Primeiros ensaios
UM GOZO A MAIS: O SABER FALICIZADO EM O MESTRE DE ANA HATHERLY
Sylvia Helena Macedo de Faria
Universidade do Estado do Rio de Janeiro / UERJ
sylfaria@oi.com.br
HATHERLY, O Mestre
Resumo:
Um gozo a mais: o saber falicizado em O Mestre de Ana Hatherly
Esse trabalho tece uma reflexão acerca da obra O Mestre, de Ana Hatherly enfocando a questão do amor conjugado ao saber e o modo como a estrutura histérica aparece na narrativa, que conta a história de uma discípula em uma busca obstinada por um mestre.
Palavras-chave: Gozo. Amor. Desejo. Saber. Histeria.
Abstract:
One more enjoyment: fallicized knowledge in O Mestre by Ana Hatherly
This article introduces considerations about Ana Hatherly´s O Mestre, with a focus on the question of love in its articulation with knowledge; and on the ways through which hysteria shows up in the narrative, which tells the story of a disciple in an obstinate search for a master.
Key words: Enjoyment. Love. Desire. Knowledge. Hysteria.
O Mestre, obra publicada em 1963, fala da busca obstinada de uma Discípula por um Mestre a fim de que este lhe ensinasse a arte da Alegria. No presente trabalho, abordaremos de que maneira o livro trata a questão do amor conjugado ao saber e como a estrutura histérica permeia a narrativa.
O livro começa com a epígrafe de uma épica indiana a qual afirma que as únicas verdades da vida são Deus, a loucura humana e o riso. Como as duas primeiras ultrapassam a barreira da compreensão do homem resta tentar apreender o melhor do riso. É importante observar o fato de que o riso é a marca fundamental desse Mestre que encanta a Discípula: “O Mestre é um homem que aparece. Está-se sempre a rir e ri de tudo.”. (HATHERLY, 2006, p.22)
O Mestre goza e faz seus discípulos gozarem com seu riso enigmático. A satisfação que ele tira de seu próprio gozo é o que mais impressiona a Discípula. A partir daí, a narrativa vai falar da insistência da Discípula em estar sempre perto do Mestre e em desejar que ele responda sempre às suas perguntas visando
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atingir o que ela denomina “Alegria Plena”, entretanto essa busca é sempre advertida pelo narrador como algo que não irá terminar bem. Ao nos indagarmos sobre o que será que essa Discípula realmente deseja, veremos que a psicanálise nos fornecerá conceitos fundamentais na tentativa de elucidar algumas questões.
Inicialmente é necessário que entendamos de que maneira o desejo aparece na estrutura subjetiva do ser humano. Sabemos que o desejo está intimamente relacionado à falta e que a falta, por sua vez, é parte integrante do aparelho psíquico do homem, segundo Freud. Sendo assim, não fica difícil concluir que o ser humano está sempre desejando. Ainda em relação à questão do desejo, Jacques Lacan, ao falar sobre os universos do Simbólico, Real e Imaginário, mostra como o pai no nível do Simbólico aparece enquanto significante fundador da Lei e do Desejo, ou seja, é a entrada no universo simbólico que diferencia o homem dos outros animais. Esse mesmo pai no nível do Real exerce a função de agente da Castração e essa nada mais é que a inserção do real representando o impossível na estrutura psíquica. No entanto, de que maneira o desejo, o amor e a castração aparecem na obra de Ana Hatherly?
Na narrativa, a Discípula se coloca no lugar de amante e tenta fazer com que o Mestre ocupe o lugar de amado. Desse modo, a Discípula seria aquela que possui a sensação de que algo lhe falta, enquanto o Mestre seria aquele que, mesmo não sabendo exatamente o que tem, sabe-se detentor de algo “especial” que o coloca na posição de amado. De acordo com Nadiá Paulo Ferreira, em seu livro A Teoria do Amor, o amor surge como tentativa de suprir a falta radical presente nos seres humanos em decorrência da castração. Em O Mestre, o posicionamento da Discípula diante dessa falta é o que nos leva a depreender a estrutura histérica.
Como já foi dito, a Discípula acredita que o Mestre possua um saber capaz de fazê-la chegar à Alegria plena. Antes, porém, tenta envolver o Mestre fazendo indagações sobre o ato de ensinar. É o que constatamos a seguir:
... não acha que o encontro é fundamental para o nosso entendimento, para o entendimento das pessoas, entre as pessoas, principalmente entre Mestre e Discípulo, não acha que a pedagogia é uma ciência do amor, uma prática amorosa, um acto de comunhão...(IBIDEM, p. 29)
A pedagogia - ciência do ensino - é considerada pela Discípula “uma ciência do amor”. O que se pode perceber até esse momento é que há no romance mais do que um amor-paixão (aquele no qual acreditamos que o objeto possui algo que não possuímos). Podemos dizer que encontramos aqui o que Lacan chama de amor de transferência: a suposição de um saber sobre si no outro. Mais do que isso, notamos que a Discípula procura no Mestre um saber sobre o gozo e acredita que o amor a conduzirá a esse saber.
