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A escrita do abismo de Clarice Lispector: Melancolia e Angústia
Felipe Castelo Branco
Corpo Freudiano do Rio de Janeiro Escola de Psicanálise Seção Rio de Janeiro/CFRJ
felipecastelobranco@terra.com.br
Resumo:
A escrita do abismo de Clarice Lispector: melancolia e angústia
Através da escrita de Clarice Lispector em Um sopro de vida, seu livro inacabado, buscaremos discutir a relação entre culpa e angústia diante da perda na melancolia a partir da teoria freudiana. Algumas questões sobre a relação entre escrita e angústia provocadas pelo texto de Clarice também serão contempladas.
Palavras-chave: Melancolia. Clarice Lispector. Culpa. Angústia.
Abstract:
Clarice Lispector´s writing of abyss: a study of melancholy and anxiety
Drawing on Clarice Lispector’s unfinished book, Um sopro de vida, we will investigate the relationship between guilt and anxiety in the face of loss in cases of melancholy, from a Freudian perspective. Some questions about the relationship between writing and anxiety in Lispector’s work will also be dealt with.
Keywords: Melancholy. Clarice Lispector. Guilt. Anxiety.
Em 1977, a escritora Clarice Lispector, que lutava contra um câncer e já se encontrava gravemente doente, escreve Um sopro de vida, trabalho que só foi publicado postumamente. Sabendo ser esse o último livro que escreveria e sentindo-se tão próxima da morte, Clarice foi capaz de nos dar um sublime testemunho da angústia diante de um escrito e do horror diante da morte.
As passagens desse livro, prenhe da experiência-limite do vivo diante da finitude (experiência marcada pela culpa e pela angústia), têm o peso de “lições de abismo”. Foi justamente esse lugar limítrofe, essa fala à beira do abismo, que Freud identificara na queixa melancólica e que tanto o fascinou. A fala nua da melancolia, fala que denuncia a pobreza da existência, parece ter sensibilizado o criador da psicanálise a ponto de fazê-lo reconhecer na denúncia melancólica alguma verdade.
Quando, em sua exacerbada autocrítica, ele [o melancólico] se descreve como mesquinho, egoísta, desonesto, carente de independência, alguém cujo único
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objetivo tem sido ocultar as fraquezas de sua própria natureza, pode ser, até onde sabemos, que tenha chegado bem perto de se compreender a si mesmo; ficamos imaginando, tão-somente, por que um homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie. (FREUD, 1917(1974): p.278-279)
Freud pensa a lamentação melancólica como autocompreensão, como acesso a uma verdade. Há algo na melancolia que toca a neurose muito profundamente. O melancólico, adoecido, parece tocar a verdade que é velada pela neurose, essa verdade que surge na neurose nas irrupções do recalcado e nas denegações; maneiras de o sujeito se confrontar com a verdade da qual ele nada quer saber. Do lugar dessa verdade, o personagem de Clarice declara: “Sou sério e honesto e se não digo a verdade é porque esta é proibida. Eu não aplico o proibido mas eu o liberto.”(LISPECTOR, 1999: p. 18)
Clarice Lispector e a melancolia: escrita e finitude
É importante ficar claro o interesse que surge sobre Um sopro de vida ao falarmos da melancolia freudiana. Não se trata aqui de fazer um diagnóstico selvagem da autora, não é nossa pretensão afirmar que Clarice seja melancólica ou psicótica. O que nos interessa nesse trabalho é enxergar como a experiência da escrita pôde lançar a autora numa posição muito próxima daquilo que nomeamos de experiência de abismo, posição que o melancólico freudiano também frequenta. Sabemos que o conceito de mímesis, noção fundamental no que diz respeito ao fazer artístico na Grécia clássica, já carregava, desde Platão e Aristóteles, o sentido de imitação, mas também a possibilidade de transformar o artista, em certa medida, naquilo mesmo que ele imita. Sendo assim, o artista pode tornar-se outrem sem deixar de ser o que é.
