Primeiros Ensaios
Um Deus dormiu lá em casa: o eu e seu duplo em Guilherme Figueredo
Lidia Bantim Frambach
Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro/SME
lidiabantim.24@gmail.com
Um Deus dormiu lá em casa: o eu e seu duplo em Guilherme Figueiredo
Este trabalho pretende analisar a comédia Um deus dormiu lá em casa, do escritor brasileiro Guilherme Figueiredo, a fim de verificar a forma como o autor aborda questões como a subjetividade, o eu e seu duplo, buscando um viés com a filosofia, a psicanálise e a mitologia.
Palavras-chave: Guilherme Figueiredo. Eu. Duplo. Filosofia. Psicanálise. Mitologia.
A god slept at home: the self and its double in Guillerme Figueiredo The purpose of this paper is to analyse the comedy A god slept at home, by the Brazilian author Guilherme Figueiredo, with a view to considering the question of how the author deals with notions such as subjectivity, the self and its double, in an attempt to articulate the fields of philosophy, psychoanalysis and mythology.
Key words: Guilherme Figueiredo. Grove. One self. Double. Philosophy. Psychoanalysis. Mythology.
O estudo do duplo tem origem na mitologia grega, fonte inesgotável de narrativas com esse tema que a literatura, a partir da história das culturas, vem ampliando e que está sempre em aberto.
Dentre as muitas narrativas que põe em cena duas pessoas exatamente iguais, o mito de Anfitrião é, certamente, o mais produtivo no âmbito literário. Vários autores, ao longo da história da humanidade, aproveitaram o mito clássico, principalmente através do teatro, para tratar de questões presentes na sociedade de sua época, levando ao homem não apenas o entretenimento, mas também a oportunidade de refletir sobre a sua subjetividade enquanto ser social.
De Anchieta a Guilherme Figueiredo
As primeiras manifestações teatrais no Brasil tiveram início com os Jesuítas, por interesses religiosos, um teatro voltado para a catequese indígena. No século XVI, Anchieta escreveu muitas peças que abordavam os milagres dos santos, inspirado nos milagres do século XIII e XIV, além de autos vicentinos. Esse teatro entra em decadência do século XVII até a metade do
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século XVIII, devido ao envolvimento do país com a colonização e batalhas por território.
No século XVIII, surgem a primeiras casas de espetáculos como empresas e com seus elencos estáveis. As casas da Ópera contribuem de forma relevante para a propagação do teatro. Entretanto, o teatro francês e o italiano exerciam ainda uma forte influência estética sobre a nossa dramaturgia. Antonio José da Silva, o Judeu, é a figura mais marcante desse período (1705 – 1739). Suas comédias e tragicomédias, apesar da influência ibérica tiveram papel importante na formação do teatro brasileiro.
No século XIX, finalmente, o teatro brasileiro se firma, impulsionado pelo sucesso político da independência do Brasil, em 1822 e a abdicação de D. Pedro, em 1831. Em 1838, Gonçalves de Magalhães, com a peça Antonio José, realizada pela Cia João Caetano, foi um elo entre a escola antiga, neoclássica e o romantismo. No mesmo ano, Martins Pena, com o Juiz de Paz na Roça, marcou a primeira metade do século XIX, sendo considerado um Moliére brasileiro. Dá-se então, a primeira regulamentação do teatro com a organização do primeiro elenco dramático brasileiro.
Entretanto, foi graças a Artur Azevedo que essa reação nacionalizadora e a criação de uma estética brasileira chegaram ao seu auge com o desenvolvimento da comédia e do gênero revista. Com O Mandarim, em 1884, e com as peças que se seguiram, trouxe ao teatro um público habitualmente ausente e uma linguagem que garante ao teatro uma estética só para brasileiros.
Entre o período de 1900 a 1930, ainda permaneciam em destaque a comédia de costumes e o teatro ligeiro, cujos textos não apresentavam relevância estilística e formal. Paralelamente, crescia o número de empresas dramáticas que exploravam as revistas, operetas, farsas e dramas, e se elevava a consciência nacionalista.
Em São Paulo, cidade onde o proletariado urbano mais crescia, graças à industrialização, tinha lugar o teatro anarquista, influenciado por imigrantes italianos. Esse teatro denunciava as lutas políticas do período de 1917 a 1920.