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Entretanto, qual é o lugar da histeria na narrativa? Lacan afirma que “a histérica é o inconsciente em exercício, que põe o mestre contra a parede para produzir um saber.” A nossa Discípula mostra querer ser mais do que o objeto causa de desejo, ela quer ser o objeto de desejo de um homem (Mestre), que aquilo que a Discípula procura é na verdade o falo. Como sabemos, o falo nada mais é do que aquele objeto que não há e que se existisse poderia proporcionar a tão esperada Alegria Plena. Nesse sentido, fica nítida a diferença entre ser objeto causa de desejo e ser objeto de desejo. No primeiro momento, temos a mulher tornando-se falo em uma relação sexual e, no segundo momento, o desejo de ser o próprio falo. Nesse sentido, a Discípula, ao esperar que o amor a preencha completamente, se identifica com o próprio falo:
Sabe qual é o meu único desejo nesse mundo, a minha única ambição, a única coisa que eu realmente desejo? É atingir a Alegria, mas a Alegria plena [...] Oh Mestre, mas a Alegria podia ser o seu olhar sorrir pra mim, a Alegria podia ser os seus olhos encontrarem-se com os meus, poisarem em mim sorrindo, em mim mergulhando os seus olhos sorrindo mergulhando sorrindo... (IBIDEM, p. 33-34)
Devemos ressaltar ainda que a determinação da Discípula permanece mesmo com a negativa do Mestre. Aliás, esse se recusa inclusive a aceitar a posição de Mestre diante da Discípula, como constatamos na seguinte passagem: “Não me chame Mestre, de cada vez que me chamar Mestre obrigo-a a pagar uma multa”.(IBIDEM, p. 29)
Está muito claro que para esse personagem o saber não apresenta nenhum caráter utilitário (ao contrário do discurso produzido pelo personagem do professor universitário) e se configura somente como uma forma de gozo. Desse modo, o Mestre recusa ser amado por um saber que na verdade não possui. Já a Discípula, por desejar ocupar o lugar da impossibilidade ou, em outras palavras, por querer denegar a castração, acredita que tal impossibilidade é “culpa” do Mestre. Esse Mestre não corresponde ao seu amor e, portanto, na lógica da histérica não pode revelar o seu desejo de saber sobre o saber. Sendo assim, a Discípula se depara com o mistério referente ao desejo do Mestre. É o que percebemos no trecho a seguir:
Quando ele dá aulas fita um discípulo, escolhe-o como uma linha do horizonte e durante toda a aula olha-o: uma hora, duas, ele olha [...] deixando no pobre discípulo ponto de mira a horrível sensação de ser um buraco [...] deixando-o à espera da mercê de uma nova passagem do olhar do Mestre para preencher aquele vazio insuportável da ausência do olhar dele. (IBIDEM, p. 32-33)
O saber que a Discípula busca é aquele que é necessário para ser uma verdadeira mulher, para ser o objeto de desejo encarnado. A ausência do olhar do Mestre parece ser sinônimo de ausência de um saber sobre a mulher e sobre si. Quando a Discípula decide abandonar definitivamente os estudos, o que está em
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jogo é a decepção de não ter seu desejo realizado e, para se “proteger” de tal decepção, a Discípula passa a considerar o Mestre um farsante. Nesse sentido, podemos dizer que se torna explícito o desejo de um mais-ser da Discípula. Sendo assim, a Discípula não se contenta em ser somente objeto de gozo, ela quer ser o objeto alicerce do amor e do desejo o que comprova a estrutura histérica presente no livro.
Em seu texto Fantasias Histéricas e sua relação com a bissexualidade, Freud afirma que “os sintomas histéricos são a expressão, por um lado, de uma fantasia sexual inconsciente masculina e, por outro lado, de uma feminina”. Cabe dizer que a histérica tende a se identificar com o homem no sentido de não só precisar descobrir o enigma do que é ser uma mulher, mas também enquanto ser que se identifica com a “falta”, com a castração do homem.
Ao afirmarmos que a Discípula crê que o Mestre tem um saber que lhe falta, torna-se imprescindível salientar que esse saber é, justamente, aquele que a colocaria como objeto de desejo daquele Mestre. Chegamos ao ponto essencial da questão: na verdade, a histérica tenta preencher na estrutura do desejo o que ela considera uma suposta lacuna. Para isso, ela pretende ser, como já foi dito, o objeto do desejo em si mesmo e, portanto, o discurso histérico está pautado na denegação da castração do Outro. Quando O Mestre demonstra não mais querer prosseguir com o “jogo” da Discípula, essa se volta contra ele (e contra si mesma) por não mais poder manter seu desejo de um desejo insatisfeito. Sendo assim, ao se identificar com o Mestre e assumir “a posição masculina”, a Discípula acaba abrindo uma fenda narcísica, como afirmam Nadiá Paulo Ferreira, em Amor, ódio e ignorância.