Posso me fazer o cidadão, o chefe, o estratego, o legislador, o poeta; mas também, para voltar a Platão, o universo inteiro, o pássaro que canta, o movimento das ondas, o murmúrio das águas. (PIGEAUD, 1998: p.45)
Em seu escrito de 77, Clarice é a criadora e o criado. O livro se baseia num personagem sem nome, chamado simplesmente de “Autor”, que vive a angústia de sair de uma letargia
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culpabilizante, dando vida a uma outra personagem que ele criara, batizada de Ângela Pralini. O autor é personagem e sua criação o recria.
Clarice foge das interpretações que buscam ver na fala desse “Autor” uma autoconfissão. Contudo, alguns elementos nos levam a confundir Autor e “autora” já que, sempre se referindo a este personagem como masculino, por vezes Clarice o faça falar de si mesmo no feminino. E o que é mais importante: além de utilizar falas muito semelhantes às de seu próprio personagem em uma entrevista concedida a Affonso Romano de Sant’Anna no mesmo ano, Clarice põe na boca desse personagem a lembrança de alguns trabalhos que ele haveria escrito: todos livros e contos dela própria.
Mas qual a origem da letargia culpabilizante em que vivia o autor? O que o faz mover-se daí? Freud, em Luto e melancolia, de 1917, compreende a melancolia como efeito, assim como o luto, da perda de um objeto que, no instante de seu desaparecimento, deixa a marca de uma ferida aberta no psiquismo para aquele que a sofre. No entanto, o padecimento e a perda de interesse pelo mundo, marca inevitável e mais imediata tanto do luto quanto da melancolia, podem ocultar mecanismos dessemelhantes diante de uma mesma origem. Se as semelhanças entre ambas as afecções são grandes, as diferenças entre elas podem ser ainda mais significativas.
“Eu sou nostálgica demais, pareço ter perdido uma coisa não se sabe onde e quando” (LISPECTOR, 1999: p.70), nos diz Ângela Pralini. Como não reconhecer aqui a perda de que nos fala Freud, constitutiva da melancolia? O melancólico sabe que perdeu alguma coisa, mas é incapaz de saber o quê. Há uma condição de transitividade em relação à imagem de outrem na melancolia, em que o laço com o objeto se torna a condição para haver uma imagem de si mesmo para o melancólico. “Sonhei que brincava com meu reflexo. Mas meu reflexo não estava num espelho, mas refletia uma outra pessoa que não eu.” (LISPECTOR, 1999: p.27)
No momento do desaparecimento do objeto, não se trata simplesmente da perda de algo ou alguém amado, mas de um objeto que sustentava a identificação imaginária e que, por esse motivo, o melancólico não pôde abrir mão do laço que o ligava àquilo que era amado, sob pena de se ver lançado diante do real devastador, de um furo incontornável em sua própria imagem.
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Conectados pelo vazio deixado pela perda de um objeto amado, a resposta mais imediata a essa perda, tanto para o luto quanto para a melancolia, é a culpa. Lançado às portas de um processo de luto, aquele que se confronta com o real devastador deixado pelo vazio de uma perda, assim como na melancolia, inicia abertamente um movimento de autoculpabilização muito poderoso. No entanto, é preciso questionar: que função tem a culpa nesses casos? Teria a culpa uma função semelhante tanto no luto quanto na melancolia? Como compreender a poderosa culpabilização que surge frequentemente na fala de uma pessoa em luto?
