollodoro, uma tocava lira, outra cantava enquanto a terceira tocava flauta.
Habitantes de uma ilha do Mediterrâneo localizada, segundo a tradição, ao longo da costa meridional da Itália, na altura da Ilha de Sorrento, as sereias atraíam com sua música os marinheiros que passavam pela vizinhança. Os navios se aproximavam perigosamente, assim, das costas rochosas de sua ilha e afundavam. As sereias devoravam os corpos dos marinheiros afogados.
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Antes mesmo do episódio de Ulisses, as sereias já haviam sofrido uma primeira derrota que é narrada por Apolônios de Rhodes em Argonautas (RHODES, 1921, canto I, versos 462 e 568, canto II, versos 595). Jasão, que havia partido em busca do velocino de ouro na longínqua Colchide, embarca no navio Argos com cinquenta heróis gregos. Entre eles estão Castor, Pólux, Admeto, Hércules, Boutes, Laertes1 e Orfeu. O poeta-cantor havia sido requisitado por Jasão para ensurdecer seus companheiros das vozes perniciosas das sereias, o que consegue fazer parcialmente. Com efeito, Apolônios de Rhodes revela que um dos marinheiros, Boutès, preferiu a voz das sereias ao canto de Orfeu e se jogou no mar para alegria delas. É nessa dimensão que o canto de Orfeu não é capaz de aprisionar totalmente os marinheiros e lhes afastar das vozes das sereias: o todo real da voz não pode ser apreendido pelo simbólico da palavra poética. O canto (a voz submetida à lei do significante) de Orfeu permite, não obstante, que a maior parte dos marinheiros mantenha distância desse real enfeitiçado, contido no apelo feito pelas vozes das sereias. Essa lenda nos mostra a medida em que o canto (junção da voz e da palavra) permite calar a voz ou, ao menos, ensurdecer o ouvido diante dela. O canto, ao contrário do que se pensa, não é o que melhor poderia exemplificar a voz como objeto, mas sim o que a revela. A revelação, nesse caso, é entendida como um movimento duplo de velamento e desvelamento. Se não é o canto que ilustra de mais perto a voz, o que é então? O que estaria mais próximo seria o grito que, em sua dimensão não articulada, viria a ser opor à palavra. O canto seria no máximo a revogação da voz – e não sua evocação –, o que permite manter a distância. Ele é um domador da voz (LACAN, 1973, p. 97-109), na medida que Lacan pôde qualificar o quadro de domador do olhar. O canto é o que permite abdicar-se da voz, pacificá-la. O que faz com que J. A. Miller afirme: «se falamos, se conversamos nos simpósios, se tagarelamos, se cantamos e se escutamos os cantores, se fazemos música e se a escutamos (…) é para calarmos o que merece ser chamado de voz como objeto a ». (MILLER, 1989, p. 184).
Qual é então a característica do canto das sereias ? Contrariamente ao que se pode ouvir, ele não é agradável. Há uma dimensão de tensão e logo de gozo importante, que podemos compreender se nos reportarmos à origem da criação das Sereias. Ovídio (OVIDE, 1966, canto V, verso 555) narra que elas nem sempre tiveram asas de pássaros. Elas eram inicialmente jovens companheiras de Perséfone. Logo após seu rapto por Hades, o deus dos Infernos, elas pediram aos deuses o poder de voar a fim de que pudessem procurar qualquer lugar. O nascimento das sereias se origina então de uma perda que causará um apelo. Antes de
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cantar, as Sereias chamam, gritam seu desespero. Essa dimensão do grito permanece a propósito impressa no cerne mesmo de seu canto, desde então Homero o denominará phthoggos. Phthoggos em grego antigo designa não só o canto, mas também o grito ou o grunhido desarticulado do Ciclope (HOMERO, 1998, canto IX).
