Resenhas
Pelos atalhos da terra moçambicana: Viagens periféricas e literárias
COUTO, Mia. Venenos de Deus, remédios do Diabo: as incuráveis vidas de Vila Cacimba. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, 188 p.
Claudia Amorim
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
claudia.amorim@uol.com.br
O último romance do escritor moçambicano Mia Couto, Venenos de Deus, remédios do Diabo: as incuráveis vidas de Vila Cacimba, publicado em 2008 no Brasil pela Companhia das Letras e com lançamento simultâneo em Moçambique e Portugal, narra a história do amor e da viagem de Sidónio Rosa, um português que se desloca de Lisboa à Vila Cacimba, uma vila imaginária em Moçambique, atrás da amada Deolinda, a moçambicana que conhecera em Lisboa. O deslocamento do português à África remonta às viagens portuguesas dos séculos XV e XVI, mas de modo diverso daquelas, o português, tomado de amor pela moçambicana, não é o conquistador que faz a travessia dos mares para dominar pela força terras alheias e seus povos, mas aquele que se sujeitou ao amor, que foi conquistado.
A viagem de Sidónio Rosa reconfigura as viagens portuguesas para a África, redimensionando metonimicamente a identidade do europeu / branco / colonizador que impõe pela força sua cultura a um outro (africano) tomado como inferior. Nessa narrativa, Sidónio, como sujeito amoroso, se rende à beleza de Deolinda e penetra em seu universo natal e familiar de tal forma que o adota, vivendo em Vila Cacimba, frequentando a casa de seus pais e estabelecendo nessa estadia, que não tem data de regresso, uma rotina.
Além dessa nova configuração das viagens portuguesas, essa narrativa, como não podia deixar de ser, envereda pelo mundo mítico africano, uma vez que Deolinda,
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por quem Sidónio opera uma grande travessia, nasceu no continente africano e traz como legado toda a cultura local que valoriza os elementos mágicos, a natureza criadora.
O mundo mítico e incompreensível ao europeu se inscreve já no início da narrativa quando Sidónio, situado em Vila Cacimba, está ocupado em cuidar de uma epidemia que parece ter tomado conta do pequeno vilarejo. Pensando a princípio que se trata de um surto de meningite, Sidónio percebe que a enfermidade é uma estranha doença que faz as pessoas perambularem pelas vielas enevoadas de Vila Cacimba. Alguns “tresandarilhos”, nome pelo qual são identificados os doentes, circulam pela Vila, outros ocupam os leitos do posto de saúde, no qual Sidónio passa a trabalhar como médico e logo a doença se espalha pela região. As causas da moléstia são desconhecidas, mas todos continuam a levar suas vidas como se já estivessem habituados à sua incidência.
Instalado em Vila Cacimba, instaura-se a viagem iniciática de Sidônio. Nesse momento, o português não é o turista que quer conhecer um país diferente, também não é exilado ou imigrante. Mas ainda é um estrangeiro que, por amor de uma moçambicana, procura entender o lugar e a cultura de sua amada. Malgrado os esforços de Sidônio para entender a cartografia, as fronteiras desse novo espaço e a gente que o ocupa, muitas coisas lhe escapam ao entendimento.
Das ruelas de Vila Cacimba, conhece apenas os atalhos que o levam a lugares conhecidos (a pensão onde habita, a casa dos Sozinho, os pais de Deolinda – cujo paradeiro Sidônio desconhece – , e o posto de saúde no qual trabalha). A constante neblina que se instaura em Vila Cacimba simboliza essa incapacidade de decifração que a localidade guarda.
Imergindo mais e mais em uma cultura diferente da sua, Sidónio continua se deparando com situações que não consegue entender. Em meio a revelações e descobertas que logo são desmentidas, Sidónio permanece na enevoada Vila Cacimba, local em que tudo se confunde e se transforma em outra coisa, caracterizando um mundo em que as verdades são muitas e, portanto, não estão em
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nenhum lugar. Tudo se relativiza e essa relativização está presente, inclusive, na primeira parte do título do romance: os venenos são de Deus, os remédios, do Diabo.
Distâncias separam Sidónio de Deolinda e da verdade sobre o destino da amada. Caminhando entre ditos e não-ditos, ou desditos, Sidónio descobre que a moçambicana morreu. Revoltado com tantos desencontros e sem outros motivos para permanecer na África, Sidónio decide partir de Vila Cacimba, não sem antes visitar o túmulo de Deolinda. No cemitério, encontra-se com Munda, supostamente a mãe da amada, que em conversa com Sidônio declara que a terra africana mente para viver. Se a mentira é necessária à terra africana para que ela viva, mentir resulta do incurável desejo de sonhar. Os moradores de Vila Cacimba (e da África) sonham e nisso reside sua força para sobreviver: “Talvez seja a espessura desse céu que faz os cacimbeiros sonharem tanto. Sonhar é um modo de mentir à vida, uma vingança contra um destino que é sempre tardio e pouco ”(COUTO, 2008, p. 155), nos adverte o narrador.
Segundo Zygmunt Bauman, o sociólogo polonês radicado na Inglaterra, todo viajante realiza o milagre de estar dentro e fora de um lugar ao mesmo tempo, uma vez que não desenvolve uma relação de pertencimento com o local no qual viaja. O que prendia Sidónio à Vila Cacimba era o amor por Deolinda que, afinal, há muito havia deixado o mundo dos vivos. Sabedor dessa verdade, Sidónio não tem motivos para ficar. Sua viagem chegou ao fim e ele está prestes a iniciar nova viagem para, deixando o lugar que não chegou verdadeiramente a conhecer, retornar a seu lar, no espaço europeu conhecido: a cidade de Lisboa.
O romance termina exatamente onde começou: rementendo à relativização. O que se vê muitas vezes não é exatamente o que se vê. É preciso olhar de novo, as imagens se confundem e uma coisa pode na verdade revelar-se outra. Ao afastar-se da Vila e olhar para trás, Sidónio ainda vê a névoa que cobre o vilarejo e as imagens de sua cidade natal se confundem com as imagens enevoadas da Vila. Nessa viagem, o estranho se torna familiar e Sidónio tem a impressão de que nunca partiu de Lisboa.
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Claudia Maria de Souza Amorim
Doutora em Literatura Comparada/UERJ, 2006
Professora Adjunta de Literatura Portuguesa /UERJ
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras/UERJ
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero12/claudia.html
Número 12 (1º semestre de 2010) - ISSN 1981-870X