Artigos
Psicanálise e literatura, o objeto e o estilo em Flaubert e Joyce
Sérgio Scotti
Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC
sscotti@mbox1.ufsc.br
É igualmente a alma e a carne de uma obra.
Flaubert
Resumo:
Psicanálise e Literatura, o objeto e o estilo em Flaubert e Joyce
Neste texto, a partir da teoria da sexualidade de Freud, entendida como elaboração de um processo que se desenvolve no complexo de Édipo e que tem como culminância, a metáfora paterna (Lacan), busca-se uma articulação com a literatura. Tendo-se o estilo e a singularidade do sujeito como o que aproxima a psicanálise e literatura, procura-se destacar ou extrair o objeto que está em jogo em diferentes estilos literários.
Palavras chave: Psicanálise. Literatura. Estilo. Objeto. Sujeito.
Abstract:
Psychoanalysis and Literature: object and style in Flaubert and Joyce
This article attempts to bring literature and psychoanalysis together, by drawing on Freud´s theory of sexuality, here understood as the elaboration of a process that develops with the Oedipus complex, and that reaches its climax with the paternal metaphor (in Lacan). Based on the idea that style and an individual´s singularity are themes that approximate psychoanalysis and literature, there is an effort at highlighting or extracting the object characteristic of different literary styles.
Keywords: Psychoanalysis. Literature. Style. Object. Individual.
Desde seus estudos sobre a histeria, sobre os sonhos e especialmente nos “Três ensaios para uma teoria sexual” (FREUD, 1905/1973), complementado pela “Organização genital infantil” (FREUD, 1923/1973), Freud nos chama a atenção para o fato de que a sexualidade é onipresente em todas as circunstâncias da vida humana. Essa afirmação pode parecer muito forte a princípio, mas Freud mesmo teve que sustentá-la diante da tentativa de um Jung de transformá-la em alguma genérica “força instintiva psíquica” (FREUD, 1905/1973, p.1222). E desde os “Três ensaios...”, Freud sustentava que a sexualidade humana não deveria ser confundida com a sexualidade genital do adulto, pois esta só poderia ser entendida como um
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produto mal acabado de uma sexualidade que começa na relação com o corpo próprio, o autoerotismo infantil, que evolui por sua vez para uma sexualidade objetal perverso-polimorfa. A perversão, ou seja, os “desvios” de uma sexualidade genital “normal” passam a ser considerados como originários, como próprios de uma sexualidade infantil à qual se apegam por sua vez os neuróticos através de seus sintomas, o que foi traduzido pelo famoso aforismo freudiano de que a neurose é o negativo da perversão (FREUD, 1905/1973, p. 1190).
A libido, nome de que Freud se utilizou para denominar essa energia sexual presente desde o início da vida do humano, que se confunde mesmo com a pulsão de vida, tem sua origem ou, se apóia, na verdade, em determinadas regiões do corpo que vão se associar às que vieram a ser conhecidas como fases do desenvolvimento sexual: oral, anal, fálica e genital. Esta última seria o coroamento de uma sexualidade adulta “normal” voltada para o coito e a reprodução, sendo que as tendências anteriores, as pré-genitais, estariam presentes nas preliminares do coito propriamente dito. Vê-se aí uma certa idealização da sexualidade genital, que veio a culminar em Reich numa teoria da potência orgástica, a qual objetivaria “a completa solução da excitação” (REICH, 1942/1975, p. 99), o êxtase, a completude de um gozo absoluto, mesmo que temporário.
Mas a psicanálise sempre teve que se deparar com o fato de que, salvo exceções, como no gozo suplementar da mulher que Lacan (LACAN, 1985, p. 99) veio a assinalar, todo gozo é parcial, dizendo-se de outro modo, é fálico e, portanto, insatisfatório. Significa dizer que a pretensa genitalidade, a síntese das tendências pré-genitais numa sexualidade madura e plenamente desenvolvida é uma quimera. Com o que a psicanálise teve que se deparar é que toda sexualidade é infantil, ou que, pelo menos, toda sexualidade adulta é eivada do infantil. Tudo isso porque existe um drama existencial humano que Freud veio a chamar de Complexo de Édipo.