A aproximação entre o canto das Sereias e o grunhido do ciclope não deixa de impressionar… Como podemos entendê-lo ? Uma das acepções do termo phthloggos (KAHN, 1993, p. 237.238) vai em direção ao som puro, não de doces harmonias neste caso, mas de uma emissão contínua que a descontinuidade da fala não esconde. A voz da sereia poria em primeiro plano a dimensão sonora e não significante do enunciado por um defeito da articulação, o qual Michel Poizat, em sua obra l’Opéra ou le cri de l’ange (1986), demonstrou admiravelmente que ela está no centro do dispositivo que solicita o gozo lírico. Para poder ouvir a voz das sereias no canto XII da Odisseia, Ulisses será acorrentado no mastro do seu navio. Depois de ter colocado cera nos ouvidos de seus companheiros, e de lhes pedir que não o desamarrassem quaisquer que fossem suas ordens, as sereias dizem a Ulisses:
Vem, ó ilustre Odisseu, grande glória dos Aqueus. Para teu navio a fim de escutar nossa voz. Nenhum homem a bordo de sua nave negra passa por nossa ilha sem escutar nossa doce voz; então ele vai embora, cheio de gozo, e sabendo muitas coisas. (HOMÈRE, 1998, canto XII)
O que realmente importa no texto é que as sereias são apenas vozes que exprimem em suas vocalizações vociferantes um desejo absoluto no que diz respeito ao sujeito. O que essas vozes transmitem é uma promessa de gozo e de saber absoluto. Elas remetem o sujeito a um tempo anterior à lei, sem portanto o anunciar. Diferentemente da cantora, que nos agudos de sua voz se confronta com uma necessária perda de articulação da fala para poder cantar e que assim transgride a lei do significante e deste modo a recorda, a Sereia e seu grito se situam abaixo da lei do significante. Com efeito, no caso do canto, há transgressão e ao mesmo tempo revocação das questões da lei significante. Se a voz da sereia é mortífera, é porque a relação com a lei é salutar ao desejo humano na medida em que permite a corrida desejante de prosseguir, sem perder as ilusões reunidas. Mas como o homem não pode se acomodar totalmente a essa lógica da renúncia, ele é sempre tentado por essa voz de gozo que o convida a reviver o arcaico, esse tempo mítico em que o desejo ainda não tinha sido atualizado. Neste momento, se identifica a força das sereias que encontram uma cumplicidade no coração do homem. A voz da sereia é o desejo do Outro que vem em busca do sujeito e o perde ao
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utilizar seu próprio “tropismo” de gozo: “desejo de não desejar” como afirma Piera Aulagnier. Ao passo que a voz como tal desaparece atrás da significação no ato de fala, enquanto ela surge, para a cantora, assujeitada à lei do significante, ela ocupa a cena principal, fazendo-se pura materialidade sonora. Próximo ao grito, ela berra para quem quiser ouvir : «Goza, nós te ordenamos ! Que nada a detenha! O saber absoluto!».
Encontramos aqui a dimensão contínua que caracteriza o objeto a proposto por Lacan. Prolongamento do olhar imaginado pelo olhar do cego e contínuo da voz que tenta se expressar através do grito ou, melhor ainda, do silêncio. Não, os microssilêncios das consoantes que interrompem o fluxo das vogais permitem o acesso à fala, mas o silêncio diante da palavra. O silêncio pleno do tumulto ruidoso que precede a palavra criativa. Silêncio mortífero, presença absoluta que desconhece ainda a quebra da pulsação decorrente da alternância entre presença e ausência. Ao emudecer as Sereias, Kafka reencontra poeticamente a questão da voz como objeto pulsional.
Realmente, como observa precisamente Kafka, não se poderia escapar desse silêncio absoluto que procura traços do que não foi criado em cada um de nós. Mas Kafka não para por aí e dá uma "virada" suplementar (MANNONI, 1969, p. 275-298) ao transformar as Sereias em dançarinas! A descrição feita é eloquente e não deixa nenhuma dúvida: «Mas elas, mais belas do que nunca, se alongaram, girando sobre si mesmo, deixando seu horripilante cabelo voar livremente no vento e suas garras se estenderam sobre o rochedo.» (KAFKA, 1988, p.543). Ao levar as sereias do campo sonoro para o escópico, Kafka radicaliza o que é a voz como objeto a, que ele situa com um pressentimento clínico notável como afonia. A voz não se liga ao sonoro, ela é o excesso no ato da fala. Ela é, retomando os termos de J. A. Miller, «tudo o que o signicante não contribui para o efeito de significação» (MILLER, 1989, p.179-180). Suporte da enunciação discursiva, a voz apresenta a particularidade de desaparecer por trás do sentido que ela enuncia. Isto não pode ser experimentado cotidianamente. Quando alguém fala, pode correr o risco de ser interrompido precocemente por conta de seu sotaque... mas logo isso desaparece quando se presta atenção ao que é dito. O mesmo fenômeno foi analisado com muita precisão por M. Poizat, quando o suporte do enunciado não é sonoro mas visual, como no caso de uma conversa entre surdos na linguagem de sinais. Acontece frequentemente com intérpretes franceses de língua oral/ língua de sinais na impossibilidade de dizer se a troca com um surdo bilíngue oral/língua de sinais é efetuada na língua de signos ou na língua oral.
