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Sob o magistério de eros: um olhar sobre três sagas rosiana
Roberto Costa Assumpção
Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro/SME
bigrobby@globo.com
Sob o magistério do amor: um olhar sobre três sagas rosianas
O artigo parte do livro Sagarana de João Guimarães Rosa dando destaque para três sagas e ao conceito de amor sob a ótica da antiga Grécia - Eros - visando demonstrar que a visão rosiana do amor está conciliada com o ideal de realização do amor na Grécia antiga.
Palavras-chave: Saga. Eros. Sagarana. Grécia.
Under the sign of Eros: a reading experience of three sagas by João Guimarães Rosa.
The article is based on the book Sagarana by João Guimarães Rosa, highlighting three sagas and the concept of love, understood from the perspective of ancient Greece - Eros – with a view to reconciling Rosa´s concept of love in the sagas with the concept of love in ancient Greece.
Keywords: Saga. Eros. Sagarana. Greece.
O ato de escrever sobre qualquer parte da obra de João Guimarães Rosa é tarefa hercúlea por sua própria natureza. Este brasileiro de extremo talento não escreve para roteiros de Hollywood, como o próprio comenta com seu tradutor Bizzari. Sua literatura é para mergulhos. Seu trabalho, em raros momentos, aceita nados superficiais, sua escrita pede mergulhos. Não sem motivos, o meio acadêmico canonizou, com grande justiça, todo o trabalho literário deste brasileiro que facilmente pode ser colocado entre os maiores escritores do século XX, tanto a nível nacional como a nível internacional.
O livro Corpo de baile, cuja primeira edição é de 1956, traz estórias fabulosas. A divisão feita pelo próprio autor a partir da 3ª edição em três volumes autônomos – Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do sertão – quebrou certas questões hermenêuticas, pois a citada parábase (realizadora da teoria do evento narrado) na formação original do livro se rompe quando dividimos o livro em três partes. No entanto, os três livros independentes ainda guardam seus encantamentos e ainda se dispõem aos que desejam mergulhar no abismo do conhecimento humano, da literatura, do sertão, da mitologia, da religião ou do amor.
O universo de estudos literários a cerca da obra Corpo de baile é vastíssimo. Por se tratar de uma obra prima, sua pluralidade facilita inclusive
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as interpretações mais equivocadas possíveis, mormente a escrita que se conduz por inferências extra-literárias, mergulhando por disciplinas outras. A obra é viva, pulsante, contagiante e generosa. O diplomata do sertão criou um verdadeiro mundo e parte deste mundo nos interessa particularmente e queremos observá-lo. Trata-se do Amor revelado pelas mulheres, auxiliadas às vezes por um homem em casos especiais.
Tema difuso, complexo, confuso, amplo, explorado e eterno, o Amor em certas obras de Rosa é muito bem definido e claro. O Amor pulsante, aquele que traz prazer, alegria e sensação de plenitude, aparece muito bem desenhado em algumas histórias de Corpo de baile. O Eros cosmogônico dos antigos gregos e a mulher extraordinária (força divinal) são os pilares mestres que o narrador rosiano nos revela e, subliminarmente, convida todos os leitores a refletirem.
Respeitando a estrutura arquitetônica na composição das sagas sertanejas e a função da parábase que as divide, optamos por escolher três estórias reveladoras do Amor, estórias que compartilham conceitos e valores, mas que guardam suas diferenças também. Diante da obra mito-poética de Guimarães Rosa e da gama de possibilidades que Corpo de baile nos oferece, faz-se necessário um recorte de cunho epistemológico e didático para abordar o tema do Amor.
O olhar sobre o Amor e algumas mulheres especiais de Corpo de baile recairá – segundo a nomenclatura de Rosa - sobre o romance A estória de Lélio de Lina contido no livro No Urubuquaquá no Pinhém e sobre os poemas Dão-Lalalão (O devente) e Uma estória de amor apresentados no livro Noites do Sertão e Manuelzão e Miguilim, respectivamente, tendo como referência os livros da 9ª edição realizada pela editora Nova Fronteira em 2001.
A busca pelo Amor que é filtrado, em geral, por mulheres especiais ou pela própria natureza avançará pelo texto poético de Corpo de baile com a maior atenção possível para não cair na tradição das críticas alegóricas. Aliás, tradição que busca significado muito mais fora da obra do que nela mesma, tradição que surge quando os gregos legitimam a Filosofia e, que permanece ainda hoje, seguindo conceitos platônicos de arte mimética. Essa é a corrente
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de muitos intelectuais que respeitamos, no entanto, procuraremos desenvolver uma leitura que não aponte exclusivamente para a destruição do contexto para criação de um novo sentido.
As disciplinas como a história, a filosofia, a geografia, a mitologia e a religião podem aparecer ao longo do texto. Sabe-se que Rosa era um intelectual portentoso e é inegável a influência da sua formação clássica em seus escritos, porém, a análise deste segmento da obra de Guimarães Rosa utilizará outras disciplinas, mormente a mitologia grega e hebraica, como suporte para o comentário crítico e não para uma investigação histórico-mitológica propriamente dita. O interesse maior recairá sobre o texto rosiano e sua evidente interação entre homem, mulher e natureza; sobre a mundividência de Rosa inspirado em valores da Grécia antiga; sobre o narrador habilidoso que se revela onipotente ou se omite refletindo o desconhecimento da personagem, dentre outros aspectos de relevância literária.
O olhar sobre o Amor, mulheres especiais e sobre a natureza é também uma busca pelo discurso que constrói seu sentido e assim cativa os leitores de Rosa.
