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O Marrare nº:7


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O olhar, o amor e o ódio em um conto de Clarice Lispector

 

Laéria Fontenele
Universidade Federal do Ceará
laeria@terra.com.br

 

O olhar, o amor e o ódio em um conto de Clarice Lispector
O artigo procura realizar uma leitura do conto “o Búfalo” de Clarice Lispector, tendo por objetivo preciso a análise de como nele se transmitem, a partir do referencial de sua personagem principal, as possíveis relações entre o amor, o ódio e o olhar. Tal empreendimento dar-se-á a partir de uma articulação da literatura com o campo psicanalítico e levando em consideração, como parâmetro metodológico, os ensinamentos freudianos, segundo os quais a literatura pode ensinar acerca da experiência do sujeito do inconsciente.
Palavras chave: Literatura. Psicanálise. Clarice Lispector. Olhar.

The glance, love and anger in a short story by Clarice Lispector
This article introduces a reading experience of “The Buffalo”, a short story by Clarice Lispector.  The main goal of the paper is to suggest an analysis of possible relationships between love, anger and the glance in the main character´s discourse. In order to do so, it articulates literature and psychoanalysis, taking into consideration, as a methodological tool, some Freudian teachings that suggest that literature may teach us about the experience of the subject and the unconscious.
Key words: literature. psychoanalysis. Clarice Lispector. glance.

 

Já tivemos a oportunidade de desenvolver, em outras ocasiões, a tese de que a literatura tem para a psicanálise, e mais especificamente para Freud, o valor de transmitir a experiência do sujeito do inconsciente, sendo, o que aí se transmite é um saber marcado pela falta. Esse saber tem a capacidade de nos conduzir à dimensão criativa revelada pelo efeito estético, dada sua potência de revelar a plasticidade expressiva das mais diversas experiências humanas. Consideramos fundamental pensar a literatura como prática da letra; e há alguns anos, ao realizarmos uma análise acerca da escrita em seu vínculo com a pulsão, deparamos - dentre outros textos literários em que se evidenciava essa questão - um conto do livro “Laços de família”, de autoria de Clarice Lispector, intitulado “O Búfalo”.
Tal fato nos instigou a destacar nele o modo como se dá, considerando-se a singularidade do estilo de Clarice, o emprego da sintaxe, revelando a sua construção subversiva em sua textualidade, como se vê logo no princípio do conto que se inicia com uma frase adversativa “Mas era primavera” (LISPECTOR, 1982, p. 149). Nessa ocasião, buscávamos articular questões acerca da relação entre corpo e escrita, o que nos serviria à crítica de um tipo de análise textual que procura estabelecer relações entre a escrita literária e o

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gênero (FONTENELE, 2006);  portanto, esse texto de Clarice, foi tomado num contexto específico e de forma sobremodo pontual.
No entanto, determinados detalhes presentes na construção de “O Búfalo”, mais especificamente o lugar e o modo como nele se inscrevem o olhar da personagem e o olhar dos animais, nos indicaram aspectos, no mínimo curiosos, que nos fizeram suspeitar da presença de outros sentidos ainda latentes e não explorados por outros estudos sobre ele realizados, e, a que tivemos acesso. Isso, então, nos motivou a retomada de sua leitura, agora, movidos por outra inquietação: o que o conto “O Búfalo” é capaz de transmitir acerca das relações entre o amor, o ódio e o olhar. O olhar, enquanto o que poderia mediar, para a personagem, a transformação do amor em ódio é o aspecto que nele pinçamos na realização desse trabalho.
É necessário e oportuno salientarmos que o referido recorte, condutor da reflexão e análise que aqui faremos de “O Búfalo”, é bastante pontual, uma vez que a polissemia e a riqueza de aspectos que podem ser considerados em sua tessitura narrativa - isto além de suas personagens em si - apresentam, em sua textualidade, elementos centrais concernentes à sua significância e à sua literalidade. Tal pode ser atestado pelas diversas análises e ensaios que já motivou no campo da crítica literária e que, independente da relevância e pertinência de que se revestem, não serão aqui repertoriados devido ao foco preciso que adotaremos para trabalhá-lo. Essa delimitação - as relações entre o amor, o ódio e o olhar - não tem a pretensão de defini-lo como sendo o sentido último da referida narrativa, uma vez que nos posicionamos contrariamente a todo tipo de análise do texto literário que resulte na produção de super interpretações que acabam por reduzir a significância de um texto a um sentido unívoco e, portanto, totalitário.
Antes de passarmos ao estudo a que nos propomos, consideramos essencial situar o leitor na seguinte orientação: o nosso interesse em tratar das relações entre o olhar e a transformação do amor em ódio não assume o sentido usual dado a esses três elementos no imaginário de nossa cultura. Em verdade, os tomamos no sentido teórico que lhes é dado pela psicanálise, em seu vínculo específico com a pulsão, esta sendo a que faz torção entre o corpo