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Inversamente, quando o significado do enunciado é interrompido (Poizat, 1986, L’opéra ou le cri de l’ange) — como acontece no canto, por exemplo —, por uma altura que torna a articulação difícil ou impossível, ou quando é feito em uma temporalidade diferente da que deveria se realizar, isto vai «opacificar» a voz. O canto e a música são alguns dos adoráveis « parasitas » dos quais se permite extrair a voz.
Essa dimensão é a mesma que M. Poizat chama de lirismo (POIZAT, 2001, p.38-15-19). Lirismo que é capaz de embaralhar toda a dinânica do enunciado, e podendo por isso incidir sobre qualquer cadeia significante: sonora, gestual ou gráfica. A voz é o que se localiza em um excesso desse enunciado. Será a partir da possibilidade de falar da voz do cantor, mas também da do dançarino e mesmo da do calígrafo! Ao imitar, ou melhor, ao dançar, o apelo silencioso que as sereias lançam a Ulisses faz com que as de Kafka tenham uma voz pura, recordando, assim, que é possível ver as vozes.2
Há um outro ponto extremamente surpreendente na releitura de Kafka que nos permite dar um passo a mais, trata-se da utilização que Ulisses faz da cera. No mito homérico, Ulisses ensurdece seus companheiros ao lhes tapar as orelhas com cera, enquanto ele mesmo mantém as suas abertas para poder tirar o melhor aproveito do concerto : « Eu cortei, com o bronze afiado, uma grande massa redonda de cera, e apertei os pedaços com minhas fortes mãos; e a cera amoleceu, porque o calor do Rei Helios era intenso e eu usei muita força. E eu tapei as orelhas de todos os meus companheiros » (HOMÈRE, Odisseia, Canto XII). Em Kafka, Ulisses não só se deixa amarrar ao mastro, mas também tapa as orelhas com a cera!: « Para se prevenir das Sereias, Ulisses tampa as orelhas com cera e se faz prender ao mastro » (KAFKA, 1917, p. 542). Surge, então, o que é mais surpreendente. Ulisses ensurdecerá… Kafka parece prefigurar aqui o que eu já propus em outro lugar e que se pode definir como ponto surdo da psiquê. Freud (Le délire et les rêves dans la « Gradiva » de W. Jensen, 1907) já nos tinha advertido: o poeta antecede o psicanalista. Ponto surdo que eu defino como o lugar onde o sujeito depois de ter entrado em ressonância com o timbre original deverá ser capaz de ensurdecer para falar sem saber o que diz, isto é, como sujeito do inconsciente.