Resumidamente, para não nos alongarmos no que é de conhecimento geral, toda sexualidade, por mais adulta, madura, ou o que quer que seja, constrói-se sobre o recalque de certas tendências e impulsos infantis que tiveram como primeiros objetos os pais ou seus equivalentes, ou seja, objetos proibidos, que vêm a ser substituídos posteriormente por uma série de objetos metonímicos. Daí que toda sexualidade adulta é, de certa forma, a continuação do drama infantil, do Édipo. Isso tem seus efeitos e consequências, desde as mais mórbidas, até as mais “normais”. Significa dizer que na vida sexual ou na vida em geral, o que de certa maneira quer dizer a mesma coisa, o patológico e o saudável se distinguem não em termos absolutos, mas dentro de uma certa gradação.
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Noutros termos, poderíamos dizer que na vida em geral vamos encontrar os ecos de uma sexualidade infantil e que pelo efeito de uma “metáfora paterna”, mais ou menos efetiva, produzir-se-ão diferentes estruturas psíquicas onde o gozo que se alcança sempre será um gozo de segunda mão. Aí temos a castração. E isso não só, e talvez nem principalmente, pelo fato de que todo objeto sexual é um objeto substitutivo dos pais, mas simplesmente pelo fato de que o ser humano é um ser que fala e que está preso a uma rede simbólica. Lacan nos mostrou como o ser humano, atraído pela sereia materna que promete um gozo absoluto de ser o falo que ela deseja, cai na rede do simbólico no qual ele mesmo se emaranha em suas demandas, pois nessas suas demandas nunca alcança aquilo que esperava alcançar sem elas, o indizível Real, o gozo de ser. O gozo sexual então, além de ser a substituição de um gozo incestuoso e, portanto, sempre conflituoso, é também a substituição de um gozo de ser por um gozo de ter. Ter ou não ter o falo conforme a distribuição das identidades sexuais e suas diferentes modalidades de gozo (LACAN, 1999, p. 166 – 220).
Contudo, todo esse processo deixa restos não assimilados pela metaforização que cria a divisão do sujeito, que cria o sujeito mesmo e o inconsciente. Não são restos indiferentes, são restos que arrastam o próprio sujeito atrás de si. A esse resto que sobra no processo de causação do sujeito, Lacan deu o nome de objeto a, objeto causa do desejo, objeto que compõe a série dos objetos da pulsão em jogo na fantasia: o seio, as fezes, a voz e o olhar (LACAN, 1990, p. 153 – 189). Objetos que servem de suporte ao desejo do Outro (KAUFMANN, 1996, p.295). Tais objetos, embora diferentes, se equivalem enquanto exercem a função fálica de fazer falta ao Outro para, ao mesmo tempo, obturá-la. Fazer-se seio, fazer-se excremento, ver e ser visto; ouvir e fazer-se ouvir são modos de gozo ou modos de a pulsão circundar o objeto que é aquilo que resta do sujeito e causa seu desejo, pois são objetos extremamente valorizados na medida em que são supostamente valorizados pelo Outro, que supostamente faltam ao Outro. Tanto que, quando não se pode sê-lo ou tê-lo na fantasia, surge a angústia; surge a depressão quando se perde o lugar de causa de desejo, pois esta é a formula do desejo, o desejo do desejo do Outro; perde-se o lugar no mundo embora Lacan nos diga que a angústia: “[...] ela não é sem objeto”. Também nos lembra que: “[...] por não ser desprovida de objeto, é sob a condição de ressalvar que isso não equivale a dizer, como em relação a outros, de que objeto se trata – nem tampouco a poder dizê-lo”. E acrescenta: “Em outras palavras, a angústia nos introduz, com a ênfase da comunicabilidade máxima, numa função que, para nosso campo, é radical – a função da falta” (LACAN, 2005, p. 146).
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Isso quer dizer que a angústia implica um objeto que é o objeto que falta, que a angústia surge pela falta da falta, quando o objeto aparece do lado Outro, quando já não faltamos ao Outro enquanto objeto causa do desejo.
E a maneira que a psicanálise propõe, enquanto tratamento, de se enfrentar a questão da perda, da angústia, é a aceitação da falta, da castração, e a assunção de uma posição, como sujeito desejante. Caminho nunca fácil que exige do sujeito não só a análise de seu inconsciente, mas também a elaboração das perdas de seus objetos, o luto que pode livrá-lo das repetições que fazem sofrer embora se goze delas.