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Todavia, o teatro ainda se mantinha isolado dos movimentos estéticos que ocorriam na Europa e que repercutiam na Literatura e nas Artes Plásticas, a exemplo da Semana de Arte Moderna de 1922.
Apesar de o teatro não ter participado representativamente da Semana de 22, surgem nesse período tentativas individuais de renovação, pelo menos temática: Joracy Camargo surge com a peça Deus lhe pague, trazendo ideias marxistas; Renato Viana com Sexo, abordando as ideias de Freud e Oduvaldo Viana com Amor, trazendo o tema-tabu do divórcio cuja estrutura dramática já aparece ligeiramente modificada.
Em 1933, Flávio Carvalho em seu Teatro de Experiência, montou O Baile do deus morto, cujas críticas ao poder, à moral e à religião provocaram o fechamento do teatro pela polícia, na terceira apresentação. No entanto, ele deixou sementes que frutificaram com as obras de Oswald de Andrade, como O Rei da Vela, a Morte, O homem e o cavalo, e Marco Zero que introduziram nas peças de teatro os traços modernistas. No entanto, como essas peças não foram encenadas na época, o modernismo no teatro ocorreu efetivamente com a montagem da peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, em 1943, sob a direção do polonês Ziembinski, seguindo-se outras peças.
Em 1946, um grupo de profissionais italianos montou em São Paulo o Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, que, com um elenco fixo de quinze atores, deu início à moderna indústria do espetáculo e contribuiu para a renovação técnica e formal do teatro brasileiro.
Finalmente, em 1948, Guilherme Figueiredo estreou com a comédia Lady Godiva e o drama Greve Geral, ambos montados pela companhia de Procópio Ferreira. No ano seguinte, inspirado na temática grega, montou a peça Um deus dormiu lá em casa, peça que marcará a estreia de Paulo Autran no teatro. Sábato Magaldi considera que:
Onde o autor se saiu melhor, em nossa opinião, foi em um Deus Dormiu lá em Casa. A companhia ilustre dos Anfitriões clássicos, entre os quais dois em língua portuguesa (de Camões e Antônio
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José) não desdoura a originalidade da comédia brasileira, cujos senões estão apenas no aproveitamento do anedótico. (MAGALDI, 1997, p.257).
A primeira peça teatral inspirada no mito de Anfitrião pertence à comédia latina e é de autoria de Plauto, que se utiliza da contaminação da cultura romana pela grega para criar a tragicomédia homônima. Ao longo da história da dramaturgia, a comédia Anfitrião de Plauto vem sendo apreciada e imitada no teatro, no cinema e na literatura. O marido enganado como tema central, a comicidade provocada pela presença em cena de dois pares de seres humanos idênticos e a paródia do mito grego conferem à obra plautina uma singularidade que justifica o expressivo interesse dos escritores e o fascínio do público pelo tema.
Jacques Lacan afirma que ao escrever a peça Anfitrião, Plauto introduziu o Sósia na literatura, trazendo assim, uma novidade ao mesmo tempo essencial e inseparável do mito, visto que a forma mais natural de se falar dos eus é na comédia. Ainda segundo Lacan, “o Sósia é o eu”.
É um fato que foi Plauto quem introduziu Sósia ─ os mitos gregos não são êuicos mas os eus existem, e há um lugar em que os eus têm a palavra da maneira mais natural, é na comédia. E é um poeta cômico ─ o que não quer dizer engraçado, penso que alguns de vocês já refletiram sobre este ponto ─quem introduz esta novidade essencial, inseparável daí em diante do mito de Anfitrião, Sósia. (Grifos do autor). (LACAN, 1985, p.331).
Sósia é o eu. E o mito lhes mostra que se comporta, no dia a dia, este euzinho boa-praça, bonzinho que nem vocês e eu, e que parte ele toma no banquete dos deuses, uma parte bastante singular, já que ele se acha sempre um pouco excisado de seu próprio gozo. O lado irresistivelmente cômico que se acha no fundo disso tudo nunca cessou de alimentar o teatro ─ no final das contas, trata-se sempre de mim, de ti e do outro. (LACAN, 1985, p.331)
Guilherme Figueiredo compõe a sua paródia de Anfitrião de forma bem irreverente, não só pelo fato de resgatar da tragédia de Sófocles, Édipo Rei, as
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personagens Creonte e Tirésias, mas por transgredir a tradição teatral da obra de Plauto, tendo em vista que em seu texto, as personagens divinas são introduzidas como disfarces de Anfitrião e Sósia. É a única peça, dentro dessa tradição, em que os deuses Júpiter e Mercúrio não existem.