A estória de Lélio e Lina
O vaqueiro Lélio do Higino, solteiro – “meu pai era o vaqueiro Higino de Sás, em Deus falecido” (ROSA, 2001 p.177) – em sua migração pelos Gerais esbarra na fazenda do Seo Senclér em busca de trabalho. Bem recebido pelo futuro patrão e por seus colegas de ofício, Lélio é apresentado como um vaqueiro de boa cepa, experiente e portador dos apetrechos necessários a um bom vaqueiro. Seo Senclér gosta da apresentação, como o narrador nos informa: “Seo Senclér demorava. Gostava do em-ser do vaqueirinho, gostava das suas respostas”( ROSA, 2001 p. 177).
Os companheiros de labuta vão sendo apresentados sucessivamente, cada um com seus predicativos e manias. Lélio vai se aclimatando com novos companheiros e a primeira referência a mulheres vai aparecer quando os vaqueiros estão já reunidos em seu “quarto-dos-vaqueiros” e um dos homens – Pernambo – fala que qualquer mulher serviria naquele momento: “Era em
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mulher que Lélio estava pensando” (ROSA, 2001 p. 183). Este é o gancho que o narrador precisava para que na página seguinte introduza quem é a mulher a ocupar os pensamentos de Lélio:
Na Mocinha que tinha viajado para Paracatu. Ela era toda pequenina, brancaflor, desajeitadinha, garbosinha, escorregosa de se ver. Quase parecia uma menina”.(...) “Porque, desde o momento, nessas ocasiões, ele ouviu de si e se afirmou que, sobre bonita, por algum destino de encanto ela para ele havia de ser sempre linda no mundo, um confim, uma saudade sem razão. (ROSA, 2001,p. 184)
Esta moça de 25 anos – “Olhem que eu já tenho um quarto de século”(p. 184) que provoca enorme encantamento em Lélio é mais uma fantasia romântica de um amor idealizado. Não há reciprocidade sentimental entre a moça e Lélio (“Sabia que ela não lhe dava atenção maior, nele nem reparava” p.184). O que há de verdade é um abismo social entre os dois. Aliás, para alguns amigos de Lélio – Assis Tropeiro e Lino Goduino- a moça não era tão bonita, era moça espevitada e malcriadinha (p.184). Mas, para Lélio, o anagrama romântico amar o amor, amaro amor se encaixa perfeitamente. Lélio diz que a moça é uma lembrança sem paragens. Moçoila que sequer o beijou.
É a primeira visão de amor que a narrativa nos apresenta e esta versão do que Lélio sente por alguém que o despreza faz uma conexão com a história que o narrador relata a cerca de Lélio. Nosso vaqueiro sensível, “de coração lavradio”, já tivera uma atitude um pouco atípica. Ele pediu demissão do cargo de capataz do seo Dom Borel por conta de um “quase sentimento” por uma dona casada, Maria Felícia. Sentimento por mulher casada que ele não tocara, assim como acontece com a “Mocinha de Paracatu”. Deduz-se que o vaqueiro recém chegado no Pinhém é um aluno em potencial, aluno pronto para ser conduzido no magistério do Amor.
O narrador através da refletorização, ou através da fala direta dos personagens por diálogos intercalados, expõe uma longa conversa entre os vaqueiros, inclusive Lélio, a cerca das moças da região, das esposas e seus maridos, das noivas, dos perigos do adultério e das vantagens de casar com uma viúva rica. Os novos amigos de Lélio dão seus palpites e aconselham o
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jovem vaqueiro sobre quem ele deveria cortejar. Após grande atenção dispensada aos colegas, sabemos o que Lélio pensou e falou:
“Mas Lélio olhava os adiantes, e tinha alguma coisa no desejo. Perguntou, por fim: - “E mulher, mulher no simples, para a precisão da gente ? Será que por aqui não tem ? ... Delmiro riu e fez um gesto de poder-deixar; disse: - “Tem as tias”. Depois de depois-d`amanhã é dia-de-domingo, agente vai lá. Você está em estado de esperar ?”Lélio enfifou. – “Perguntei só por perguntar ...” – disse. (ROSA, 2001 p. 194)
O jovem tímido escuta falar pela primeira vez nas “Tias”. Mulheres que alguns homens encontravam aos domingos para satisfazer seus desejos carnais. E como Guimarães Rosa não quer saber muito da realidade empírica, quer sustar o peso da labuta diária do homem, essas tias não são prostitutas. Lélio é duramente criticado por um companheiro da fazenda, quando usa nome indevido para referir-se a estas mulheres especiais: “Vocês já estão p`r` as raparigas ? – afoito Lélio perguntou. O Pernambo segurou-lhe o braço: - “Menino, não fala em raparigagem não, que com seu direito elas desse nome não gostam...”(ROSA, 2001 p. 222). Eram mulheres de fato muito especiais. Não eram meretrizes. O narrador nos ensina alguma coisa sobre essa atividade um tanto exótica: “As “tias`, a Conceição e a Tomázia, se consentiam à farta, por prazer de artes”( ROSA, 2001 p. 224). Mulheres independentes, autônomas, agregadas às terras de Seo Senclér que não aceitavam a alcunha de raparigas e não cobravam por “serviços” prestados aos vaqueiros e “não recebiam dinheiro nenhum – só lá de vez em quando, quem queria dar dava um presentinho”. Os encontros dominicais se confundem com verdadeiras celebrações religiosas primitivas. As “tias” eram reflexo de sacerdotisas da antiguidade que usavam a força erótica de conjunção como símbolo da hierogamia do ser com a divindade. A festa domingueira era para todos, raros eram os que podiam visitá-las durante a semana, apenas os escolhidos. As “tias” trabalhavam lavando “a roupa toda da fazenda”, plantavam roça de mandioca e tinham pequenas criações. “Conceição era preta” e Tomázia “clara era”. O vaqueiro Lélio, em visita a esta casa de favores atípica é duplamente atendido. As duas “tias” estavam curiosas para conhecê-lo e Lélio entra para o
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quarto, primeiramente com Conceição, e algum tempo depois conhece Tomázia e com ela também vai se deitar.
