Resenha
Fios entretecendo histórias e escritores, Fernando Pessoa e Mário Cláudio
CLÁUDIO, Mário. Boa noite, senhor Soares. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009, 100p.
Regina Michelli
Universidade do Estado do rio de Janeiro/UERJ
reginamichelli@globo.com
Bernardo Soares
Fernando Pessoa e Mário Cláudio são, ambos, artífices da língua portuguesa. O segundo, ao revisitar a obra do primeiro, oferece novas leituras com o romance Boa noite, senhor Soares, lançado em 2009, e estimula outras do Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa.
Mário Cláudio é o pseudônimo de Rui Manuel Pinto Barbot Costa. Nascido em 1941, é considerado um dos mais importantes escritores portugueses da atualidade, tendo recebido, em 2004, o Prêmio Fernando Pessoa. Mário Cláudio transita por diversos gêneros literários, recriando, pela via do romance, ficção envolta por uma visão crítica de feitos e fatos históricos, como se vê em Peregrinação de Barnabé das Índias, de 1998, cujo tema é a viagem de Vasco da Gama para as Índias, destacando-se um novo herói, o grumete Barnabé. Seu olhar detém-se ainda sobre figuras artísticas, fazendo dialogar, na e pela literatura, biografia e obra daquele sobre quem se fixa. Assim acontece em As batalhas do Caia (1995), romance centralizado em Eça de Queirós, e Gêmeos (2004), focalizando Goya. Antes disso, temos o pintor Amadeo, (1984), a violoncelista Guilhermina (1986) e a ceramista Rosa (1988), romances reunidos na obra Trilogia da mão, de 1993, alvo da pesquisa realizada pela professora Dalva Calvão em Narrativa biográfica e outra artes. Sua prosa mescla-se de poesia, num discurso altamente literário, ambíguo, híbrido.
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O romance Boa noite, senhor Soares foi lançado em 2008 e publicado no Brasil em 2009, pela 7 Letras. O livro traz um belíssimo prefácio de Maria Theresa Abelha Alves que efetivamente apresenta a obra ao leitor, de um ponto de vista da crítica literária: campos temáticos, personagens, espaços, tempos, ideologias, nada lhe escapa. A obra tece um jogo intertextual com o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. O diálogo entre um e outro texto se estabelece: Bernardo Soares, personagem da ficção heteronímica pessoana em prosa, referido como semi-heterônimo ou personalidade literária, torna-se duplamente fictício ao integrar agora o espaço do romance criado por Mário Cláudio. Este jogo de personas e máscaras não poderia deixar de nos lembrar José Saramago, em O ano da morte de Ricardo Reis. Tais estratégias ficcionais evidenciam o interesse que a obra e a própria biografia de Pessoa despertam em escritores e pesquisadores.
Boa noite, senhor Soares se organiza pelo filtro da memória de António da Silva Felício, narrador em primeira pessoa que vai paulatinamente construindo uma narrativa entremeada de “causos”, alguns vistos, outros ouvidos no murmúrio das personagens ou ainda imaginados, casos de “que nunca mais me esqueci” (p.23), “E nunca mais me esquecerei” (p.49), donde a abundância dos verbos lembrar, recordar, saber. Tal como Mário Cláudio, que do presente resgata Pessoa, a personagem narradora vai relatando suas impressões, suas vivências. O passado dialoga com o presente narrativo, entrecruzando tempos e visões: “Um ror de perguntas assaltou-me nesse momento, e ainda hoje me envergonho delas” (p.50) ou “cem anos que eu viva, jamais hei de esquecer o sonho que tive” (p.53). A expressão “ainda hoje”, várias vezes empregada, marca a permanência desse passado recuperado e ainda vivo em meio a um presente asfixiante. O tempo indeterminado – remetendo ao “era uma vez” mítico - aflora em diferentes sintagmas como “Naquela manhã”, que inaugura a narrativa; “recordo-me de uma manhã” (p.26); “foi nessa ocasião” (p.32), “Foi então que ocorreu o fenômeno extraordinário que jamais se me varreria da memória” (p.70) ou “Foi então que se deu o acontecimento que haveria de determinar o resto da minha existência” (p.73).
O tom coloquial é verossímil à própria perspectiva que de si nos oferece o narrador: uma personagem simples, inicialmente caixeiro no armazém de tecidos, que se
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sente incapaz de produzir seu próprio “relato” de seu convívio com o Senhor Soares, o que, ao fim e ao cabo, o faz. O recurso, portanto, à linguagem coloquial, a ditos e formas específicas de falar, típicas da oralidade, surgem na narração fluida de António, sem a preocupação de organizar os fatos linearmente ou acolher as palavras exatas – afinal, há um escritor a quem ele intenta recorrer, com maior competência para criar a sua história. É sob a perspectiva de António que nos são apresentados o patrão Vasques e os companheiros de trabalho, dentre eles o senhor Soares. António possui uma família, inexistente na obra pessoana, composta pela irmã Florinda, o cunhado Gomes, a sobrinha Mimi e a tia Celeste, mãe do cunhado. A personagem que atravessa toda a narrativa - e acompanha quase obsessivamente o narrador – é o senhor Soares, a quem António supõe ser poeta, fato que condiciona sua visão sobre ele. A configuração da personagem senhor Soares é também um entretecer de fios, conjugando perspectivas e características.