O autor mantém as personagens Anfitrião, Alcmena e Sósia e exclui Blefarão e Brômia que aparecem na comédia plautina; cria a escrava Tessala, mulher de Sósia, além de apresentar Demagogós, personagem cuja voz aparece na abertura e no encerramento da peça.
A peça é composta de três atos e se passa na Grécia. Mas o discurso de Demagogós, algumas expressões usadas pelas personagens e as atitudes das mesmas nos levam a crer que a trama também se passa no Brasil. Há um diálogo, portanto, entre esses dois espaços. Vejamos:
Tessala ─ Cuidado com o reumatismo. Levas contigo o remédio?
Sósia ─ Anfitrião tem uma branquinha do Epiro que é ótima para esquentar o corpo.
Sósia ─ Sempre me cheirou mal, mulher, que não tinhas a menor crença... Do alto do Olimpo eu te via, te observava, te espiava... (FIGUEIREDO, 1963, p.19).
Com a substantivação do adjetivo demagogos ─ por via erudita, demagogo ─ (NASCENTES, 1966, p.234), Guilherme Figueiredo, de forma criativa, produz um novo significado para o nome próprio Demagogós ─ demo, do grego dêmos, “povo” + gogó, do português brasileiro, “goela”, “garganta”,”pomo de Adão” ─ (FERREIRA, 1986,p.855),ou seja, indivíduo capaz de persuadir o povo através da fala, do “gogó”. Daí, surge a expressão popular brasileira Ele é muito garganta, para se referir a alguém muito falante ou que gosta de se enaltecer. Podemos, portanto, atribuir Demagogós aos políticos brasileiros que, por meio de discursos demagógicos, fazem promessas que jamais cumprirão. No contexto em que está empregada, como a palavra está no plural, sugere também que é o próprio povo que se dirige a Anfitrião, numa atitude bajuladora e hipócrita.
Voz de Demagogós ─ Tebanos! Já é tempo de os deuses fazerem cessar as desgraças que pesam sobre a cidade. [...] E então, a divina inspiração baixou sobre o monarca, e ele nomeou general das nossas tropas o mais valente dos guerreiros, o mais vigoroso dos atletas, um
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herói que tem a bravura de Aquiles, a argúcia de Ulisses, a honra de Ájax: o nosso general Anfitrião! (FIGUEIREDO, 1963, p.1).
O primeiro ato Inicia-se com a voz de Demagogós, falando aos tebanos, lembrando-lhes de que é necessária uma intervenção dos deuses para que cessem todas as desgraças que os acometem, tendo em vista que, no ano em que a cidade parece ter recebido as bênçãos dos deuses e começa a prosperar, o rei Péricles, dos Teleboanos cercou a cidade de Tebas com seus exércitos, ameaçando-a com a fome e os saques.
Diante dessa situação, o rei Creonte nomeia Anfitrião (guerreiro e atleta forte) general das tropas tebanas, ordenando-o que parta em defesa de sua cidade. Ocorre que, Anfitrião é casado com uma linda mulher chamada Alcmena e desconfia das verdadeiras intenções do rei, já que o mesmo convocara o adivinho Tirésias para fazer as previsões sobre o destino da cidade e ele previra que, naquela noite, um homem dormiria na casa de Anfitrião.
Anfitrião, em discurso inflamado, garante ao povo que será vitorioso em detrimento da intervenção divina. Essa declaração causa a desaprovação de alguns presentes, inclusive da mulher dele, Alcmena que, ao contrário do marido, é muito religiosa e temente aos deuses. Alcmena se envergonha do marido por este não saber falar em público e por provocar os deuses. Aliás, uma das maiores frustrações dela é o fato de o marido além de não participar dos cultos com ela, ainda debocha de suas práticas religiosas.