Tomázia, aquela que “não perdia aquele vizavi melindroso de visagem” é uma professora assumida, um degrau para a caminhada de Lélio. O próprio texto nos revela:
“Tinha nojo não, dizia que gostava era de ensinar coisas. Já tinha sido de zona, de bordel, na cidade – lá se chamava era Lindelena... – “E quem trouxe você pra cá ? – Lélio indagou. – “Quem ? adivinha, só. Não acerta ? Pois foi Seo Senclér mesmo, Bem. Ele já teve rabicho, por mim ! Tenho muito lombo ...” (ROSA, 2001 p. 228)
A trajetória do jovem vaqueiro no seu aprendizado de amor começa a ganhar vulto quando ele se encontra acidentalmente com Lina em uma estrada. Sua primeira visão é Dona Rosalina ´´vestida de claro, ali perto, de costas para ele, uma moça. Uma mocinha”. Toda harmonizada com o que há de singelo e de paz no reino da natureza. Contudo, apresentando uma perspectiva dual, algumas linhas adiante temos a segunda visão de Lina pelos olhos do mesmo Lélio: “Mas: era uma velhinha! Uma velha...Uma senhora” (ROSA, 2001 p. 233). Esta mulher “muito branca”, com “voz diferente de mil”, “era diversa de todas as outras pessoas”. Lina causa impacto profundo em Lélio e apesar dos indícios acerca da idade de Dona Rosalina, como mulher idosa ou velhinha de cabelos alvos, o jovem começa a enxergá-la como um todo perfeito e harmônico. Ela segura as mãos de Lélio, conversa de um jeito diferente de tudo que o mocinho conhecera. Lina “mandava sem querer” e transmitia a sensação de que Lélio há conhecia há anos. Pura magia. Lélio chega a dizer: “A senhora é uma santa”. Paradoxo convertido na expressão “velhinha como-uma-flor”.
Lina é uma referência às mulheres divinizadas da antiguidade. Ela é quebra da tradição dicotômica do pensamento eurocêntrico pois consegue agregar valores de inspiração juvenil com a sabedoria dos idosos. Lembra Ronaldes de Melo e Souza na sua obra “A saga rosiana do sertão” que Dona Rosalina nos remete à idéia das ninfas, membros de uma grande categoria de
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deusa-espíritos naturais femininos. Lina se mostra como personificação da graça criativa e fecundadora da natureza. E a narrativa corrobora sutilmente para que percebamos a magia apresentada por esta mulher de sábias palavras e que transmite uma sensação de sossego e bem estar.
Os predicativos de Lina vão aparecendo aos poucos. Sendo que o principal, o que se conecta com a idéia mítica da natureza a renovar-se constantemente, aparece nas palavras de Lélio: “Era bom, ficar escutando o que ela falava, e que mudava sempre”. A sabedoria da “velhinha da estrada” perpassa desde a análise psicológica dos amigos de Lélio, tiradas humorísticas, reconhecimento das ervas boas para sarar, vivências domésticas e vai até o reconhecimento do tempo que passou: “estou na desflor”. E o tempo é seu obstáculo diante de Lélio.
Agora é que você vem vindo, e eu já vou-m´embora. A gente contraverte. Direito e avesso...Ou fui eu que nasci de mais cedo, ou você nasceu tarde demais. Deus pune só por meio de pesadelo. Quem sabe foi mesmo por um castigo ? ...(ROSA, 2001 p. 238)
Mas o que seria um entrave, se dissolve. Após esta primeira referência ao casal, os encontros são constantes e o magistério continua sob a supervisão de Dona Rosalina. O vaqueiro jovem ainda não está pronto. Lina o alerta sobre o perigo do amor fantasmagoria, sobre a “saudade sem razão” que ainda o ronda, sobre a bobagem de gostar de uma moça muito jovem que não tem o menor interesse por ele e da ilusão, pois “mulher que não é fêmea nos fogos do corpo, essa é que não floresce de alma nos olhos, e é seca no coração” (ROSA, 2001 p.250). O conselho da sábia mulher é para Lélio “ir se esquecendo dela (da Mocinha de Paracatu) aos poucos”. Condena veementemente o amor platônico, o amor sofrimento, enfim, critica severamente o amor idealizado e diz que a Mocinha de Paracatu “nunca vai saber o que a vida é”.
É também verdade que a velhinha, durante seu magistério, declara com todas as letras que gosta de Lélio. Porém, o encantamento que se apodera de Lélio não vem através do aspecto físico, mas sim da fala, da magia, que “se
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manifesta na força mitopoética de animar os entes que nomeia” (Melo e Souza, 2008, p.156). Lélio percebe que após a fala de Rosalina confere um diferencial sobre o objeto, a coisa ou o ser a que ela se refere. Tudo se converte em novo matiz após tradução da fala poética de Lina.
O vaqueiro prossegue em seu aprendizado amoroso terá ainda certos degraus a vencer. Deve sentir o sentimento de ser preterido; assim vai se sentir no episódio em que Manuela escolhe outro e não ele. Procura o amor carnal nos braços da bela Jini, esposa cujo marido é seu conhecido e mulher fogosa e exuberante. Lélio não se identifica plenamente, aprende que o amor apenas embasado pelo corpo não traz futuro tranqüilo e nem apazigua a alma. E finalmente Lélio visualiza seu próprio dilema na voz da alteridade e consegue se curar da dor de amor pela Mocinha de Paracatu.