Em ocasiões de perda de um ente amado, escutamos o enlutado denunciar sua impotência diante da possibilidade de evitar tal perda, além de desenvolver uma série de lamentações em relação aos atos deixados por fazer ligados àquele que se foi, aos gestos de carinho não demonstrados, às palavras jamais ditas, ou tão simplesmente, o vemos exibir culpa e responsabilidade direta pela morte, anunciada ou não, de uma pessoa querida. Diante da angústia gerada pelo vazio de sentido de um encontro com o real que esburaca a fantasia, a culpa parece possibilitar um mínimo de sentido e alguma possibilidade de simbolização para esse furo, até então não simbolizada, que está no cerne de todo acontecimento traumático. Tudo se passa como se a culpa oferecesse uma possibilidade de confronto com a finitude, ao preço de lançar o eu no front de batalha contra o traumático. De peito aberto, o eu é atacado por essa culpa que faz o trabalho de “proteger” o sujeito da angústia que insiste como índice do não simbolizado. Diante da angústia que assalta o sujeito, que faz furo na fantasia, e que lança, sem apelação, o real diante dele, a culpa, ainda que cobre o preço da autotortura e da autopunição, é preferida ante a ameaça de permanecer numa dimensão de não sentido radical.
Em R.S.I., Lacan define a angústia como “a invasão do imaginário pelo real” (JORGE, 2001: p.128), e, portanto, como um vazio de sentido no seio do registro onde habita o sentido. Uma invasão que, no luto, ameaça a elaboração simbólica que constitui propriamente o mecanismo desse processo. Como resposta do sujeito e anteparo ao não sentido traumático que está na nascente do luto, temos um inflacionamento do imaginário que é possibilitado, justamente, pela culpa. Lacan nos diz que “é por isso, como a experiência mostra a vocês, que a culpa é sempre preferida à angústia” (LACAN, 1953: p.33). A culpa sendo a “variação
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topográfica” da angústia, conforme se expressa Freud, oferece uma sustentação de sentido possível contra a presença avassaladora do real, do qual a angústia é sinal. É, portanto, como um recurso de simbolização contra o medo de ser engolido por uma perda de sentido avassaladora, ou seja, pelo medo de que a falta falte, que a culpa é “provocada” pela angústia.
Do mesmo modo que no luto, diante da falta do objeto investido por um forte laço de amor, o melancólico se culpa e se pune de uma maneira, por vezes, devastadora. É a culpa que alimenta a monotonia das lamentações melancólicas, característica mais óbvia dessa afecção. Portanto, a culpa deve manter uma forte ligação com a estagnação radical do tempo, queixa típica da melancolia. Nos diz o Autor/Clarice:
De agora em diante o tempo vai ser sempre atual. Hoje é hoje. (...) E amanhã eu vou ter de novo um hoje. Há algo de dor e pungência em viver o hoje. (LISPECTOR, 1999: p. 14) Eu compreendo melhor a morte. Ser cotidiano é um vício. (LISPECTOR, 1999: p. 19) Para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa – eu cultivo um certo tédio. (LISPECTOR, 1999: p. 14)
Se esse mesmo outro que falta, causa e motivo do vazio em que vive o melancólico, serviu para ele, antes do momento da perda, como sustentação imaginária, isto é, se esse objeto foi capaz de sustentar o melancólico numa transitividade que o fez inteiramente dependente de sua imagem, numa cola imaginária onde a imagem do objeto foi mimetizada, capturada e transformada na imagem de si mesmo; a perda do objeto, por sua vez, lança o sujeito, na melancolia, num vazio aterrador, onde a queda da imagem dá lugar ao real para o qual ela funcionava como véu.