Freud foi capaz de supor que a constituição do campo visual necessária à exclusão de alguma coisa implicaria a constituição de um “ponto cego”. Assim ele afirma em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: “A progressiva ocultação do corpo advinda com a civilização
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mantém desperta a curiosidade sexual, que ambiciona completar o objeto sexual através da revelação das partes ocultas” (FREUD, 1905). Nossa entrada na civilização exigiria a exclusão de uma parte do corpo, isto é o preço que pagamos e a condição do nosso prazer de olhar. O passo a mais que nos permite abordar Lacan é que o elemento excluído não é necessariamente a realidade dos órgãos genitais mas sobretudo este elemento retirado do corpo da mãe que é o olhar. Antes de ver, a criança é olhada por todos os lados e esse olhar é tão invasivo que é difícil dizer de onde vem. Isso nos permite compreender a dimensão maléfica geralmente associada ao olhar: nós somos olhados sem saber de onde nos olham. A criança é submetida desde a sua chegada ao mundo a um espaço panóptico. Para poder olhar e ter prazer, o sujeito deverá se livrar do olhar do Outro: não mais somente ser olhado, mas olhar (dimensão ativa da pulsão escópica) ou se deixar ver (dimensão ativa na passividade, o que poderíamos chamar do caráter passivo da pulção escópica) (LACAN, 1964, p. 65-108). Se a dimensão visual é estruturada por uma ausência de seu campo, eu proponho a hipótese de que o campo sonoro é ele mesmo estruturado por um ponto surdo ao qual eu gostaria aqui de me associar, a fim de identificar sua constituição e as questões decorrentes de seu aparecimento.
Ponto surdo, cuja constituição parece mais problematizada que a do ponto cego. Com efeito, se o bebê pode desviar seu olhar, ele não pode fazer o mesmo com sua orelha. Se Freud tendeu a privilegiar a questão da alimentação na relação da criança com o Outro primordial, as pesquisas em psicologia do desenvolvimento mostram que uma fase extremamente importante no momento da alimentação era dedicada ao olhar da mãe e que ela podia se preocupar se o bebê recusasse essa troca de olhares. Desviar-se do seio poderia ser assim uma maneira de mostrar a sua subjetividade, desviar seu olhar também pode ser uma outra. Ora não se pode fechar a orelha já que ela não possui esfíncter. Lacan afirma no Seminário XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: « as orelhas estão no campo do insconsciente e são os únicos orifícios que não podem ser fechados » (LACAN, 1964, p. 178). Confrontado com a voz do Outro não é possível se escapar. Talvez seja essa particularidade que dê à voz este lugar preponderante no fenômeno da alucinação. A partir daí, podemos acrescentar que a constituição do ponto surdo não se apóia em nenhuma função corporal mas é o resultado de uma operação linguística: a metáfora.
Nas origens de sua existência, sob os efeitos de uma tensão endógena, impossível de ser controlada pela criança devido a sua prematuridade, ela é impelida ao grito. O grito do recém-nascido não é inicialmente apelo, ele é a expressão vocal de um sofrimento. Ele só se tornará apelo a partir da resposta da voz do Outro, onde se marca seu desejo: “O que queres tu
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que eu deseje?” O grito puro se tornará o grito para. É a palavra do Outro que introduzirá a criança, para além de sua voz, à fala, ao processo de significação e lhe fará perder para sempre o imediatismo da relação com a voz como objeto. A materialidade do som será, a partir daí, irremediavelmente velada pelo trabalho de significação. A fala faz calar a voz ou, mais precisamente, permite que ela se torne inaudível. A linguagem fura o corpo, marca o ser vivo e implica a apropriação do sujeito pela linguagem e não o contrário. No entanto, esse velamento da voz não ficará sem consequência, já que é ele que possibilita o advento do sujeito. Realmente sem esse primeiro velamento, que possibilita dar a voz ao sujeito que, submetido às ferozes injunções da voz do Outro, se dá conta então do real. Em outras palavras, a voz do Outro invoca o sujeito, sua fala o convoca. É a partir de um certo despojamento do seu grito que a criança simultaneamente perde e encontra sua voz. A partir daí, a voz é este real do corpo que o sujeito consente perder para falar, ele é, retomando os termos de Lacan, este objeto saído do órgão da palavra (LACAN, 1973-1974, Le Séminaire, Livre XXI: Les Non dupers errent, não publicado).
Kafka, poeticamente, trata dessa questão. Ulisses, em seu texto, ensurdecendo diante do silêncio das Sereias3 — o silêncio aqui compreendido como a voz primordial, o múrmúrio do real — mantém a possibilidade de se juntar aos cantos da Sereia. Ao ensurdecer diante de seu silêncio — que é a imaginarização da voz como objeto a —, ele percebe seus cantos e fica assim incólume ao perigo. Se partirmos dessa interpretação, da desventura de Boutes durante sua viagem com os Argonautas, poderíamos dizer então que todos os camaradas de Jasão constituem este ponto surdo intrapsíquico que lhes permitem escolher o canto de Orfeu em oposição à voz das Sereias. Boutès, que sempre esteve em contato com elas, não pôde investir nesse corta-voz.