Alcmena: ─ (horrorizada, baixo a Tessala) Blasfêmia, Tessala! Sempre temi por isto. Nunca, nem mesmo nas grandes datas, como hoje, aniversário de nosso casamento, consegui leva-lo ao templo. Durante as libaçõaes, manda reservar a melhor parte do carneiro, a que se oferece aos deuses, para comer com cebolas. E nos concursos trágicos, ronca como um javali, e só acorda na hora do vinho e da comédia. (FIGUEIREDO, 1963, p.3).
Ao ouvir o pedido do povo para que desista de ir à guerra antes de ser castigado pelos deuses, Anfitrião fala dos mesmos como se falasse dos homens, principalmente dos políticos: “os deuses não têm tempo de ajudar os mortais; estão muito ocupados a provar que existem”. (FIGUEIREDO, 1963, p. 3).
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Em conversa com Tessala, Alcmena confessa que Creonte não destituiria Anfitrião, mesmo após as blasfêmias, porque o rei pretende cortejá-la na ausência do marido. Ela desconfia que a previsão de Tirésias não passe de um artifício armado por Creonte para passar a noite com ela. Alcmena acha que Anfitrião também desconfia de tudo e, por isso, provoca os deuses, a fim de que o povo exija que Creonte o destitua do cargo. Entretanto, numa atitude narcisista, ela declara que ficou envaidecida com os galanteios de Creonte: “[...] primeiro porque sou mulher e me envaidece ver um rei que deseja a derrota de seus exércitos e a desgraça da pátria por minha causa...” (FIGUEIREDO, 1963, p.4).
O discurso de Anfitrião aos tebanos apresenta um tom ameaçador e já anuncia a sua intenção a Creonte:
Anfitrião ─ Estamos numa guerra... e não numa discussão teológica. Não creio nos deuses, mas vós credes. Minha mulher, também crê, e fará os sacrifícios necessários. A mim o que me cumpre não é matar os carneiros diante do altar, mas o inimigo no campo de batalha. Sou vosso general e vos prometo a vitória. Vamos busca-la. Vamos esmagar os Teleboanos, se assim Creonte o manda. Dizei ao rei que vou defender vossas mulheres, como defendo a minha. Dizei que trarei na ponta da lança a cabeça de um outro rei, para que ele veja de que seu general é capaz. Dizei que vou defender o seu palácio como defendo a minha casa. (FIGUEIREDO, 1963 p.4).
Alcmena pede ao marido que não blasfeme mais, pelo menos em consideração às famílias importantes que os prestigiam; ao que ele retruca com uma crítica à política e aos jogos de interesse: “cidade alguma condena um general quando precisa dele”. (FIGUEIREDO, 1963, p.5). Aqui, podemos perceber que essa mulher além de bonita e sensual, é interesseira, oportunista e materialista.
Antes de partir para guerra, Anfitrião dominado pela insegurança e pelo ciúme, pede que Alcmena não receba nenhum homem em sua ausência, mesmo que seja um deus, porque esses são os primeiros a seduzirem as mulheres. E, em seu desespero, promete dar a liberdade a Tessala, se ela vigiar Alcmena, protegendo-a com o próprio corpo, ser for necessário:
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“Protege-a. De qualquer modo. Por todos os modos. Com teu próprio corpo.” (FIGUEIREDO, 1963, p.9).
Diante da confissão de Tessala de que Creonte a deseja, porque a elogiara e a convidara para ir ao palácio, Sósia fica desconsertado pelo ciúme e pede a Anfitrião que o deixe ficar em casa para impedir que a profecia de Tirésias se realize. Mas Anfitrião também suspeita das intenções de Creonte e acha que a tal profecia é apenas uma estratégia do rei para afastá-lo de casa, a fim de passar a noite com Alcmena. Então, combina com o escravo de voltar no meio da noite, disfarçados de deuses. Agindo assim, ele sai da posição de marido enganado e passa a enganar o rei, vingando-se deste:
Anfitrião ─É isto que é um buraco. Bolas para as tropas! Se Creonte pensa que deve me desgraçar, ele que se desgrace! Sósia, escute: vamos voltar do campo de batalha.
Anfitrião ─ É, eu também não tinha pensado nisto. Mas... Espera! Que idéia! Tirésias vai acertar mais do que pensa... Sabe quem vai passar a noite aqui? Não é um homem não; um deus: Júpiter. (FIGUEIREDO, 1963, p.11).