Para evitar a proximidade excessiva do núcleo real que emerge da ausência de i(a), surge como resposta a esta ligação com o objeto que se converte em uma experiência de completo horror, a introjeção do objeto no próprio eu do melancólico, mesmo que esse objeto tenha sido definitivamente perdido. O primeiro momento da melancolia, portanto, consiste precisamente numa rejeição, num ato de negar a perda, pela via da incorporação do objeto, ou, dito de outro modo, consiste numa tentativa de eternizar o objeto, negando sua finitude, independentemente de sua presença. A famosa afirmação de Freud de que nessa tentativa de recusa “a sombra do objeto
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recai sobre o eu” nos fala do caráter de vazio e de horror em que o melancólico se vê lançado ao passar por essa experiência de ausência do objeto e, portanto, de perda da imagem que o sustentava. Afinal, o que significa uma sombra senão, precisamente, aquele negativo que se oculta por trás do objeto; ou, dito de outro modo, o que é uma sombra senão um vazio informe que acompanha e que permanece no fundo de toda imagem? É justamente essa sombra, esse vazio, que resta ao melancólico e que ele introjeta em si, ocupando, agora, ele mesmo, o lugar de objeto resto da simbolização.
Nesse movimento, a culpa surge imediatamente. Diante da sombra que se alastra, tomando todas as dimensões da vida psíquica, a culpabilização melancólica, ao mesmo tempo em que revela sua posição de objeto dejeto, oferece significantes aos quais o melancólico se agarra, numa lamentação que se converte numa queixa pobre e infindável.
Tenho grande necessidade de viver de muita pobreza de espírito e de não ter luxo de alma. (..) Escolhi hoje para vestir umas calças muito velhas e uma camisa rasgada. Sinto-me bem em molambos, tenho nostalgia de pobreza. (LISPECTOR, 1999: p.41) Tenho preguiça moral de viver. (LISPECTOR, 1999: p.30) Hoje matei um mosquito. Com a mais bruta das delicadezas. Por quê? Por que matar o que vive? Sinto-me uma assassina e uma culpada. E nunca mais vou esquecer esse mosquito. Cujo destino eu tracei. A grande matadora. (LISPECTOR, 1999: p. 65) Sou fraca, dúbia, há uma charlatã dentro de mim embora eu fale a verdade. E sinto-me culpada de tudo. (LISPECTOR, 1999: p.128)
Na queixa melancólica, não se trata de uma insatisfação com sua própria imagem – coisa que todos vivemos como experiência cotidiana – mas da revelação, precisamente, da falta de um espaço onde possa se alojar o objeto. Se, por um lado, o luto é um processo gradual e penoso de reconhecimento da perda, configurando-se como uma tentativa de reelaboração do real sem sentido que se encontra no cerne dessa perda e, portanto, sendo um processo de confrontação com a castração; por outro lado, ao introjetar em si o objeto dessa perda, o melancólico bloqueia qualquer possibilidade de um processo de luto, tornando-se, ele próprio, o objeto perdido. No lugar de resto, frequentando como estrangeiro a dimensão do simbólico, o melancólico padece da imobilidade e da estagnação:
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Não aguento o cotidiano. Deve ser por isso que escrevo. Minha vida é um único dia. É assim que o passado me é presente e futuro. (LISPECTOR, 1999: p. 19) Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? Esgotaram-se os significados. (...) Eu queria que me dessem licença para eu escrever ao som harpejado e agreste, a sucata da palavra. (LISPECTOR, 1999: p. 14)
Fazer literatura seria, portanto, uma forma de criar passado e futuro? Mas imediatamente o Autor nos responde: Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo. (LISPECTOR, 1999: p. 16)
Angústia e escrita
Freud nos diz que o eu só aproxima e inclui dentro de si mesmo um objeto que possa ser considerado bom e que possa ser amado por ele. No entanto, a perda do objeto amado torna livre o caminho para a expressão evidente do ódio que existe no fundo de todas as ligações amorosas. O ódio subjacente ao amor direcionado ao objeto emerge abertamente nesse momento, com o objetivo claro de massacrá-lo e destruí-lo. No entanto, conforme acabamos de mostrar, nenhum objeto incluído no eu pode ser odiado ou considerado um mau objeto (sob pena de ser expulso do eu), exceto o próprio eu (agora convertido em objeto). É, portanto, o eu (identificado e convertido no objeto) que se torna mau, odiado e precisa ser punido pelo supereu na melancolia. Transformando o eu melancólico no próprio objeto (por não admitir a perda), ou seja, tentando manter a qualquer preço a ligação patológica que sustentava o melancólico antes do momento da perda e do surgimento do surto, torna-se possível ao supereu investir seu ódio e massacrar o objeto perdido através do eu: eis a origem da culpa melancólica. Embora seja o objeto que o supereu busque atingir, é o eu, precisamente, que assume e admite toda a culpa.