O Mestre não aceita a demanda de amor exigida pela Discípula e tal fato somente poderá acarretar a frustração. Nesse momento do romance verificamos a ambivalência do amor uma vez que esse se transformará em ódio. A Discípula passará a se inserir no discurso universitário abordado por Lacan no interior do qual o saber aparece articulado ao poder. Agora, a obstinação da Discípula configura-se relacionada ao desejo de vingança alimentado por sua frustração. Nesse sentido, no imaginário da Discípula, a morte aparece como a única forma de retirar o que o Mestre possui (ou o que ela acredita que ele possua). Por não conseguir decifrar o enigma do feminino, próprio da histérica, a Discípula resolve ocupar o lugar do Mestre e, portanto, o lugar do masculino visando atingir o poder. Vale ressaltar que a Discípula, antes, aparentemente movida pelo desejo de saber, agora se revela alguém mais interessada em ser a própria inspiração do saber no outro.
No final do livro, é narrado o momento em que a Discípula enterra um punhal no coração do Mestre (metáfora do amor) cercado por “todos os seus troféus”: seus discípulos mortos. O Mestre aparece para a
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Discípula como aquele que matará todos enquanto sujeitos desejantes, uma vez que não correspondeu ao seu desejo enquanto sujeito desejante do falo. Todavia, logo depois, a Discípula resolve olhar para trás com o intuito de confirmar a morte do Mestre. Nesse momento, o Mestre “apóia a cabeça numa lira e segura pelos cabelos a cabeça da Discípula” enterrando o punhal. Cabe observar a intensidade com a qual Ana Hatherly conduz o final da história e a maneira como ocorrem ambas as mortes.
Em A Interpretação dos sonhos, Freud afirma que “os sonhos pensam essencialmente em imagens”. Temos duas imagens essenciais: a imagem do Mestre morto com um punhal no coração e a da Discípula morta com um punhal na cabeça. Este final só pode ser concebido do ponto de vista onírico. Não é inocentemente que o narrador afirma constantemente que “o Mestre dorme”, “o Mestre continua dormindo”, “o Mestre está a dormir tão profundamente”. Além disso, “coração” e “cabeça” revelam o confronto entre amor e razão.
Essa última cena nos conduz a duas possíveis interpretações: Por um lado, Discípula e Mestre parecem ser uma única pessoa, uma vez que a morte de um implica a morte do outro. Por outro lado, a posição da Discípula enquanto sujeito que acaba assumindo a posição do Mestre leva a crer que a morte desse é necessariamente a sua morte. Matar o Mestre significa matar-se enquanto sujeito que deseja o impossível. O aparecimento da lira na imagem final é referência ao mito de um pai que, ao perder o filho, fez de um osso da sua coxa uma lira para cantar eternamente a tristeza de o haver perdido. O Mestre apóia a cabeça da Discípula em uma lira porque “todos podemos fazer do nosso corpo uma lira para com ele cantarmos a tristeza de o havermos perdido” (IBIDEM, p. 51). A lira na qual o Mestre apóia a cabeça da Discípula, no momento de matá-la, nada mais é que seu próprio corpo morto, já que sua morte foi também a morte da Discípula. Posteriormente, depois do Mestre morto a Discípula “resolve olhar para trás para ver pela última vez o Mestre”. Essa passagem nos remete ao mito de Orfeu, no qual esse, para confirmar se Eurídice o seguia, olha para trás esquecendo-se da proibição dos deuses. A Discípula, assim como Orfeu, resolve voltar-se para trás e acaba morrendo. No mito, Orfeu perde sua amada para sempre. Em O Mestre, o narrador diz sobre a Discípula: “Ela deve possuir o dom órfico de amansar as feras, mas há de vir a transformar-se numa estátua porque tem o hábito de estar sempre a olhar para trás”.(IBIDEM, p. 82)
A Discípula realmente “transforma-se em estátua”, morrendo assim como Eurídice, e acredita também que perdeu o objeto de desejo. A diferença é que, ao contrário da amada de Orfeu, o objeto que a Discípula crê ter perdido para sempre na verdade nunca existiu e é justamente aí que entra a estrutura histérica n’O Mestre. A nossa Discípula não suporta ser apenas um dos objetos que pode ocupar o lugar de objeto causa de desejo e, portanto, não se contenta em ocupar a posição de objeto de gozo do Mestre.
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Como vimos, O Mestre se revela uma obra extremamente densa e de grande importância no âmbito literário e psicanalítico. A trajetória dessa Discípula que deseja o desejo insatisfeito possui um sentido compreendido somente pela “falta” do sujeito. O desejo oriundo da falta é inerente a todo ser humano e amar para encontrar toda a verdade está ligado à castração. A Discípula morre enquanto sujeito desejante de um desejo impossível: ser o próprio falo. Ela se esquece de que, enquanto sujeito falante e, portanto, inserido no universo simbólico, está sujeita ao falicismo e que querer experimentar a completude torna-se tarefa impossível. Desejar ser o próprio falo ou, nas palavras da personagem, “querer atingir a Alegria plena” ou ainda não aceitar ser apenas mais uma mulher é o que leva nossa Discípula à morte e essa Discípula permanecerá matando todos os mestres enquanto sustentar um amor por um saber que é impossível.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Sylvia Helena Macedo de Faria
Mestranda, Programa de Pós Graduação em Letras, UERJ
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero11/sylvia.html
Número 11 (2009) - ISSN 1981-870X