Os disfarces utilizados por eles dão maior comicidade à peça:
Anfitrião ─ É isto! Os dois! Você de Mercúrio, eu de Júpiter. Corre ao depósito. Há lá, entre umas coisas velhas, algumas que se aproveitam. Traga o raio de ferro dourado que serviu para a última dionisíaca. E o manto. Há na cozinha uns pombos que Alcmena vai sacrificar... A carolice dessa mulher é capaz de depredar um jardim zoológico! Torce o pescoço de um pombo e corta-lhe as asas, para amarrar nos teus pés. E arranja um casco para a cabeça. Rouba o caduceu da porta da farmácia de Esculápio. Corre! (FIGUEIREDO, 1963, p.11).
O ciúme exagerado de Anfitrião faz com que ele suspeite de todos os homens que não foram escalados para a guerra. Podemos atribuir a essa atitude ao que Freud chama de delírios de ciúmes que contradizem o sujeitoe ao que, mais tarde, Lacan denomina de alienação invertida. “No delírio de ciúme, encontra-se no primeiro plano essa identificação ao outro com intervenção do signo da sexualização.” (LACAN, 2002, p.53).
Anfitrião ─ Isto é tolice. Eu falo de homens. Falo de Creonte, que não vai à batalha. Falo do filho de Demeneto, por quem as mulheres
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suspiram no agorá. Falo desses anciãos, que não têm força para erguer um escudo, mas ficam por aí dizendo pilhérias senis às mulheres nas portas das casas de confeitos... Todos esses. (FIGUEIREDO, 1963, p.7)
Anfitrião e Sósia partem apara a guerra e Tessala sugere a Alcmena que troquem de quarto. Aqui, há dupla pretensão da escrava: ganhar a liberdade por ter vigiado a senhora e receber o rei Creonte na cama de Alcmena, protegendo-a “com o próprio corpo”, conforme prometera ao senhor (inferência nossa).
O segundo ato se passa à noite. Anfitrião e Sósia retornam disfarçados em Júpiter e Mercúrio e entram sorrateiramente. Anfitrião repreende o criado, dizendo-lhe que ande mais imponente, que tome a postura de um deus, assim como ele. Mas Sósia lhe diz para não se esquecer de que ali, é Júpiter no papel de Anfitrião e não o contrário. Aqui, entra em cena a questão do eu e o outro.
Sósia ─ [...] Do mesmo modo, se sou Sósia fazendo o papel de Mercúrio no papel de Sósia, devo ser mais Sósia do que quando eu era Sósia, porque Mercúrio deveria saber muito bem fazer o papel de Sósia no papel de Mercúrio. Acho que devemos ser naturais. Afinal de contas não estamos num teatro, e sim numa aventura amorosa: se os amantes resolvessem representar papéis em vez de vivê-los, as mulheres do Corinto ainda seriam virgens. (FIGUEIREDO, 1963, p.17).
Anfitrião aconselha o escravo a não fazer “frases de espírito” enquanto estiver no papel de Mercúrio. Há nessa fala uma crítica aos escritores que desejam a imortalidade através de suas obras “[...] esse é um recurso cabotino em que os mortais pensam alcançar a imortalidade. Um deus não precisa de brilho literário”. (FIGUEIREDO, 1963, p.17).
Anfitrião orienta Sósia para anunciar à Alcmena a chegada de Júpiter: “─ Oh, filha de Eléctron, rei de Mitileno, oh, a mais bela das mulheres que a luz de Apolo já iluminou... Aqui estou eu, Mercúrio, o mensageiro dos deuses, para dizer-vos... que Júpiter está em vossa casa e partilhará do vosso leito!” (FIGUEIREDO, 1963, p. 18).