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e alma humana. Freud (1994.a) a define precisamente como a medida de exigência que o corpo faz à alma no sentido da busca de sua satisfação. Contrariamente ao que ocorre com o instinto, que possui um objeto invariável que lhe serve à satisfação, o objeto da pulsão é, nela, o que há de mais variável. A transformação do amor em ódio, ao lado dos demais modos de expressão da dinâmica pulsional humana – reversão da pulsão em seu oposto, recalque e sublimação -, mereceram especial atenção de Freud (1994.a), dada a sua relevância para a clínica psicanalítica, que, segundo ele, teria como um dos seus propósitos o de restabelecer os prejuízos da capacidade de amar ocasionado pelas neuroses.
Freud, nesse mesmo estudo sobre o conceito de pulsão, nos apresenta os destinos pulsionais mais arcaicos presentes em nosso funcionamento anímico; dentre eles ocupa-se da mudança de conteúdo da pulsão através do exemplo da transformação de amor em ódio – segundo ele,  o único caso em que se observa uma mudança dessa ordem;  ressalta ser mais frequente  que a mescla  amor e ódio seja dirigida a um mesmo objeto, manifestando-se dessa forma a ambivalência de sentimentos tão presente nos laços que estabelecem os seres humanos entre si.
Nesse artigo, nos adverte para o fato de que o amor não admite apenas um oposto – no caso, o ódio -, mas que também se opõem a ele o “ser amado” e a indiferença, que também serve de oposto ao ódio. É vasta a discussão em torno do amor em Freud, Lacan. Nadiá Paulo Ferreira, entre os autores brasileiros contemporâneos, (FERREIRA, 2004, 2005), nos lembra que existem formas diferentes na sua manifestação, mas, sobretudo, que  o conceito de amor acha-se compreendido em toda a discussão psicanalítica acerca da transferência, condição mesma dos laços humanos e igualmente condição necessária ao início de um tratamento analítico e aquilo que confere ao analista o seu poder na condução de uma cura.
Não sendo nosso propósito repertoriar as teorizações feitas sobre o amor no campo psicanalítico, mas precisamente situar o sentido em que tomamos o olhar, o amor e ódio, resta-nos apenas lembrar a contribuição de Lacan (1985;1998) a essa questão: sua discussão acerca das origens do eu e

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da formação da imagem especular em sua relação com o que Freud (1994.b) denominou de narcisismo. Na estruturação de nosso psiquismo e no processo que leva à edificação de nosso eu, Lacan (1998) destaca as dimensões imaginária e simbólica desse processo, e que nos servem para fazer face ao real concernido em nossa precariedade original, tanto do ponto de vista de nosso inacabamento orgânico original – a nossa dependência constitucional do outro para sobrevivermos - quanto face ao sem sentido que o nosso acesso ao mundo de linguagem nos fará recobrir com a palavra. Para Lacan (1985), o eixo imaginário é constituído pela linha que serve de espelhamento entre o eu e o outro – e nela ocupa um lugar especial a metáfora do espelho como o que condensa o valor do olhar do outro na construção da imagem do corpo próprio -, alteridade esta necessária e, ao mesmo tempo, aquilo que faz obstáculo à alteridade simbólica, que seria representada pela linha situada entre o Sujeito e o Outro, a qual, graças a esse obstáculo, é interrompida, fazendo com que o sujeito receba do Outro  a sua mensagem de forma invertida. Com isso, queremos apenas destacar que o eixo imaginário encontra-se em consonância com a polaridade amor e ódio, sendo aquilo que marca o modo como se dão as primeiras relações do eu com o objeto, campo da ambivalência mais primitiva, mas não menos estranha e familiar a cada representante da espécie humana, pois deixa cicatrizes, por certo diferentes, na estrutura de cada eu. No eixo simbólico, a falta - metaforizada pela relação interrompida entre o Sujeito e o Outro – serviria de limite à ambivalência entre amor e ódio, na medida em que deixa espaço ao amor enquanto o que promove a produção de sentidos e não de um sentido único para os enigmas do real.