Mas há outras formas através das quais os sujeitos, sendo atravessados por seus desejos, pulsões e angústias, fazem alguma coisa com elas, o que não deixa de ser uma forma de elaborá-las. Uma das formas, certamente não a única, mas talvez uma das mais privilegiadas pela cultura e pela psicanálise também, é a arte. Nela vamos encontrar variadas formas pelas quais conceitos psicanalíticos encontram sua expressão. Mas o curioso é que nesse movimento da psicanálise em direção à arte, vamos nos encontrar com um movimento inverso em que naquilo que a psicanálise procurava explicá-la, a arte explica a própria psicanálise. Não se trata de ser psicanaliticamente humilde ou generoso com a arte. De fato, enquanto psicanalistas, nos aproximamos da arte com um olhar e/ou uma escuta analítica, no entanto, se pudermos nos deixar surpreender pela produção artística, tal como com nossos pacientes, podemos encontrar mais do que esperávamos. Talvez algo que não estivesse totalmente claro ilumine-se ou mesmo um conceito novo pode surgir. Quanto a isso, acreditamos que temos que nos render ao fato de que a psicanálise sempre estará em dívida com a arte. A criatividade artística sempre existiu antes dela e continuará existindo apesar da psicanálise e, se esta pode dar alguma contribuição àquela, sempre será num a posteriori.
De qualquer forma, não nos furtaremos a buscar na arte a inspiração para uma maior compreensão da alma humana, para usar um termo mais literário do que psicanalítico. E nesse projeto perseguimos um objeto, o estilo. Na literatura, o estilo, ou a marca do sujeito no texto, conforme Compagnon (2001, p. 165 – 194), tem sido objeto de muitas discussões. Mas também para o psicanalista interessa o estilo enquanto aquilo que diz respeito à singularidade do sujeito, aquilo em que o sujeito é diferente de todos os outros. Dizer que o sujeito é sua singularidade, é para a psicanálise quase uma tautologia. Portanto, singularidade e estilo sendo praticamente sinônimos, aproximam psicanálise e literatura. E como já dizia Buffon, “O estilo é o homem” (LACAN,1998, p. 11), para corrigi-lo em seguida, colocando no lugar do homem o objeto como veremos a seguir.
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E enquanto perseguíamos nosso objeto, o estilo, acabamos por nos deparar com o objeto mesmo. Queremos dizer com Lacan que o que está em jogo no estilo do autor literário e, provavelmente em todo sujeito, é por sua vez o objeto que ele persegue. Ou será que é o objeto que o persegue?
Quando buscávamos compreender a questão do estilo literário, queríamos encontrar, na composição escrita de um autor, algo que nos desse uma visão mais em detalhe do que chamamos de estilo ou a forma pela qual o artista dribla a censura que recai sobre a cena nua e crua de seu fantasma (FREUD, 1908/1973, p.1348). Aproveitamo-nos, para tanto, de nosso conhecimento, ou, pelo menos, de nossa maior intimidade com a obra de Gustave Flaubert, especialmente, “Madame Bovary”.
No primeiro capítulo da terceira parte do livro, Flaubert descreve o encontro de Madame Bovary com aquele que será seu segundo amante, Léon, na catedral de Rouen. Léon consegue um fiacre que os levará por um passeio vertiginoso através das ruas da cidade:
– Aonde o senhor deseja ir? Perguntou o cocheiro.
– Onde você quiser! Disse Léon empurrando Emma para dentro da carruagem.
E a pesada máquina pôs-se a caminho.
Desceu a rua Grand-Pont, atravessou a praça des Arts, o cais Napoléon, a Pont Neuf e deteve-se de repente diante da estátua de Pierre Corneille.
– Continue! Disse uma voz que saía do interior. O carro partiu novamente e, deixando-se levar pelo declive a partir da encruzilhada La Fayette, entrou a galope pela estação da estrada de ferro.
– Não, em frente! Gritou a mesma voz.
O fiacre saiu do portão gradeado e, tendo em breve chegado à alameda, foi trotando suavemente no meio dos grandes olmos. O cocheiro enxugou a testa, pôs o chapéu de couro entre as pernas e dirigiu a carruagem para fora das alamedas laterais, à beira d’água, perto da relva.