Compreendemos então a fórmula enigmática de Kafka: « pode ser viável, (…) que qualquer um tenha escapado ao seu canto, mas certamente não a seu silêncio»4. Finalmente, o Ulisses de Kafka se revela como o de Homero, que, como Hamlet, é o Édipo em A Interpretação dos Sonhos e retomado em Personagens psicopáticos no palco de Freud: um herói moderno. Em Traumdeutung, Freud escreve:
Outra das grandes criações da poesia trágica, o Hamlet de Shakespeare, tem suas raízes no mesmo solo que Oedipus Rex. Mas o tratamento modificado do mesmo material revela toda a diferença na vida mental dessas duas épocas, bastante separadas, da civilização: o avanço secular do recalcamento na vida emocional da espécie humana. No Oedipus, a fantasia infantil imaginária que subjaz ao texto é abertamente exposta e realizada, como o
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seria num sonho. Em Hamlet ela permanece recalcada; e — tal como no caso de uma neurose — só ficamos cientes de sua existência através de suas conseqüências inibidoras (FREUD, 1900, A Interpretação dos sonhos, cap. V, "Sonhos sobre a morte de pessoas queridas").
Lá onde a dinâmica pulsional se revelara de imediato em Homero, ela se encontra "estrangeirificada" em Kafka. Mas é esse mesmo deslocamento imposto pelo autor — como no caso de Hamlet com relação a Édipo — que nos permite perceber suas modalidades de expressão e suas implicações contemporâneas: antes um canto sedutor, que uma voz vociferante fora do simbólico gritando para aqueles que não conseguiram permanecer surdos a ela: “Gozemos”!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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APOLLONIOS DE RODHES. Argonautiques. Londres-New-York : Edition R. C. Seaton, 1921, 2v.
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________. (1905) Trois essais sur la théorie de la sexualité. Paris : Gallimard, 1962.
HOMÈRE. Odyssée, tradução francesa de Leconte de Lisle, Paris, 1998.
KAFKA, F. (1917) « Le silence des Sirènes » In :Œuvres complètes, Tomo II, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la pléiade, 1988.
KAN, L. La petite maison dwe l’âme.Paris : Gallimard, 1993.
LACAN, J., (1963-1964) Le Séminaire Livre XI Les Quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris : Seuil, 1973, p.97-109.
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______. 1973-1974, Le Séminaire, Livre XXI, Les Non dupes errent. (Inédito).
MILLER, J.A., « Jacques Lacan et la voix ». In : La voix. Paris : La Lysimaque, 1989.
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POIZAT, M., 1996, La voix sourde. Paris : Métailié, 1996.
_______. L’opéra ou le cri de l’ange. Essai sur la jouissance de l’amateur d’Opéra. Paris : Métaillé. 1986.
_______. « Voix, geste et regard. Orphée, ler loup, le sourd et la diva ». In : Médecine des Arts. (2001)
VIVES J.-M. Para introduzir a questão da pulsão invocante. (no prelo)
1 A presença entre os Argonaustas de Laertes, pai de Ulisses, permite que se situe esse episódio entre aqueles narrados por Homero.
2 « Et tout le peuple vit les voix » , Êxodo, 20 :15.
3 Kafka diz com humor: «Mas Ulisses, se se pode dizer assim, não escutou seu silêncio; ele acreditou que elas cantavam» (KAFKA, 1988, p. 542).
4 KAFKA, 1988, p. 542. Pode-se notar que com um rigor conceitual que beira a admiração, Kafka fala aqui do canto e não da voz. Na verdade, pode-se compreender que não se trata do canto, que é mortífero mas da voz em sua dimensão de absoluta continuidade.
Robson Lacerda Dutra
Doutor em Letras Vernáculas (Literaturas africanas), UFRJ, 2007
Professor Adjunto II, Unigranrio
Programa de Pós-Graduação em Letras e Ciências Humanas, Unigranrio
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero11/robson.html
Número 11 (2009) - ISSN 1981-870X