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A escrita “sob-controle”: Considerações sobre o narrador na ficção de José Saramago
Madalena Vaz Pinto
Real Gabinete Português de Leitura
vazpinto.mada@gmail.com
Resumo:
A escrita “sob-controle”: considerações sobre o narrador na ficcção de José
O propósito deste texto é analisar a presença do narrador em alguns dos livros de Saramago e a partir dela discutir a concepção de autoria e de literatura do autor. Pretende-se, por um lado, mostrar como a própria concepção de narrador de Saramago lhe permite que funcione como uma extensão de si, suas idéias e opiniões; por outro, como essa presença constante impede uma leitura plural de seus romances.
Palavras-chave: Autoria. Narrador. Teoria da literatura.
Abstract:
Writing “under control”: considerations about the narrator in José Saramago´s fiction
The purpose of this text is twofold: first, to investigate the presence of the narrator in some of Saramago´s novels; and second, on the basis of this presence, to discuss the author ´s conception of authorship and literature. First, we intend to show how the author´s conception of the category of ‘narrator’ enables him to function, within the narration, as an extension of himself, his ideas and opinions; second, how this constant presence limits the possibility of plural readings.
Key-words: Authorship. Narrator. Literary theory.
O narrador é uma invenção do autor para uma voz que enuncia o discurso. Trata-se de uma existência fictícia, um “ser de papel”, como lhe chamou Barthes. Esse texto propõe-se pensar a presença do narrador na ficção de Saramago e a partir dela discutir a concepção de autoria e de literatura do autor.
É Saramago quem afirma:
Continuo a pensar que o narrador não existe, quem existe é o autor, que tem uma história na cabeça e a quer passar ao papel. E como isto para mim é quase uma regra de ouro, estou presente, admito que ás vezes até de mais, no que escrevo. Não para falar de mim, mas para dar as minhas opiniões, as minhas ‘sentenças’. (SARAMAGO, 2003, p.96)
E reconhece: “Tenho uma espécie de preocupação pedagógica, até excessiva. Creio que isso é consequência da minha relação com o narrador”. (SARAMAGO, 2003, p.96)
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Ao afirmar que o narrador é uma projeção sua a “serviço” da história que quer contar, Saramago iguala indivíduo, autor e narrador, expondo uma concepção de autoria clássica onde o texto é entendido como o resultado de uma intenção autoral que o leitor deve decodificar. Essa concepção é por sua vez decorrente de um sujeito confiante em sua percepção do objeto e na linguagem como meio de expressá-lo. Desse modo, Saramago passa longe das novas teorias da subjetividade, caracterizadas independentemente das diferenças entre si – alteridade, anonimato, multiplicidade – para um enfraquecimento do sujeito cartesiano. Temos assim uma escrita “sob-controle”, que não reconhece a alteridade do narrador nem a participação do leitor na construção de sentido.
Saramago começa a ser um escritor conhecido em Portugal a partir da publicação do romance Levantado do Chão, em 1980. A saga da família Mau-Tempo – situada em uma zona rural de Portugal marcada por sublevações e prisões – de 1900 até à Revolução dos Cravos, encantou muitos leitores. A reescrita da história a partir da ótica dos excluídos, aliada a um estilo particular de narrar – enorme capacidade de fabulação sem abrir mão do equilíbrio verossímil – contribuíram para o grande sucesso desse romance.
A revisão da história levada a cabo em Levantado do chão caracteriza grande parte dos romances portugueses da década de 80, de que são exemplos, entre outros, A Balada da Praia dos Cães (1982), de Cardoso Pires, Auto dos Danados (1985), de Lobo Antunes, O Cais das Merendas (1982), de Lídia Jorge. Levantado do Chão distingue-se desses outros romances pelo final: a ocupação do latifúndio pelos trabalhadores. Nesse desfecho, contrastante com os finais problematizadores dos outros romances citados, Saramago apresenta um percurso teleológico da humanidade condizente com a sua assumida ideologia marxista. Esse aspecto contribuiu para que o romance fosse apreciado pela esquerda anteriormente sem voz e recusado por grande parte da direita, ressentida com a perda de sua situação privilegiada. Ambas as reações contribuíram para construir à volta de Saramago uma espécie de “proteção” crítica, que impede que se analise sua obra independentemente de suas opções políticas.
Maria Lúcia Lepecki, autora de um dos ensaios mais entusiasmados sobre o romance, afirmava:
Assumindo o Narrador principal (bem como a instância autorial) a inteira responsabilidade do dizer, o texto deixa-se marcar por uma dominante de univocidade. Quer dizer que, no plano da mensagem, somos levados a aceitar (e
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fazemo-lo voluntária e prazeirosamente) a perspectiva político-ideológica tanto do Narrador principal quanto da instância autorial. ((LEPECKI, 1988, p. 89).