Ela foi andando ao longo do rio, no caminho de sirga recoberto de calhaus ásperos e por muito tempo pelos lados de Oyssel, mais além das ilhas.
Porém, repentinamente, lançou-se com um salto através de Quatremares, Soteville, a Grande-Chaussée, a rua d’Elbeuf e parou pela terceira vez diante do Jardin des Plantes.
– Vá em frente! Exclamou a voz com ainda maior fúria.
E retomando logo sua corrida, ela passou por Saint Sever, pelo cais dos Curandiers, pelo cais dos Meules, mais uma vez pela ponte, pela praça do Champs-de-Mars e atrás dos jardins do hospital, onde alguns velhos de casaco preto passeavam ao sol ao longo de um terraço coberto por heras verdes. Subiu novamente o bulevar Bouvreuil, percorreu o bulevar Cauchoise, em seguida todo o Mont-Riboudet até a encosta de Deville.Voltou; e então, sem direção nem destino, ela vagabundeou ao acaso. Foi vista em Saint-Pol, em Lescure, no monte Gargan, na Rouge-Mare e na praça do Gillard-bois; na rua Maladrerie, na rua Dinanderie, diante de Saint-Romain, Saint-Vivien, Saint-Maclou, Saint-Nicaise, – diante da Alfândega, – na Basse-Vieille – Tour, na Trois-Pipes e no cemitério monumental. De tempos em tempos, o cocheiro, em seu assento, lançava olhares desesperados às tabernas. Não compreendia que furor de locomoção levava tais indivíduos a não quererem deter-se. Procurava fazê-lo, algumas vezes, e logo ouvia atrás de si exclamações de cólera. Então fustigava ainda mais seus dois matungos cobertos de suor,
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sem preocupar-se com os solavancos, esbarrando ora aqui ora acolá, sem se preocupar, arrasado e quase chorando de sede, de cansaço e de tristeza. E no porto, em meio aos carroções e aos barris, e nas ruas, nos marcos das encruzilhadas, os burgueses esbugalhavam os olhos assombrados diante daquela coisa tão extraordinária na província, uma carruagem com os estores fechados e que aparecia assim continuamente, mais fechada do que um túmulo e sacudida como um navio. (FLAUBERT, 1857/1993, p. 260, 261)
O que encontramos neste trecho e em muito outros da obra de Flaubert é um estilo que nos lembra, fazendo um paralelo com o sonho, a alusão, efeito do deslocamento, da metonímia que transfere a significação do ato sexual para a descrição da carruagem fechada como um túmulo e sacudida como um navio.
E por que o deslocamento? Porque Flaubert nos fala de seu fantasma, da cena primária (FREUD, 1917/1973, p. 2353) em que os pais copulam diante do espectador que a descreve para nós, copulam diante de nós, para nosso deleite, seduzidos pela bela forma em que a cena nos é apresentada e que, ao mesmo tempo, nos protege de nos reconhecer nesta cena da qual fazemos parte, nem que seja como excluídos e, por isso mesmo, desejando dela participar. E é o autor do texto que nos dá essa oportunidade de satisfazermos o desejo, de gozarmos na fantasia e onde a pulsão encontra seu objeto, o olhar, ver e ser visto, pois, olhando, identificamo-nos, ao mesmo tempo, com os personagens que observamos em seu passeio lúbrico. Como articula Lacan :
É o objeto que responde à pergunta sobre o estilo que formulamos logo de saída. A esse lugar que, para Buffon, era marcado pelo homem, chamamos de queda desse objeto, reveladora por isolá-lo, ao mesmo tempo, como causa do desejo em que o sujeito se eclipsa e como suporte do sujeito entre verdade e saber. (LACAN, 1998. p.11)
Objeto que em Flaubert é o olhar, objeto que cai, que se revela quando o sujeito, eclipsado por sua própria escrita, isola-o de si mesmo embora nele se suporte. Não poderia haver melhor descrição do que esta do ideal de Flaubert: que a mão do escritor, na obra, desaparecesse como a mão de Deus no universo. Contudo, tal como a mão de Deus, a mão do escritor deixa seus rastros, os rastros do objeto que é a causa de seu desejo.