Durante o episódio em que Lélio pensa que a moça Mariinha gosta dele, o vaqueiro pensa que é objeto do sentimento explícito da empregada da fazenda. Porém, qual não é a sua surpresa. Mariinha explica o mal entendido e revela que o fruto de sua paixão é o patrão, Seo Senclér, homem casado com Dona Rute. Lélio prefigura o drama, pelas diferenças sociais existentes, comenta com Mariinha o absurdo e escuta uma fala muito parecida com a sua própria justificativa em gostar da Mocinha de Paracatu. Quando vai conversar com sua mestra Rosalina, esta conclui o nome da pessoa que Mariinha gosta e lhe antecipa o final trágico e a similitude com a relação amorfa e descabida entre Lélio e a Mocinha de Paracatu.
Como uma profecia, o final trágico entre Mariinha e seu amor não correspondido se realiza sob os olhos melancólicos de Lélio. Mariinha declara sua paixão pelo patrão, na hora em que ele se despede dos empregados, na frente de todos. Cena dramática, pungente, mas uma lição primorosa para o jovem vaqueiro que finalmente consegue visualizar o que poderia ter acontecido com ele mesmo, caso alguma situação propícia o fizesse declarar um sentimento de amor pela Mocinha de Paracatu. Lélio enxerga o madrastio de um sentimento vivo apenas no mundo das idéias.
A saga rosiana que apresenta Lélio e Lina configurados como aluno e mestra assemelha-se ao conto maravilhoso ou às histórias míticas, por todo
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encaminhamento de aprendizagem amorosa e até por uma festa iniciativa programada pela mulher das “estórias tão verdadeiras que fugiam do retrato do viver comum”.
Lina programa uma festa, e, no desenrolar da mesma, com a presença de todos, Lélio deslumbra-se com a presença fabulosa de sua confidente, Lina. A música dos amigos, o canto dos convivas e os pares que se formam para dançar suscitam a verdadeira integração para o entendimento do amor. A mulher que parece ter “vida ensinada” e procura realizar a conversão existencial do seu discípulo, que ainda erra em busca do amor, dança com seu discípulo, e este fica pasmo ao percebê-la como uma criança a bailar. O sorriso, os cabelos, a vivacidade de Dona Rosalina, enfim, tudo se transforma em beleza, como num encantamento maravilhoso.
A mestra, amiga e confidente deseja que seu “aluno”, Lélio, viva plenamente a vida e o amor. Não o recrimina por buscar as “tias’ e não se mostra egoísta, ao contrário, procura escolher uma boa mulher para o jovem vaqueiro, embora lamente que a idade entre eles seja um capricho do destino.
A iniciação de Lélio nos mistérios do amor só termina quando este compreende que o amor deve ser visto como um todo, corpo e espírito. Termina quando ele percebe que o ser amado deve representar uma parte deste grande Eros cosmogônico, que prefigura toda a natureza pulsante ao seu derredor. Lina é a resposta para muitas de suas perguntas, por isso, o vaqueiro sugere uma fuga a dois.
A união amorosa de Lélio e Lina não apresenta certos traços sexuais comuns em outras uniões amorosas. O casal aparenta algo de sagrado e mítico. Não sem motivo, por duas vezes durante a narrativa aparece a palavra mãe ao se referir à Dona Rosalina. A primeira vez em diálogo e na tomada de decisão, viajaram. A segunda vez, durante a estrada, porém, Dona Rosalina dá resposta indicadora da relação que virá: “Lélio governava os horizontes. – “...Mãe Lina...” “- Lina?!” – ela respondeu, toda ela sorria. (ROSA, 2001 p.311). É o fechamento da estória e a conversão plena de Lélio aos mistérios do amor.
Dão-Lalalão (o devente)
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Conforme o leitor poderá verificar, esta estória possui fortes traços com a Estória de Lélio e Lina. São associadas intimamente como variações de um mesmo Eros cosmogônico filtrado pela determinada presença do eterno feminino dando suporte ao masculino. Mas não se trata de um enaltecimento das mulheres, matriarcalismo, puro e simples sistema de hierarquização e coerção. Guimarães Rosa é partidário da mundividência feminina do universo, coisa completamente diversa, como poderemos ver.
A estória que tem como título o mimetismo do badalar de um sino é formada por dois protagonistas bem definidos: Soropita, o marido, e Doralda, a esposa. O problema é que configura-se um drama psíquico de um marido conturbado, porque sua mulher havia sido uma prostituta na cidade de Montes Claros. Aí tem início todo o engendrar de tormenta deste marido, em conflito consigo mesmo e com todo seu universo circundante.
Claro que existem no decorrer da estória uma série de técnicas narrativas utilizadas por Rosa como o correlato objetivo (aproximando Rosa a Dante Alighieri) e o monodiálogo narrado (Soropita discutindo consigo mesmo). Porém, a busca pelo foco está centrado no aprendizado amoroso, do qual Doralda é a professora e Soropita seu aluno. Da mesma forma que Lina conduziu Lélio, agora, Doralda será condutora de seu marido nos mistérios do amor. Não do mesmo jeito. Doralda tem seus instrumentos, sua fala e uma postura completamente diversa de Dona Rosalina. E Soropita é um homem maduro, com seu código de honra bem definido, homem corajoso, homem de valentia conhecida e muitas vezes temido pelos seus gestos do passado. Homem completamente diverso do vaqueiro jovem, tímido, de “coração lavradio e pastoso” que se apresentava em busca de trabalho na fazenda de Seo Senclér. Até a posição social das personagens é bastante diferente. Soropita possui negócios, fazenda e empregados ao passo que Lélio é apenas um vaqueiro assalariado. Dona Lina vive em sua humilde casa, plantinhas curativas, roça pequena com o básico; enquanto Doralda é a sinhá da fazenda de seu marido e dispõe de uma série de recursos comuns aos pequenos comerciantes e proprietários de terra.