É curioso o tom inquestionável como Maria Lúcia Lepecki concilia a mensagem ideológica e a participação dos leitores: “Todavia, essa univocidade não agride a liberdade do leitor para organizar o texto, também aberto e plurievocativo – por mais paradoxal que possa parecer, num romance centrado em mensagem muito clara – Levantado do Chão não só permite como ainda pede que elaboremos sobre o que nos é dito”. (LEPECKI, 1988, p. 89).
Parece paradoxal e é, mas Lepecki contorna essa complexidade de maneira simplificadora: “O processo de percepção da univocidade político-ideológica é, assim, produzido na escrita e reproduzido numa leitura onde são largas as margens de liberdade para organizar”.(LEPECKI, 1988, p. 89) Além disso, seu texto contribui para a confusão entre autor e narrador:
Para estender o jogo pedagógico até aos limites máximos, também o Autor instância do discurso intervém. Ele “ouve” todas as vozes – precariamente se faz discípulo – , “prevê” uma possível desorientação do leitor e, já definitivamente mestre, manipula insidiosamente, como compete a toda a boa instância autorial, para os sentidos não se perderem e a mensagem não se deteriorar. (LEPECKI, 1988, p. 89).
Lepecki tem razão em considerar essa uma atitude pedagógica, embora a nosso ver deslocada. Pedagogia significa orientação no sentido de educação, o que coloca o narrador em posição de educador e, portanto, hierarquicamente superior ao leitor. Uma atitude que se opõe à literatura contemporânea, obra plurissignificativa, “aberta” à participação do leitor na construção de sentidos.
O mesmo acontece com Maria Alzira Seixo, em ensaio sobre o mesmo romance, em que comenta a presença do narrador:
a necessidade dessa presença emergente de um narrador que, tendo-se consideravelmente apagado em Objecto Quase e no Manual, repõe a sua condição humana exercitada à saciedade nas crônicas, e adquire a mescla de um saber cultural transcendentalizado, feito comedido demiurgo [...]. (SEIXO, 1989, p. 37)
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Ou seja, desde Levantado do Chão, o narrador em Saramago tece a narrativa de acordo com coordenadas políticas e ideológicas, atribuindo ao narrador o papel de apontar os caminhos da leitura, o que deixa pouco espaço para o leitor. A crítica, por sua vez, reconhece a sua presença e justifica-a pela mensagem humanista que transmite, perpetuando portanto a con-fusão entre autor e narrador e a literatura como expressão de um “eu”.
Aceite a onipresença do narrador, com todas as suas implicações, o que mais surpreende é a argumentação que a legitima. Não incomoda que se goste dos romances de Saramago, o que incomoda é que se lhe atribuam características que eles não têm. Uma delas é a insistência na pluralidade de vozes que os compõem. Essa seria a marca de um ato democrático do autor, “dar voz” a personagens habitualmente esquecidas pela história. Se é correto afirmar que existe de fato um coro de vozes, é preciso perceber que se trata de uma pluralidade homogênea, organizada em forma de oposição simplista e sustentada pela voz narrativa que contribui para impedir a heterogeneidade potencial dessas vozes. O narrador Saramago “julga” e “avalia” o desdobramento das ações, e assim impede a abertura que a pluralidade dessas vozes prometia. Uma fórmula que ignora a multiplicidade optando por resolvê-la de forma dialética, simplificando assim a realidade. Cabe então perguntar: que mundo é esse sonhado por Saramago? Certamente não um mundo por inventar, mas um mundo que, no entender do autor, “devia ser”.
De fato, o que encontramos na ficção de Saramago é uma mesma concepção de mundo, sustentada pela voz do narrador que dirige e encaminha sentidos. Duas características contribuem de maneira particular para exercer esse controle: a forma camuflada como se manifesta, misturada ao tecido da narrativa, confundindo-se com outras vozes que aí ocorrem; sua posição de detentor de um “saber” autolegitimado por uma ancestralidade que a recorrência de provérbios tão bem ilustra.