Tessala percebe que tudo aquilo é uma farsa e se recusa a ir para a cama com Mercúrio (Sósia), enquanto Alcmena tenta de todas as formas
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seduzir Júpiter (Anfitrião) Mas, ao perceber a empolgação de Alcmena com Júpiter, fica enciumado e começa a fazer-lhe vários questionamentos, a fim de saber se ela seria capaz de traí-lo, ainda que fosse com um deus. O estado emocional de Anfitrião, provocado pelo ciúme e a desconfiança, faz com que ele se deixe trair pelo discurso, mudando o tratamento da segunda para a terceira pessoa, cometendo vários atos falhos. Rubem Cobra comenta esses atos falhos:
Os chamados Atos sintomáticos são para Freud evidência da força e individualismo do inconsciente: e sua manifestação é comum nas pessoas sadias. Mostram a luta do consciente com o subconsciente (conteúdo evocável) e o inconsciente (conteúdo não evocável). São os lapsus linguae, popularmente ditos "traição da memória", ou mesmo convicções enganosas e erros que podem ter conseqüências graves. (COBRA, 2003).
Esses atos falhos tornam o texto mais rico em comicidade, principalmente, porque Alcmena, em sua fantasia, finge não perceber a verdade.
Anfitrião (esquecido de que é deus) ─ Com certeza você vai dizer que era eu!...
Alcmena (tábua de salvação) ─ Éreis vós, Senhor! Vós! A profecia dizia “um homem” e sois vós em forma humana, igual ao meu marido!
Anfitrião ─ (consigo mesmo) É verdade, não é que esse raio dessa profecia se cumpriu mesmo? (Outro tom) Se eu é que devia vir, por que trocaste de quarto com tua escrava? Querias iludir o teu deus?
Anfitrião (explodindo) ─ Eu sabia! Eu sabia que você me enga... que você enganava seu marido! Eu sabia! Não fosse eu um deus! Eu sabia! (FIGUEIREDO, 1963, p.22).
Se do ponto de vista literário, esse é um recurso que garante o sentido cômico próprio da comédia, do ponto de vista psicanalítico, trata-se de uma formação do inconsciente, de acordo com Pontalis;
Segundo Freud, ato por meio do qual o sujeito sob o domínio dos seus desejos e fantasias inconscientes, vive esses desejos e fantasias no presente com um sentimento de atualidade que é muito vivo na medida em que desconhece a sua origem e o seu caráter repetitivo. (LAPLANCHE E PONTALIS, 2001, p. 44).
Por várias vezes, Anfitrião tenta dizer para Alcmena que aquilo é um disfarce, mas ela não quer saber, continua iludida. Então, ele reassume o discurso de Júpiter e diz que veio para protegê-la contra os homens que a cobiçam, durante a ausência do marido. Sentindo-se preterida, Alcmena diz
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que não precisa de proteção e passa a apontar defeitos em todas as mulheres que Júpiter conquistara, fazendo com que ele perceba a sua beleza e sensualidade.
Alcmena ─ Aí está uma hora em que as mulheres não precisam de proteção: ou se defendem, ou se entregam. Mas tu, Júpiter, vires a minha casa para me dizeres isso? Acaso não sou digna? Olha bem para mim... Por acaso Europa tinha cabelos mais longos, e a testa mais pura? Olha bem, deus, olha bem... (FIGUEIREDO, 1963, p.23.
Embora Tessala demonstre fidelidade ao marido, fica envaidecida com o convite de Creonte. Inferimos que ela, pela sua condição de escrava, não acredita que os deuses se interessem por ela. Portanto, é melhor ser possuída pelo rei, que é um mortal e poderá dar-lhe, além de bens materiais, a liberdade. Podemos perceber a crítica política, social e religiosa presente nesta fala da personagem:
Tessala (subitamente revoltada) ─ Por quê? Por quê? Porque eu sou uma escrava, ouviram? A uma escrava os deuses não adiantam nada. Os deuses são um luxo de gente livre. Que me importa a mim crer em Júpiter, se quem manda em mim é Anfitrião? Que adianta elevar súplicas aos céus, se ele não me tira da condição de escrava? Em todo o mundo grego, desde o Ponto Euxino até Mainake, no fundo do Mar Interior, há milhares e milhares de escravos que rezam todos os dias, a todos os deuses; deuses em forma de gente, deuses em forma de bichos, deus sem forma, deuses que são astros, pedras, plantas, espíritos e coisas... que lhes adianta? Os escravos não têm deuses. Para mim, vocês (aponta para Anfitrião e Sósia) não existem! (FIGUEIREDO, 1963, p.25).