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Dona Doralda era um doce. Assim o narrador e a própria Doralda em suas falas nos fazem pensar. “Dizia tudo alegre – aquela voz livre, firme, clara...” Além da alegria, havia a sinceridade pois “falava sincera, não formava dúvida”, assim, numa conversa era franca por demais:
“Doralda não tinha os manejos de acanhamento das mulheres de daqui, que toda hora estão ocultando a cara para um lado ou espiando no chão. Sertaneja do Norte, encarava as pessoas, falava rasgado, já tinindo deperto da Bahia; nunca dizia “não” com um muxoxo.”( ROSA, 2001 p. 31)
Essas características somadas à sua beleza, sua administração do lar, seus cheiros, seu bom humor e sua maestria nas artes do amor, sem dúvida, Soropita não poderia deixar de apaixonar-se profundamente por ela, ainda mais quando temos valiosa informação sobre o magistério de Soropita:
Bem, eu cuspisse dentro da sopa, você tinha escrúpulo de tomar ? Você gosta de mim de todo jeito? Asco nenhum. O cuspe dela, no beijar, tinha pepego, regosto bom, meio salobro, cheiro de focinho de bezerro, de horta, cheiro como cresce redonda a erva-cidreira. Antes nem depois, Soropita nunca tinha beijado em boca de outra mulher nenhuma. (ROSA, 2001 p.33)
Um homem formado em regime espartano, combates, duelos, cavaleiro capaz de matar para lavar a honra é arrebatado por esta mulher vigorosa e vive uma vida conjugal agradável, sua casa era “uma alegria sem tormentos”, porque ao lado de Doralda tudo parece ficar ajeitado e bem conduzido. Este cavaleiro provavelmente cansado de ouvir histórias de amor idealizado conhece Doralda, que não se envergonha da antiga profissão, “porque o sexo nada tem de pecaminoso”. A virgindade de Soropita o coloca no rol dos cavaleiros medievais cujo código moral era levado a ferro e a fogo. Esse mesmo código é que impede a sua libertação para viver o amor plenamente. Deixa-o sempre com a sensação de que a partir do reconhecimento de Doralda como meretriz, a honra terá que ser lavada em sangue.
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Doralda é permanentemente associada a efeitos da natureza. São seus cheiros, sua boca, seus dentes, sua alegria, enfim, Dona Dadã enchia a casa e o coração de Soropita. Harmonia perfeita no lar, em todos os sentidos. Falta apenas o marido aprender a se tornar inteiriço em sua personalidade e não mais um homem dividido entre Céu, Purgatório e Inferno a cada momento em que alguma sombra oferece perigo ao seu valioso segredo.
Como agente do magistério amoroso de Soropita, esta mulher, esta rainha, esta verdadeira deusa usará seus conhecimentos do amor para que seu marido consiga transmutar e viver mais feliz e seguro ao seu lado. Quebrando códigos burgueses, românticos, cristãos, Doralda assemelha-se às primitivas deusas da antiguidade quando explica que o amor não pode abrir mão do corpo. Ao contrário, o amor deve ser visto como sacralização do corpo e a transcendência pode ser regida no plano sensível e não apenas no universo supra-sensível. É muito provável que Guimarães Rosa tenha permitido aqui a influência da antiga deusa Lilith dos Hebreus.
Conta a mitologia que Lilith (alento, em língua suméria) foi a primeira mulher de Adão, como ele criada do barro e insuflada com sopro divino. Nada de superioridade do homem sobre a mulher, os dois vieram do mesmo ponto. As brigas surgiriam por conta da insatisfação de Lilith em permanecer na mesma posição sexual. A esposa de Adão alegando igualdade, exigiu que o marido modificasse sua postura a fim de que ela também desfrutasse do prazer do amor. Adão se negou, justificando que o homem deveria deitar-se sobre as mulheres. Lilith enfurecida pela negativa de Adão consuma o primeiro divórcio da história. De nada adiantaram seus argumentos sobre a igualdade; ela parte. Mensageiros seguiram em sua busca, para fazê-la regressar, obedecer aos caprichos de Adão e evitar a cólera do Criador, porém, Lilith rebaixada em sua dignidade não retorna para seu marido, apesar das ameaças dos anjos mensageiros sobre possível castigo supremo sobre ela e seus filhos. Assim sendo, o rebaixamento moral e a transformação em demônio, feiticeira, anjo negro, prisioneira do fundo dos oceanos, mãe da ruína, instigadora do mal e da desordem é um caminho sem volta que seu nome carrega ad infinitum. Lilith não representa apenas a mulher que abandona o lar ou que perde o marido. Representa também a mulher que foi suplantada por outra que lhe é inferior e
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submissa, por aquela que foi retirada da costela do marido, sua raiz primordial. Eva é a esposa que renuncia seu próprio erotismo em troca de uma segurança conjugal.
Doralda é da linhagem da mulher cheia de personalidade como a primeira Eva, Lilith. Apesar de Soropita ser um cavaleiro temido por seus pares e por suas histórias de valentia, Doralda nada teme: “Doralda era corajosa. Podia ver sangue, sem deperder as cores. Soropita não comia galinha, se visse matar”.(ROSA, 2001 p.36). E sua bravura é posta diante do marido: “Eu precisar, tu pode dar em mim”. Sua coragem é tanta que nas conversas com Soropita, ela é capaz de falar de tudo, desde as meninas que se envolviam com “pozinho alvo” até sua fama de “garanhã” na casa onde trabalhava como meretriz. Isto apavora Soropita.
O guerreiro valente embebido no código de honra dos cavaleiros medievais sente enorme dificuldade para compreender que o corpo de sua mulher será o caminho da transmutação. O amor é encarnado em Doralda. O erotismo corpóreo se esparrama pela natureza, mas Soropita reluta em perceber que Sucena –seu nome de guerra - não pertence mais a outros homens e que já abandonou a vida de bordel. A vida de Doralda é dedicada a Soropita desde o dia em ela resolveu largar tudo em Montes Claros e viajar com seu querido homem. O passado que atormenta Soropita é completamente desnudado pela conversa aberta com sua mulher, por uma nova visão.