Não se trata assim de negar a capacidade de fabulação de Saramago, mas de reconhecer que essa está a serviço de uma ordem que é preciso restabelecer, em que as noções de justiça e injustiça, bem e mal, confirmam um humanismo tradicional que em nada contribui para a invenção de novas formas de vida. Aliás, a singularidade de sua narrativa está no contraste entre uma enorme capacidade fabuladora e o controle dessa fabulação. São exemplos disso a Jangada de Pedra, que narra o desprendimento da Península da Europa, O Ano da Morte de Ricardo Reis, onde o heterônimo de Fernando Pessoa volta a Lisboa, ou no
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Ensaio sobre a Cegueira, em que uma estranha epidemia cega as pessoas. O talento para imaginar situações inusitadas parece prometer um espaço de experimentação borgiana, logo limitado pelo elevado grau de intervenção do narrador. No fundo, o recurso à História como inspiração, serve a Saramago para estabelecer um tipo de compromisso com o real, onde o narrador intervém, para o “corrigir”:
Quando digo corrigir, corrigir a História, não é no sentido de corrigir os factos da História, pois essa nunca poderia ser tarefa de romancista, mas sim de introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o que até então parecia indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido. Certamente se argumentará que se trata de um esforço gratuito, pouco menos que inútil, uma vez que aquilo que hoje somos não é do que poderia ter sido que resultou, mais do que efectivamente foi. Simplesmente, se a leitura histórica, feita por via do romance, chegar a ser uma leitura crítica, não do historiador, mas da História, então essa nova operação introduzirá, digamos, uma instabilidade, uma vibração, precisamente causadas pela perturbação do que poderia ter sido, quiçá tão útil a um entendimento do nosso presente como a demonstração efectiva, provada e comprovada do que realmente aconteceu. (SARAMAGO, JL, Ano X, n. 400, p. 19).
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Essas afirmações parecem indicar que o autor escreve para se opor ao discurso do “poder”. Entretanto, o discurso desse “contra-poder” é em si mesmo um discurso “dirigido”, detentor de “verdades”. Se a narrativa histórica é um tecido com espaços vazios que é possível preencher, na narrativa saramaguiana esses logo deixam de o ser, preenchidos que são pelo próprio narrador, por onde dificilmente será possível vislumbrar outros horizontes.
Existe portanto uma ambiguidade entre o assumir a relatividade do conceito de verdade no que toca ao discurso historiográfico, o que o leva a querer re-construí-lo, e em assumir o “domínio” da narrativa através de um narrador onisciente. Isso comprova, a nosso ver, que Saramago assume a autoria de seu texto como extensão de si: o texto pertence-lhe, não se abre ao “fora”. A recepção e a crítica encontram-se na maior parte das vezes reféns dessa simplicidade. Discute-se o texto tendo como referência o autor, suas opiniões e comportamentos, e pouco o texto.
É curioso que Saramago diga que escreve para “entender o mundo” e que se considere mais um ensaísta que romancista “que por não saber escrever ensaios, se limitou aos romances”. (OSÓRIO, 2001, p. 248) O ensaio é por definição o espaço onde o pensamento se apresenta em seu desenrolar, um texto que não afirma mas indaga, um texto onde está
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presente o “espanto”, a hesitação, a hipótese. O ensaio é um texto desarmado. Como o ensaio se poderá relacionar com o tom fortemente propositivo que encontramos nas narrativas desse autor? Saramago não escreve para “pensar”. Saramago não se descobre “outro” pela escrita. Saramago escreve o que “pensa”. Por isso a recepção a seus textos está a priori limitada, identificada com o autor Saramago, o que a impede de se metamorfosear e encontrar outros devires.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Nova Vega, 2006.
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LEPECKI, Maria Lúcia. Sobreimpressões. Estudos de literatura portuguesa e africana. Lisboa: Caminho, 1988.
MOURÃO, Luís. Um romance de impoder: a paragem da história na ficção portuguesa contemporânea. Braga-Coimbra: Ângelus Novus, 1996.
OSÓRIO, Luís. 25 portugueses, Lisboa: Notícias editorial, 2001.
REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1998.
ROCHA, Clara. Ficção dos anos 80. In: História da literatura portuguesa. Correntes contemporâneas. Lisboa: Alfa, 2002, p. 463-486.
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_____. “História e ficção”. Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, ano X, n. 400, p. 19.
_____. Jangada de Pedra. Lisboa: Caminho, 1986.
_____. Levantado do chão, 7ª. ed. Lisboa: Caminho, 1985.
_____. Manual de pintura e caligrafia. Lisboa: Caminho, 1983
_____. Memorial do convento. Lisboa: Caminho, 1982.
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_____. O ano da morte de Ricardo Reis, 8ª. ed. Lisboa: Caminho, 1986
_____. Que farei com este livro? Lisboa: Caminho, 1980.
SEIXO, Maria Alzira. A palavra no romance. Ensaios de genealogia e análise. Lisboa: Livros Horizonte, 1986.
_____. Lugares da ficção em José Saramago. Lisboa: INCM, 1999.
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago: entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
Madalena Vaz Pinto
Doutora em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa), PUC/RJ, 2007
Diretora do Centro de Estudos do Real Gabinete Português de Leitura
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero11/madalena.html
Número 11 (2009) - ISSN 1981-870X