Na culpa que martiriza, humilha, zomba e extrai gozo da exibição devassada das falhas e imperfeições do melancólico, não há angústia. A angústia como temor de que a “falta falte” não está presente na melancolia precisamente porque, para o sujeito melancólico, a falta já faltou. O melancólico vive num tempo estagnado, sem nenhuma nostalgia do passado e, ao mesmo tempo, sem expectativa de futuro. Ao contar sua história, a soma dos acontecimentos do passado lhe parece um acúmulo de informações anônimas. E, contudo, eles são capazes de se deterem durantes longos momentos em uma ladainha sobre as atitudes cotidianas mais triviais. Cada ação
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e acontecimento, na melancolia, servem unicamente como fonte de culpabilização. Nesse eterno presente, marca fundamental do tédio de viver da melancolia, nesse tempo que não passa, o melancólico perde a dimensão de futuro por não ser capaz de manter o espaço de respiração necessário entre ele e a dimensão real do objeto a, ou, dito de outro modo, na melancolia, o gozo mortífero transborda para fora da compacidade promovida pela falta. Engolido pelo abismo mortífero, o melancólico é incapaz de encontrar bordas para esse gozo avassalador.
A morte é tão incomensurável que me perdi nela. (LISPECTOR, 1999: p.75) A coisa me domina. (LISPECTOR, 1999: p.105) Tempo para mim significa a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda sua polpa. O tempo não existe. (LISPECTOR, 1999: p. 14).
Mais uma vez, contra a angústia, a culpa. No entanto, a angústia, como um afeto que toca diretamente o sujeito, como um afeto que não engana, é um elemento capaz de arrancar o melancólico de sua letargia e da imobilidade temporal que ele experiencia. Se o melancólico vive mergulhado no horror da excessiva proximidade incestuosa de um gozo que o paralisa, a angústia pode proporcionar a ele a chance de criar um contorno a esse gozo, na forma de um esboço de objeto. Portanto, se no luto a angústia é aterradora e paralisante, e a culpa pode servir, paradoxalmente, de anteparo ao encontro direto com o real traumático da perda; na melancolia, a perda já afundou o melancólico no real paralisante, a culpa, por sua vez, o mantém agarrado a essa posição, e a angústia é justamente aquilo que pode afetar o melancólico em sua apatia, cito Jacques Hassoun:
...) se há uma manifestação de vida no mundo petrificado do melancólico, ela sobrevém no momento em que a angústia se revela suscetível de criar um objeto causa de desejo. (...) este objeto será suscetível de cortá-lo do seu gozo, da sua submissão e da sua apatia, para permitir-lhe se extrair da derrocada e reconhecer que há Outro. (HASSOUN, 2002: p.130)
É pela via de uma violência contra a apatia que a angústia pode aparecer. Hassoun crê que um escrito pode surgir como causa e efeito disso. Como autor, numa atitude que ensaia um mover-se de sua pesada passividade, o melancólico, diante daquilo que não cessa de não se
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escrever, simplesmente, escreve. Ou, ao menos, circun-escreve, ainda que tal escrita não seja uma forma de apaziguamento, mas uma possibilidade de respiração, o início de uma abertura, um afeto (angústia) que se direciona ao Outro.