Como um espectro, o senhor Soares aparece em diferentes momentos da vida de António: no caminho de retorno à casa da irmã, depois da comemoração de seus dezoitos anos, encontra-o com Vicente Guedes; num domingo, num piquenique em família, vê o senhor Soares com o médico Ricardo Reis, ou ainda quando o irmão de Gomes chega do Brasil e, no cais, António vê não três pessoas, mas “três personagens” (p.71): o senhor Soares, um jovem estivador e um cavalheiro estrangeirado “dos que suscitam o piscar de olhos dos moços de frete” (p.71), numa clara referência a Álvaro de Campos, do Poema em Linha Reta. Mesmo tendo-se passado cinqüenta e dois anos, o narrador continua a descortinar o senhor Soares “deslocando-se entre aquela gente que já morreu” (p.56), personagem presente nos “sonhos despertos” de António e na sua fantasia, estratégias que auxiliam a composição de Soares. A caracterização que o narrador faz desta personagem articula traços que unem a ternura, a esquisitice, o mistério, junto à percepção de ele ser um cidadão comum; focalizado pelos colegas do armazém, há os risinhos que levantam suspeição, enquanto as personagens na mercearia destacam a tranqüilidade e educação de Soares. O enigma, porém, se mantém, pois a personagem do senhor Soares apresenta-se pela focalização alheia, mantendo a aura de inacessibilidade.
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O significado, para o narrador, da convivência com o senhor Soares parece se explicar por pequenos grandes gestos, como o barquinho de papel dado a António com o nome do rapaz no casco; a forma como Soares recebe o jovem em sua casa e, principalmente, o abraço dado em António quando este resolve voltar para a aldeia onde crescera. Há uma passagem, porém, em que essa importância se revela mais clara nas palavras do narrador: “Mas naqueles meus sonhos acordados eu conferia ao senhor Soares a missão que nunca professor algum desempenhara a meu favor, a de explicar ao moço simples que eu era, (...) quanto de facto me importava decifrar sobre os mistérios da Terra.” (p.75). O título reforça o respeito que António dedica ao amigo, expressão reiterada na narrativa, às vezes pronunciada (p.30, 95), outras proferida com os olhos, numa mudez eloqüente (p.51, 67). O senhor Soares, porém, dirige-se a António em dois episódios. O primeiro, quando vê os folhetos do rapaz sobre lugares que este gostaria de conhecer, “andarilho parado” (p.66), momento em que António encontra a cumplicidade nas lentes dos óculos e nas palavras do senhor Soares, “Boa noite, meu viajante” (p.67). O segundo, na cena de despedida do caixeiro, quando o senhor Soares murmura: “Até sempre, António” (p.95).
O narrador António registra sua história e nela insere, em lugar de destaque, o senhor Soares, “relato” que se encerra com a informação do nome do neto que nascera: Bernardo, o que se deduz ser homenagem a esse senhor por conta da intertextualidade com o Livro do desassossego, de Pessoa, pois o primeiro nome do senhor Soares não aparece na narrativa. No meio da história, António já anuncia que anda a contar as histórias a um escritor, material que “servia para um romance” (p.59). No final, dá-se o encontro de um e outro e António aceita o acordo feito com um escritor que lhe assegura ser impossível narrar os fatos tal qual lhe estão sendo passados, com fama de “se aproveitar das histórias alheias, transformando-as em suas” (p.97) – clara alusão ao autor da obra, Mário Cláudio, segundo Maria Thereza Abelha Alves –, pacto firmado, história a se realizar ainda – “veremos agora o que dali irá sair.” (p.98).
Os fios se cruzam e entrecruzam, compondo o painel das escrituras. Pessoa, no Prefácio ao Livro do desassossego afirma ter recebido a obra para publicá-la. Em Boa noite, senhor Soares há também a busca de um “profissional”, não apenas para publicar,
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mas também para redigir a história, “autor mais ou menos respeitado” (p.97) que emprega palavras que o outro talvez ignore e prefere ignorar algumas que António utiliza. Ora, o vocabulário, algumas palavras chulas, como as empregadas por tia Celeste – que de celestial nada tem -, e alguns termos que beiram a gíria e os ditos populares coadunam-se mais à expressão de um simples caixeiro que um autor como o que se apresenta acima. É um relato de uma convivência – talvez no plural, já que abarca também o relacionamento familiar de António - que se ficcionaliza em romance, partindo de uma personagem que já faz parte de outra ficção.
Uma obra tece a outra, que se entretece nos cruzamentos forjados, fingimentos literários que marcam heterônimos e pseudônimos, “horizonte sempre ilusório, mas sempre promissor de eternidades” (p.56).
Regina Silva Michelli
Doutora em Letras Vernáculas, UFRJ, 2001
Professora Adjunta de Literatura Portuguesa, UERJ
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
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Número 11 (2009) - ISSN 1981-870X