A responsável pela iniciação amorosa de Soropita demonstra em suas conversas que o corpo é algo digno de veneração e ensina a sacralidade do amor, cortando de forma contundente conceitos de amor idealizado e amor extra-físico. Doralda chega a comentar de forma explícita a sua fama de garanhã. Ela não se defende e tenta apagar o passado de mulher fogosa, ao contrário, reafirma o apelido da casa de tolerância e aponta virtudes e não pecados:
- Mas, depois, no estado daquele dia, tu teve os outros !
- Mas, Bem, aqueles logo vieram... Aí eu era muito freguesada, Bem, era uma das que eles apreciavam mais ... Ah, uma pode errar de boiada, por ir-se atrás de boiadeiro ...
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- Por isso que te chamavam de Dadã e de Garanhã ?
- Era. Mas mais me chamavam de Sucena. Também, tu não havia de querer que tua mulherzinha fosse uma bisca desdeixada, sem valor nenhum ... (ROSA, 2001 p. 101)
A conversa entre o casal prossegue. Soropita busca detalhes e sua mestra Doralda não falha em nenhuma resposta. Sempre com a verdade libertadora na ponta da língua. Até nas perguntas mais doloridas sobre a atividade na casa de favores: “ – Mas você, você gostava ? ” “ – Gostava, uai. Não gostasse, não estava lá ...”. A sinceridade das respostas vai levando o marido a perguntar sempre um outra coisa, chegando a ponto de recusar as carícias e o corpo cheiroso de Doralda.
O fantasma dos outros homens que passaram por sua esposa atormentam o seu juízo de marido apaixonado. O valente Soropita quer saber se a esposa lembra de alguns nomes, fica procurando algum indício de homem conhecido para fazer valer seu código de honra.
Um dos nomes que o preocupa é o de seu amigo Dalberto. O mesmo conhece a cidade de Montes Claros e é convidado para uma ceia e um pernoite em casa de Soropita. Depois de longa conversa, o paraíso: Dalberto não conhecia Doralda. Mas a angústia não cessou totalmente. Apesar do magistério erótico iniciado por sua esposa, Soropita vai transmutando aos poucos. Não assimila a mensagem amorosa em bloco.
Prova de que o amor de guerreiro valente ainda fica em construção é a idéia fixa de Soropita a cerca de um homem negro, de nome Sabarás. A memória carrega a sombra de um negro portentoso que babujara Doralda, e outras meninas, nos tempos de bordel. Doralda reconhece o nome e diz que atendia pretos também pois eram filhos de Deus. Soropita se admira: “Mas tu esteve com pretos ? Teve essa coragem ? ... Como é possível ? Como foi possível ?Tu é a melhor, a mais merecida de todas ...”(ROSA, 2001 p. 103). Não foi digerido o episódio. Soropita acaba descontando sua raiva sobre Iládio, vaqueiro negro, humilde que se vê em desespero diante da arma do “patrão Surrupita”. Acaba expulsando o tal negro da região.
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Assim sendo, posiciona-se ao final a mestra no amor e seu aluno de forma ainda inacabada. Ela, uma deusa do amor, livre, solta, harmonizada com a natureza e com seu corpo. Soropita, um aprendiz que desenvolve-se pouco a pouco, sem a coragem de sua esposa e arraigado pelo código de honra dos cavaleiros, incomodado pelos fantasmas dos antigos clientes de sua mulher.
Uma estória de amor
Esta saga parabática demonstra sob vários aspectos a fulgurante literatura rosiana. Há tantos pontos dignos de análise que uma simples mirada não faz do título um livre passe. E nenhuma curta sinopse pode dar conta da complexidade narrativa de Uma estória de amor. Porém, de forma coerente com aspectos estudados no universo do erotismo, em sua versão cosmogônica, buscaremos compreender como se configura o amor nesse texto rosiano e quem seriam os protagonistas dessa caminhada de aprendizagem amorosa.
Manuelzão é “administrador, quase sócio, meio capataz de vaqueiros” da fazenda de Federico Freyre e, ao sentir que a vida pode se esvair do seu corpo já cansado da lida, resolve fazer uma festa e inaugurar uma capelinha numa localidade de nome Samarra. Seu desejo de permanência aparece refletido quando busca filho Adelço com mulher, sete filhos e quando se refere à santinha que habitaria a capelinha:
“Com tanto sol, e conservava vestido o estreito jaleco, cor de onça parda. Se esquecia. “Manuel Jesus Rodrigues” – MANUELZÃO J. ROÍZ: - gostaria pudesse ter escrito também debaixo do título da Santa, naquelas bonitas letras azuis, com resto da tinta que, não por pequeno preço, da Pirapora mandara vir.” (ROSA, 2001 p. 154)
A voz marcante de Manuelzão e sua autoridade e poder de mando são inquestionáveis. “Ali na Samarra ele era o chefe”. No entanto, este homem que “valia como único dono visível” daquelas terras cria novas necessidades. Desejos não satisfeitos. Amores não vividos. Vida sem muito sentido. Por
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isso cria nova família ao resgatar um filho que vira no máximo umas três vezes e prepara um enorme congraçamento de pessoas de toda parte. “Por si, ele nunca dera uma festa”. Por que razão este homem resolve fazer uma capelinha e convidar gente de toda parte para uma grande festa ? “A idéia da capela e da festa longo longe andava, de fé em fé.” Somos levados a crer que uma doença no coração seja um dos fatores que puxam Manuelzão para outras direções. Mas não se pode descartar a vontade pessoal de vivenciar a própria festa. Evento que trás em si a idéia de movimento, símbolo da vida. Nada mais coerente para aquele que precisa sentir o pulsar da vida.