Ao desejar ser possuída sexualmente por Creonte, ela assume o lugar de Alcmena. Nessa relação especular, encontra-se o desejo do desejo do outro que remete à dialética do senhor e do escravo, alegoria criada por Hegel para representar a dialética do reconhecimento da consciência de si, a qual, segundo Hegel, “[...] suprime o Outro, pois não vê o Outro como essência, mas é a si mesma que vê no Outro”. (HEGEL, 1992, p.126). A respeito do desejo humano Lacan afirma que:
O desejo inicialmente é apreendido no outro, e da maneira mais confusa. A reltividade do desejo humano em relação ao desejo do outro, nós a conhecemoas em toda relação em que há rivalidade, concorrência, e até em todo o desenvolvimento da civilização, inclusive nesta simpática e fundamental exploração do homem pelo homem cujo fim não estamos a ponto de ver, pela razão de que é
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absolutamente estrutural, e que constitui, admitida de uma vez por todas por Hegel, a estrutura mesma da noção de trabalho. (LACAN, 1986, p.172)
Mas acrescentando também que o desejo do homem é o desejo do outro, onde o “de” fornece a determinação chamada pelos gramáticos de subjetiva, ou seja, é como Outro que ele deseja (o que dá a verdadeira dimensão da paixão humana). (LACAN, 1998, p. 826).
Alcmena pede um filho a Júpiter (Anfitrião) para provar ao marido a existência dos deuses, mas ele a rejeita. Sentindo-se preterida e, sabendo que Tessala se recusa a dar um filho a Mercúrio, ela se oferece ao deus, deixando Anfitrião desesperado. O efeito cômico da peça ganha maior relevo, no momento em que ocorre o transitivismo (termo introduzido pelo neurologista e psiquiatra alemão Karl Wernicke, 1848-1905, como um conceito relativamente próximo à noção freudiana de projeção) em Anfitrião, ou seja, o instante em que se percebe a falta de limite entre o que pertence ao eu e o que pertence ao Outro:
Anfitrião ─ Oh, Alcmena, eu daria tudo para ser Anfitrião.
Alcmena (mudando o tratamento) ─ Seja... tolo... Você já não é?
Você não tem o mesmo rosto, os mesmos gestos do meu marido?
Anfitrião ─ Alcmena, eu sou Anfitrião... (FIGUEIREDO, 1963, p.30).
Sobre o conceito de transitivismo Lacan afirma que:
Esse momento em que se conclui o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial (tão bem ressaltado pela escola de Charlotte Bühler nos fenômenos de transitivismo infantil), a dialética que desde então liga o [eu] a situações socialmente elaboradas. (LACAN, 1998, p. 101).
Alcmena consegue convencer Anfitrião de que ele é Júpiter e o leva para a cama. Ele se desfaz dos disfarces, dizendo querer amá-la como homem, mas mesmo assim, ela continua investindo em sua fantasia de ser desejada e possuída como mulher, não como esposa.
Finalmente, no terceiro ato, Sósia entra aos gritos, anunciando a vitória de Anfitrião, enquanto Tessala tenta convencer Alcmena de que foi Anfitrião e não Júpiter que estivera com ela durante a noite. Alcmena sente-se feliz e se prepara para receber o marido vitorioso. Mas este retorna cabisbaixo, entra pela porta dos fundos e diz a Alcmena que matou um homem velho e indefeso, cuja cabeça levara espetada na lança para apresentar a Creonte. Anfitrião acusa Alcmena de tê-lo traído e de tê-lo amado de maneira especial.
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Anfitrião ─ [...] Teus olhos brilhavam mais do que quando comigo... tuas mãos estavam mais macias... nunca o teu perfume foi tão cruel... e teu colo, como arfava o teu colo... e tuas palavras tinham um sabor de prece, um sabor que não era para os meus ouvidos... e teu ventre tremia como a anca de um potro árabe... E teu beijo, o teu melhor beijo, não era para mim, era para esse teu deus lascivo, cujo corpo adoraste mais do que o meu carinho, mais do que todos os meus carinhos! (FIGUEIREDO, 1963, p.36).