Num outro autor como James Joyce, o objeto que cai a partir de sua escrita e determina seu estilo é a voz. Ao invés das personagens parentais de Flaubert que copulam diante de nós, em Joyce são os próprios significantes que copulam, juntam-se, amalgamam-se, misturam-se provocando um gozo que é potencializado pela leitura em voz alta de“Finnegans Wake”, o Velório de Finnegan, como sugere Lacan (2007) no seminário “O Sinthoma”:
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Par tido? Eu o teria dito! Macool, Macool, porra, por quiski, ocê murreu? Foi de sede em terça merdinha? Chopes aos choupos no do Finnado veludo velório, estrelas de toda nação, a prostração na consternação e a duodizimamente profusiva plethora de ululação. Havia à porfia pedreiros, casados, delgados, violeiros, marinheiros, cinemen, de tudo. E todos giravam na mais alto- falante showialidade. Agogue e magogue rodeavam o grogue. Para a continuação da celebração até à de Gengiscão exterminação! Alguns no tam-tam do tamborim, e mais, cancan no pranto. Pra cima no batuque pra baixo no muque. Tá duro, mas soberbo, O Priapo d’Olinda! Se houve cabra alegre no tablado,era o Finnado. Afila Em cone a pipa de pedra, que pingue cevada!Adonde neste bosta y mundo Escuitarás loisa igual? Ir de pros fundos e dar desta à fé deles? Acomodaram o salmão em seu derradeiro leito. Com um abocálipse de finisky aos pés. E uma genesíaca barrica da loiraespumante à cabeça. Te que o tutal do fluido flua no duotal do fluminado, Ué! (JOYCE, 1939/1990, p. 37).
A voz, objeto da pulsão das palavras impostas que se materializavam no delírio da filha de Joyce e que este tomava como capacidade telepática ressoam em sua escrita de “Finnegans Wake” que não é um delírio, pois se por um lado, ele transgride a língua, não deixa de se servir do simbólico através do qual faz suplência ao Nome-do-Pai, o que vai na direção do que Lacan aponta como o que de melhor pode se esperar de uma análise, “Por isso a psicanálise, ao ser bem sucedida, prova que podemos prescindir do Nome-do-Pai. Podemos sobretudo prescindir com a condição (o grifo é meu) de nos servirmos dele” (LACAN, 2007, p. 132). Suplência na qual Joyce copula com a língua-mãe, em que se faz, ele mesmo um nome, Joyce, com o que recupera a consistência imaginária perdida na surra que levou dos amigos, experiência que é resignificada no “Retrato do Artista Quando Jovem” (JOYCE, 1916/2007, p. 93, 94).
Joyce não é deus, não pode mudar os fatos, mas pode criar um outro, universo simbólico, “[...] a fim de moldar, na forja da minha alma, a consciência ainda não criada da minha raça.” (JOYCE, 1916/2007, p. 231). Mas aqui cabem algumas perguntas: Quem cria o quê ou, o quê cria quem? O autor cria o texto ou é criado por ele? O autor: podemos datá-lo, referenciá-lo, contextualizá-lo em relação a sua obra, a sua história, no entanto, o sujeito não decorre desses dados, ele não pré-existe a eles nem é produto deles, ele é efeito de sua própria escritura, de seu savoir faire.
Se tivéssemos apenas a história familiar do autor Joyce, talvez tivéssemos apenas uma psicose. Lacan mesmo levanta a questão sobre a loucura de Joyce, quando fala de uma Verwerfung de fato, de uma demissão paterna que na história familiar de Joyce aparece na forma de um pai que, “[...] jamais foi um pai para ele? Que não apenas nada lhe ensinou, como foi negligente em quase tudo, exceto em confiá-lo aos bons padres jesuítas, à Igreja diplomática?” E que, como compensação, sente-se chamado a ser um grande artista. Em sua obra, o que Lacan encontra é que, “[...] Joyce permanece enraizado em seu pai ainda que o renegando. É
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efetivamente isso que é seu sintoma” (LACAN, 2007, p. 86). Sintoma que se transforma em sinthoma na escrita de Joyce, candidato à psicose, que o transforma no sujeito/autor Joyce. Sujeito de um desejo que se eclipsa na própria escrita, reveladora de um objeto que o determina em seu estilo. O enigma de Joyce, de sua escrita, como aponta Lacan é, a nosso ver, ele mesmo: Joyce. Quem é Joyce? O que fez Joyce?