Minha alma assassina em potencial, conhece então as escrituras ricas de sangue (...) (LISPECTOR, 1999: p.133) Com uma vida pobre (e qual vida é rica?) com a vida pobre eu me salvo dela através do imaginário. (LISPECTOR, 1999: p.74)
A escrita, podemos supor, exige que desse lugar de resto, de nada de simbolização, inicie-se o melancólico na dimensão de separação do Outro. Talvez ela seja, conforme propõe alguns autores, uma borda para a sombra que tomou todas as dimensões da vida na melancolia. Assim, escreve o Autor:
Este livro é a sombra de mim. (LISPECTOR, 1999: p. 13) Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. (...) Meditação leve e terna sobre o nada. (LISPECTOR, 1999: p. 15) Este é um livro silencioso. E fala, fala baixo. Este é um livro fresco – recém saído do nada. (LISPECTOR, 1999: p. 16) Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silencio e na penumbra. (...) Minha nascente é obscura. Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim. (LISPECTOR, 1999: p. 18)
E, no entanto, foi preciso criar um personagem. Parece que algo aí se modificou, ruptura em sua letargia passiva. Através de Ângela o autor surge para si mesmo como questão, e foi preciso tornar a referir-se a esse lugar de rebotalho, no entanto, movendo-se dele – função que, aqui, cumpre a angústia - para que fosse finalmente possível criar. O Autor nos fala dessa experiência:
Eu queria iniciar uma experiência e não apenas ser vítima de uma experiência não autorizada por mim, apenas acontecida. Daí minha invenção de um personagem. (LISPECTOR, 1999: p.19) Eu vivo em carne viva, por isso procuro tanto dar pele a meus personagens. Só que não aguënto e faço-os chorar à toa. (LISPECTOR, 1999: p. 17) O que está escrito aqui, meu ou de Ângela, são restos de uma demolição de alma, são cortes laterais de uma realidade que me foge continuamente. Esses fragmentos de livro querem dizer que eu trabalho
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em ruínas. (LISPECTOR, 1999: p.20)
Do afundamento em um gozo paralisante, e do Eu em ruínas, eis que um afeto, um ponto de fuga oferecido pela escrita, reluz como causa de desejo; ainda que tal reluzir apareça como um ponto negro, um ponto que tem a forma de enigma e que se origina na angústia. A testemunha disso é Ângela.
Ângela é uma gema, porém com um pequeno pingo negro no amarelo-sol. (LISPECTOR, 1999: p.50) Tudo nela se organiza em torno de um enigma intangível em seu núcleo mais íntimo. (LISPECTOR, 1999: p.53)
É esse íntimo núcleo negro, o objeto a, nascido da angústia que afetou o sujeito em sua letargia, e deu vida a Ângela, que é capaz de fazer escoar a sombra negra do objeto que havia dominado todas as dimensões da melancolia. Ângela funda um corte num mundo, até então, totalmente plano, sem ondulações ou movimento, a partir dela nasce um furo que funda uma questão angustiante e fundamental: a questão do Autor sobre ele mesmo.“Escrever” existe por si mesmo? Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta”. (LISPECTOR, 1999: p. 63)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FÉDIDA, Pierre. Depressão. São Paulo: Escuta, 1999.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. ESB - vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
HASSOUN, Jacques. A crueldade melancólica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
JORGE, Marco Antonio Coutinho. “Luto e Culpa na Análise e na Vida Cotidiana (Sobre as Resistências do Analista ou “Vamos Falar da Morte?”).” in: Urânia Tourinho Peres. Culpa. São Paulo: Escuta, 2001.
LACAN, Jacques. “O Simbólico, o imaginário e o real.” in: Jacques Lacan. Os nomes-do-pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1953.
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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PIGEAUD, Jackie. “Apresentação.” in: Aristóteles. O homem de Gênio e a Melancolia (Problema XXX,1). Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998.
Felipe Castelo Branco
Mestre em Psicanálise,UERJ, 2009
Doutorando, Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise, UERJ
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero11/felipe.html
Número 11 (2009) - ISSN 1981-870X