O olhar, a construção da personagem e a vontade de ódio
Como é característica de todo conto, trata-se de uma narrativa sintética, em que os detalhes adquirem um valor especial. A personagem central de “O Búfalo” é construída a partir dos seguintes traços: trata-se de uma mulher sem nome, vestida com um “casaco marrom”, mergulhada em um espaço público – o zoológico - para onde ela se dirigiu com um propósito bem definido: o de aprender a odiar com os animais. Dentre esses elementos que servem à construção da personagem, chama-nos especial atenção o lugar que nela ocupa o casaco marrom – substantivo que, assim qualificado, assume no texto

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um vínculo associativo com os significantes “inverno” e “jaula”. Seu traje e cor, comuns às vestimentas de inverno, em geral escuras, encontram-se textualmente equiparados ao significante “tristeza”. Ela, a mulher, em passeio pelo zoológico, é descrita em completa dissonância com o seu entorno e em conflito com os seus sentimentos. Diz a voz narrativa logo no início do conto: “Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. Os dois animais louros. A mulher desviou os olhos da jaula, onde só o cheiro quente lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim Zoológico.” (LISPECTOR, 1982, p.149).  E mais adiante:

"Mas isso é amor, é amor de novo", revoltou-se a mulher tentando encontrar-se com o próprio ódio mas era primavera e dois leões se tinham amado. Com os punhos nos bolsos do casaco, olhou em torno de si, rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechadas. Continuou a andar. Os olhos estavam tão concentrados na procura que sua vista às vezes se escurecia num sono, e então ela se refazia como na frescura de uma cova. (p.149).

Com seu olhar voltado para os animais, ela procurava encontrar-se com seu próprio ódio; mas os olhos dos animais só a devolviam o seu amor, equiparado no texto à primavera, à luminosidade, ao sexo e ao brotar da vida.
Percorre, então, obstinada as jaulas de outros animais em busca de sua aprendizagem do ódio, então, fracassada diante do casal de leões.  Todavia, o que encontra, de forma sucessiva, em sua busca é o seguinte: uma girafa, tal uma virgem de tranças recém-cortadas; o hipopótamo, de amor humilde por se manter apenas carne; os macacos, em levitação pela jaula, a que ela desejava matar,  num exato ponto entre os olhos, desejo desfeito ao deparar  os olhos de um macaco, que a “olhavam sem pestanejar” e que se revelam  a ela sem o seu brilho fálico,   pois eram os olhos doentes de um macaco velho. Diz a voz narrativa:

— a mulher desviou o rosto, trancando entre os dentes um sentimento que ela não viera buscar, apressou os passos, ainda voltou a cabeça espantada para o macaco de braços abertos: ele continuava a olhar para a frente. "Oh não, não isso", pensou. E enquanto fugia, disse: "Deus, me ensine somente a odiar."
"Eu te odeio", disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. "Eu te odeio", disse muito apressada. Mas não sabia sequer como se fazia. Como cavar  na terra até encontrar a água negra, como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma? (LISPECTOR, 1982, p.151).

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É a sua reação ao que vê nos olhos do macaco e a sua súbita piedade pelo macaco velho que servem ao propósito de figurar a razão de sua busca e de seu impasse: queria odiar o homem que amava e que não correspondia ao seu amor;  mas como odiá-lo por isso?
O primeiro tempo do conto conclui-se a partir desse episódio e de sua reiteração através de seu encontro com o elefante, que suportava o próprio peso e tinha os olhos, “numa bondade de velho, presos dentro da grande carne herdada” (LISPECTOR, 1982, p.151), e com o camelo corcunda, de cílios empoeirados, mastigando a si próprio e que a remeteram à paciência de “sua carne herdada” (p151-152). O que se destaca, então nesse primeiro tempo do conto, é que a sucessão de animais, em relação metonímica com a personagem, parece devolver, do espelho de seus olhos, a sua própria imagem: a imagem de uma mulher enjaulada; mas sua jaula, o seu casaco marrom, era o seu amor.  A procura por aprender a odiar com os animais, captando em seus olhos o seu próprio ponto de ódio, é marcada pelo fracasso; falta aos olhos encontrados o brilho capaz de despertar o fascínio característico da imagem fálica, não é resplandecente a imagem que essa mulher recebe da tela do Outro; senão como não amá-la, como não deixar-se fascinar pelo brilho que emana de si?
Dois aspectos se destacam dessa problemática e conduzem ao que Lacan, especificamente ao seu Esquema L, nos informa acerca dos primórdios do amor em sua constituição subjetiva, ocasião em que o objeto amado estaria confundido com o ideal do eu do sujeito. Essa confusão tanto remete ao eixo imaginário, da ambivalência [ a – a’], como a ele enquanto entrecortando o eixo simbólico, que vai do Sujeito ao Outro [(Es) S – A], ou seja para a dimensão faltosa do Outro. Dessa forma, se o amor se passa no nível imaginário, não o faz sem operar um efeito preciso sobre o simbólico, qual seja a de provocar uma perturbação da função do ideal do eu. Amar é, portanto, ser feito enamorado. O que pede essa mulher, qual é de fato a sua demanda ao Outro? Seria de fato o encontro com o seu próprio ódio? Seria ser amada ou ser reconhecida como amante?