Durante os preparativos para a festa surge a figura do velho Camilo, figura conhecida e de certa estima. “O velho Camilo era apenas uma espécie doméstica de mendigo, recolhido, inválido, que ali viera ter e fora adotado por-bem fazer. “Camilo José dos Santos ...E informou a idade de oitenta anos para fora”.(ROSA, 2001 p.166/167). Este agregado terá função importantíssima, pois ele é encarregado da parte musical, dos improvisos, do repente que tanto agrada Manuelzão e os convidados.
Camilo é tímido, arredio, meio lerdo das idéias, mas, se metamorfoseia ao contar a história do Boi bonito. A transfiguração em homem altivo, de voz agradável, prende a atenção de todos e leva Manuelzão a se desprender dos valores pequeno-burgueses, das coisas de utilidade lucrativa, a se soltar do universo regido pelo cálculo. Como Manuelzão estabelece uma forte associação entre bois e homens, a história de Camilo se torna um atrativo profundamente sedutor e fácil de compreender.
O caboclo recitador do Romanço do Boi bonito, encarna o poder da estória, mostra o poder efetivo com a sua transposição mitopoética do drama religioso envolvendo um menino, um boi e um riachinho (Melo e Souza, 2008, 151). Por todo universo que compõe narrativa do Boi, podemos concluir que se trata de uma iniciação nos mistérios da natureza que sempre se renova. A estória é tão poderosa que faz o velho Camilo se transfigurar e não mais ser visto como um mendigo, agregado, meio alienado, que as pessoas conheciam da fazenda administrada por Manuelzão. No entanto, Camilo não está sozinho a conduzir os mistérios da renovação.
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Surge antes da festa uma personagem de suma importância. “As estórias contadas, na cozinha, antes de se ir dormir, por uma mulher. Essa, que morava desperdida, por aí, ora numa ora noutra chapada – o nome dela era a Joana Xaviel”(ROSA, 2001,p.182) Sabe-se através do narrador que ela é uma mulher de meia idade e que não é muito bonita, contudo, quando começa a contar suas estórias sofre também uma metamorfose: “Joana Xaviel virava outra”. Ouvir as belas estórias que aquela mulher tem para contar é o prelúdio da festa
“Joana Xaviel virava outra. No clarão da lamparina, tinha hora em que ela estava vestida de ricos trajes, a cara demudava, desatava os traços, antecipava as belezas, ficava semblante. Homem se distraía, airado, do abarcável do vulto – dela aquela: que era uma capioa barranqueira, grossa roxa, demão umressalto de papo no pescoço, mulher praceada nos quarenta, às todas unhas, sem trato.”(ROSA, 2001 p. 183)
Dona Joana conta estórias de aprendizado, estórias assemelhadas aos contos maravilhosos, visceralmente encantadoras. A prova deste encantamento é que Joana ao contar (contadora) é vista como mulher linda e quando não está contando, quando é apenas uma mulher, torna-se uma criatura abjeta, repugnante. Apesar da estória de Dom Varão ser igualmente sedutora, a estória da Destemida é que mexe bastante com Manuelzão, haja vista que ele segue fielmente o discurso lógico e de acordo com a estória de Dona Xaviel, a protagonista sai vencedora pelas maldades que realiza.
Desse modo, antes mesmo de chegar o momento da festa, podemos verificar que existe uma grande correspondência entre os dois contadores de estórias. E com atenção repara-se no sentimento que já existia:
Velho Camilo agradecia, estava a cômodo, feito os pobres cães cachorros, que se deitam, satisfeitos, perto das pessoas. Não adiantava encalcar, com ele porfiar. Mesmo permanecia ali porque gostava de Joana Xaviel. Gostava, de amor ? A Leonísia tinha falado bondosa, mas a sério, seu respeito. Devia de ser via disso que a Joana Xaviel não apôs palavra. (ROSA, 2001 p. 185)
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O entusiasmo por Joana Xaviel do homem que acaba ganhando prestígioe é chamado de Seo Velho Camilo vem pelos cantos. Leonísia e os outros da casa percebem que Camilo não expõe claramente seu sentimento, mas fica ao derredor querendo ouvir tudo que Joana conta. Manuelzão não está perto. Escuta todas as estórias desta mulher encantada pelo outro lado da parede. Sem sono, ele presta atenção a tudo e vai se alegrando às escondias ou se revoltando calado. Bastante provável é que ele não tenha ficado na cozinha, onde Joana estava a contar, por conta da sua posição de mando, superior.
O momento apoteótico da estória é a festa com toda a sua significância transcendental. A grande comemoração tem Joana, Camilo, dançarinos e competição instrumental perfazendo uma verdadeira celebração à vida, um transe iniciativo. O ânimo de que tanto precisa Manuelzão vem da palavra cantada, falada e dançada. Seu “mestre” Camilo foi quem mais o orientou.
O velho Camilo ensina com seus versos de sabedoria: “minha cabeça ta doendo, meu corpo doença tem. Quem curar minha cabeça, cura meu corpo também” (ROSA, 2001 p.212). Mesmo sem dinheiro, sem boa saúde, sem família, sem terras e sem mulher, enfim, todo o seu psicodrama, somente com a consciência da condição de ser explorado, simples empregado, cujo mando não representa muito, é que Manuelzão pode criar novo entendimento, transcender, abraçar o amor, o amor à vida e tudo que ela pode oferecer.
Exercitando um papel sacerdotal, os contadores de estórias são responsáveis pela necessária transcendência de Manuelzão. A vida sem sentido ganha novas cores após as lições das estórias extraordinárias contadas por Joana e Camilo. Até a morte ganha novo sentido. Camilo ensina Manuelzão a não temer a morte.
Como se vê, o casal de contadores de estórias tem um papel fundamental. É através deles, ao contar as estórias, que a mensagem transcendente chega até Manuelzão, homem embrutecido e decepcionado com o que a vida lhe ofertou. É o par de sacerdotes ritualísticos a despertar o sentimento de amor à vida, que adormece no peito de Manuelzão. Participam da festa como um ritual em honra da beleza, da sublimação e do amor.