Alcmena diz que ele também estava diferente e o acusa de ter aprendido a amar daquele jeito com outras mulheres, não com ela. “─ E tu, também? Acaso não foste melhor? Onde aprendeste, senão fora de casa, no Corinto, em Lesbos, a amar como não me amas?” (FIGUEIREDO, 1963, p.36). Percebemos, aqui, que tanto para Anfitrião quanto para Alcmena a experiência foi válida, visto que na relação de marido e mulher, apesar de se amarem, o que estava em causa era o respeito e o dever, enquanto na posição de amantes, eles puderam liberar o desejo e experimentaram fantasias jamais vividas. Nadiá P. Ferreira em seu livro A Teoria do Amor, diz que:
Amar coloca em cena o desejo relacionado à falta e não ao sexo. Nesse sentido, amor e desejo sexual são diferentes, o que não significa que sejam excludentes. Nada impede que um objeto seja amado e cobiçado sexualmente. Quando se ama, o que está em jogo é a suposição de um ser ─ riqueza interior ─ no outro. Quando se deseja sexualmente, o que entra em cena é o outro capturado como objeto. (FERREIRA, 2004, p.11).
Diante das desconfianças de Anfitrião em relação a Creonte, Alcmena revela que o rei cobiça Tessala. Curiosamente, o marido sente-se desapontado. Isso porque, para o sujeito, não faz sentido desejar uma mulher que não é desejada por outros homens. Afinal, segundo Lacan, “o objeto de interesse humano é o objeto do desejo do outro”. (LACAN, 2002, p.50). Observemos a fala de Anfitrião: “─ É um insulto! Cobiçar uma escrava, e não você? É de amargar...” (FIGUEIREDO, 1963, p.38).
Anfitrião resolve admitir que Júpiter realmente estivera com Alcmena, mas ela diz que sabia da farsa. Afinal, como dissemos anteriormente, ele se deixara trair pelo discurso por várias vezes e ela confirma isso: “─ Falaste muito, Anfitrião, falaste demais. E se eu te disser que desde o primeiro momento, desde que esbarrei com Júpiter nesta sala, eu vi que eras tu?” (FIGUEIREDO, 1963, p.39).
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No epílogo da peça, os tebanos vêm enfurecidos contra a traição de Alcmena e querem apedrejá-la. Anfitrião quer salvar a mulher, confessando que dormira em casa naquela noite. Mas ela, estrategicamente, convence-o a dizer que fora Júpiter, usando o episódio como um meio de promoção política.
Anfitrião fala ao povo e reconhece que, enquanto esteve na guerra, um homem dormira com sua mulher. No entanto, ele se sente honrado porque não fora um mortal e sim Júpiter, o deus dos deuses. “─ Enquanto eu defendia Tebas, enquanto eu defendia os vossos lares, os vossos filhos, as vossas mulheres, alguém esteve aqui... e foi um milagre... foi Júpiter, Nosso Senhor! (Exclamações “Ah!”). (FIGUEIREDO, 1963, p.42. Grifo do autor).
Em resposta à insinuação de Demagogós que o interrompe, ironicamente: “Anfitrião, então tu és...? Anfitrião deixa claro que os valores mais relevantes para o homem moderno são: a fama, o poder e o prestígio social, independentemente de como sejam conquistados. Vejamos:
Anfitrião (interrompendo-o) ─ Bolas, Demagogós. Sou o que tu pensas! Sou corno. Mas sou o herói desta cidade! (Vozes “Bravo”) [...] Podeis dizer que eu, o vosso general, sou um marido enganado... Podeis sorrir quando eu passe, mas eu passarei impávido no meu orgulho de homem, de cidadão e de mortal... Quantos, quantos de vós não daríeis um pedaço da vida, a glória, a fortuna, em troca de poderdes dizer que os amantes de vossas esposas são deuses, e não pobres mortais como nós... (FIGUEIREDO, 1963, p.42).
Um deus dormiu lá em casa conferiu ao seu ator todos os prêmios da Sociedade Brasileira de Críticos Teatrais e o projetou no cenário internacional. Com essa peça Guilherme Figueiredo não só deu ao mito de Anfitrião um caráter moderno, mas provou que, “[...] Ninguém é o escritor que quer (ou que os outros querem), mas o escritor que pode ser, o escritor que traz dentro de si mesmo”. (PRADO, 1998, p. 56).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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www.omarrare.uerj.br/numero12/lidia.html
Número 12 (1º semestre de 2010) - ISSN 1981-870X