Joyce constrói a si mesmo enquanto um nome próprio em sua escrita e se perpetua no Outro, através de seus enigmas. É provável que do túmulo, Joyce ainda goze dessa voz, dos universitários como ele previu, por trezentos anos, ou, mais ainda... Quem é Joyce?
Em Flaubert encontramos um estilo marcado pela precisão, como nos indica Fúlvia Moretto, na apresentação do romance, “Madame Bovary”, “Os contemporâneos e mesmo os críticos do início do século XX apreciaram um estilo preciso, a profundidade da análise psicológica e do estudo detalhado dos costumes de província.” (MORETTO, 1993, p.8). O que nos remete à precisão do estilete usado pelos escribas, de onde provém o termo estilo, e que nos remete ainda à precisão do bisturi usado pelo pai de Flaubert, cirurgião chefe do hospital que Flaubert frequentara muitas vezes na infância. Aqui nos permitimos, sem pretensões psicobiográficas, nos referirmos à recusa de Flaubert em seguir a mesma carreira que o pai e seu enveredar pela atividade literária, onde não deixa de se manifestar como vimos a precisão cirúrgica de sua pena. Da mesma forma que, como observa Sérgio Laia,
Conforme evidencia Gillet, as “relações tão singulares” de Joyce com John Stanislaus, ou seja, tudo que lhe foi imposto sob a chancela do que eu tenho podido chamar, graças a Ellman, de domínio retórico paterno vão aparecer, “mais do que se imagina, como o fato central da vida de Joyce, o suporte, o pivô de sua obra. (LAIA, 2001, p. 212)
Se em Flaubert, podemos pensar num retorno do recalcado no simbólico, do olhar e da mão do cirurgião que retorna na escrita precisa de Flaubert, em Joyce poderíamos pensar num retorno do forcluído no real, de um retorno da voz de seu pai Stanislaus.
No período em que o estado de Lucia se agravou consideravelmente, Joyce ficou seis ou sete noites sem dormir, tendo muitos pesadelos e, durante o dia, apareceram-lhe “as alucinações auditivas”. Ellman relata-nos também que Joyce consultou, então, “um doutor Debray” que, “como sempre acontecia, determinou que o problema era dos nervos” e ainda recomendou-lhe que voltasse a “trabalhar em seu livro”. (LAIA, 2001, p. 215).
As vozes intensificadas pelas crises de loucura da filha de Joyce, já o assombravam anteriormente, “[...] o escritor vai fazer referência ao modo como a voz do pai o afetava: “[...] parece-me que sua voz, de
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algum modo, entrou em meu corpo ou em minha garganta. Ultimamente mais do que nunca – especialmente quando suspiro”. (LAIA, 2001, p. 214)
Mas, em conformidade com o que Lacan aponta no seminário sobre o “Sinthoma”: Os sintomas parecem ceder na medida em que Joyce consegue seguir essa recomendação. Este efeito pode nos servir de subsídio para reforçar a argumentação lacaniana de que Joyce encontrava, na obra, uma espécie de ancoragem, uma verdadeira amarração para as palavras que lhe eram impostas. (LAIA, 2001, p. 215, 216).
No entanto, o que queremos destacar aqui, independentemente das considerações anteriores que podem ser levadas facilmente para o campo da interpretação selvagem e da psicobiografia - o que não nos interessa - os estilos de Flaubert e de Joyce e o objeto implicado neles aparece no próprio texto, na própria leitura desses autores, como quisemos demonstrar.
Se por um lado, em Flaubert, o objeto que salta à vista é o olhar, pois que seu estilo produz imagens com as quais o leitor se deleita numa identificação especular, em Joyce, o efeito não é de identificação, simpatia, mas de “ilegibilidade”, estranhamento (LACAN, 2007, p. 147, 148). E para que possamos apreciá-lo, temos que lê-lo em voz alta, como sugere Lacan, pois é justamente ela, a voz, que está implicada nele e determina seu estilo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Sérgio Scotti
Doutor em Psicologia Clínica, USP, 1998
Professor Associado, UFSC
Professor do Programa de Pós Graduação em Psicologia, UFSC
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero11/sergio.html
Número 11 (2009) - ISSN 1981-870X