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O amor que os contadores de estórias apresentam é muito mais amplo do que amar um outro ser. Eles ensinam a amar a vida. Ensinam que a vida deve ser amada e vivida com todas as suas potencialidades. Orientam a não tomar a aparência ou o nível social como ordenadores do amor. Estimulam a transcendência como degrau necessário na busca do amor. Amor alegre. Amor festivo. Amor em toda parte. Amor cosmogônico.
Sem a observação de que as sagas obedecem a uma arquitetura na construção e apresentação dos textos, alguns tópicos interessantes podem se perder, conforme foi verificado. Porém, a força criadora que Guimarães Rosa despeja sobre seus escritos, mormente em Corpo de baile, permite que façamos a observação de um tema e seu variado desenvolvimento de acordo com a saga.
O universo erótico no mundo ocidental sofreu grande modificação quando observamos sua trajetória da antiguidade até nossos dias. Não só os gregos, mas também os vedas, sumérios, hebreus e iorubás vivenciaram o erotismo de maneira mais generosa, mais ampla, mais cósmica. Isto foi possível porque houve um tempo em que a visão do homem era respeitadora do eterno feminino e, por extensão, do mundo erótico livre de culpas. A mulher era respeitada por ser um reflexo da grande deusa mãe, a mulher era responsável pela continuidade da vida na Terra e a própria terra era fêmea a reproduzir suas bênçãos para a comunidade. O tempo passou.
A vitória dos valores patriarcalistas não é recente. Há textos antigos, muito anteriores ao período glorioso da cultura grega, como o famoso Código de Hamurabi, onde a mulher já aparece numa posição inferiorizada em relação ao seu marido. Pelo simples fato de sufocarem aquela que seria a sacerdotisa em potencial dos mistérios do amor, não há como exigir que esta relação entre Homem, Mulher e Natureza tenha permanecido em boas condições. A relação se corrompeu de maneira absurda, abalou a vida de milhares de pessoas e ainda faz seus estragos pelo mundo afora em pleno início do século XXI.
Guimarães Rosa procura resgatar, em muitos de seus textos, este brilhante poder do eterno feminino e do Eros cosmogônico. A dicotomia que estabeleceu o corpo como simples prisão da alma não é cultivada de forma
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alguma por Rosa, conforme observamos em Corpo de baile. Rosa opta pela visão de um amor totalmente livre do dualismo psicofísico (mundo inteligível versus mundo sensível) e esta é a questão que orienta as sagas examinadas em todas as formas de iniciação, quer seja por uma velha senhora, uma meretriz ou por um casal de despossuídos.
Rosa procura recuperar esta mundividência cósmica do amor, inspirado em valores identificáveis na antiguidade grega, principalmente, conforme procuramos apontar.
Apesar das três sagas apresentarem personagens totalmente distintos entre si, procuramos observar o que havia em comum entre as estórias e entre os personagens. Por exemplo, nota-se que todos os protagonistas (Lélio, Soropita e Manuelzão) são alunos em busca da aprendizagem do mistério do amor. Cada um a sua maneira. Cada um com seu orientador(a). Independente da estória, os personagens traçam sua caminhada dentro da sua ótica. Assim, um jovem vaqueiro tem objetivos distintos de um pequeno comerciante. Um administrador de fazenda com maturidade avançada tem propósitos diferentes de um comerciante e de um vaqueiro. Mas todos devem ser iniciados nos mistérios do amor e alcançar suas metas.
A mestra principal de Lélio é uma senhora. Dona Lina conhece e entende muitas coisas que seu “aluno” desconhece. Seu grande ensinamento é que o amor deve ser vivido dentro do paralelo corpo e alma. Só corpo não serve, mas só a alma também não serve. Lélio demora, mas compreende.
O desafio de Doralda é mostrar a seu marido que o sexo não é sujo. Doralda argumenta com clareza que pecado para os outros é virtude para ela e orgulho para seu esposo. O corpo sendo despido vira epifania. Doralda tem a missão de ensinar a sacralidade do amor a Soropita. É uma mulher em sintonia com a natureza que age como uma hierofante a iniciar seu discípulo.
Por último, temos o aprendizado amoroso de Manuelzão na única estória que possui a palavra amor no seu título. Porém, dentre as sagas vistas é a que menos explicita a aprendizagem amorosa, provavelmente por vicio semântico de associação entre amor e casal. Diferente das duas sagas examinadas,
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Manuelzão é duplamente iniciado: ele aprende ouvindo estórias de Joana Xaviel e aprende ouvindo conselhos e versos do velho Camilo. Consegue sua redenção ao final.
Para além das narrativas mitopoéticas de Guimarães Rosa, o leitor deve se permitir, caminhar e aprender como os protagonistas das sagas. Respeitando as limitações de cada ser, deve-se buscar o amor em sua transcendência e com suas vicissitudes. Dar um basta à prisão de amor sofrimento, dominação que não cede espaço ao desenvolvimento de um Eros cosmogônico tão mais bonito e mais profundo.
REFERÊNCIA BIBLIOGRAFIA
OTTO, Walter Friedrich. Os deuses da Grécia. São Paulo: Odysseus, 2005.
ROBLES, Martha. Mulheres, mitos e deusas. São Paulo: Aleph, 2006.
ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. Rio de janeiro: Nova Fronteira,2001.
---------. No Urubuquaquá, no Pinhém. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2001.
---------. Noites do Sertão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. A saga rosiana do sertão. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001.
Roberto Costa
Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira)/ UFRJ, 2006
Doutorando em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira)/UFRJ
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero12/roberto.html
Número 12 (1º semestre de 2010) - ISSN 1981-870X