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Torna-se evidente, nesse primeiro tempo do conto, que o olhar dos animais não devolve a essa mulher o brilho capaz de captá-la, uma vez que:

É o Outro que me reflete as imagens. Se uma pessoa se aproxima e eu a fito, se trato de fixar os olhos em seu rosto, eu sinto que ela me olha e me sinto acompanhado pelo olhar; é muito importante, para isso, que haja um reflexo brilhante nos olhos. Ou seja, ali a tela não é a pessoa toda, é a superfície corneal do olho. Um olhar do Outro para mim tem valor porque, nos olhos do Outro, reflete-se a luz que vem até mim com um brilho que me capta.” (NASIO, 1995, p.53).

Não por acaso, o momento em que a personagem confronta-se com os olhos figurados, cada qual à sua maneira, opacos - o do macaco velho, cujas pupilas eram veladas por uma membrana branca e gelatinosa; os olhos bondosos do, igualmente velho, elefante; os olhos recobertos por cílios empoeirados do camelo em trapos -  é justamente o que a conduz à  impossibilidade de ver o ódio onde fora procurar. No zoológico, não realizou, até então, o seu desejo de apreender o ódio; só encontrou a paciência e a suavidade da primavera. Foi, então, devolvida por esse obstáculo à sua própria solidão. Dar-se-á, então, a cena em que ocorre a vacilação da fantasia dessa mulher, que faminta de sonhos, desde o princípio, tem a vista escurecida pela fome e pelo sono que abate seus olhos, despertando, como veremos a seguir, a sua dura realidade.

A solitária violência: a alegria do mergulho no ar
No segundo tempo do conto, interrompe-se a busca da mulher pelos olhos cheios de ódio das supostas feras enjauladas. A mulher toma outro caminho, o do pequeno parque de diversões do jardim zoológico. Por lá “foi sozinha ter sua violência” (LISPECTOR,1982,p.152).  Posicionou-se na fila dos namorados à espera, como eles - muito embora sem par -, por um lugar na montanha russa – que ainda parada é equiparada no texto a uma igreja e de onde vê o mais puro amor no verde da erva que brotava da terra. No entanto, súbito, num “vôo de vísceras”, a montanha russa em movimento a suspende, em fúria, de si mesma.  Sente seu corpo tornado puro objeto de mecânicas manobras, às quais alienadamente submetia-se. Sentada em tão estranha Igreja, em vertigem e em espanto, sente “a alegria de um novo mergulho no ar insultando-a com um pontapé, dançando descompassada ao vento, dançando

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apressada, quisesse ou não quisesse o corpo sacudia-se como o de quem ri, aquela sensação de morte às gargalhadas” (p.152). Deparou, então,não sem ferir-lhe os olhos, a sua triste condição objetal: “faziam dela o que queriam” (p.152). Foi como uma morte que ela fez tal constatação.
Do grave espanto da morte, sobrou o silêncio, com que de volta foi jogada, e o seu recato pela sua condição cruelmente exposta. “Fazia o possível para que não percebessem que estava fraca e difamada, protegia com altivez os seus olhos quebrados”. Entre uma morte alegre e uma morte triste confronta sua nudez, que a faz indagar a sua condição de mulher. (LISPECTOR,1982, p.154).
Seriam os seus olhos que estariam quebrados, ou sua quebra indica a existência de algo que no espelho, constituído entre o Sujeito e o Outro, obscurece a sua visão. Retomando o Esquema L, é importante ressaltar o efeito que tem esse espelho na necessária transformação da imagem do eu (a) em imagem d outro (a’) e da imagem do outro (a’) na imagem do eu (a) (DARMON, 1994).
Seus olhos sofrem, após essa experiência, um dano maior do que aquele do sono que, ao princípio do conto, escurecia a sua vista, impedindo-a de ver. Agora quebrados, no entanto, estariam em condições de ver a escuridão para além da primavera que ainda pôde surpreender, em repetição, na jaula do quati, mas agora ela se sentiu olhada pelo olhar do quati, um olhar que parecia indagar-lhe algo.Fugiu desse olhar. Mas a fuga foi vã, o olhar indagante desse animal a fez realizar: a jaula estava do lado dela. Diz, então, a voz narrativa:

O mundo de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham mas não dói... oh não mais esse mundo! não mais esse perfume, não esse arfar cansado, não mais esse perdão em tudo o que um dia vai morrer como se fora para dar-se. Nunca o perdão, se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida — deu um gemido áspero e curto, o quati sobressaltou-se — enjaulada olhou em torno de si, e como não era pessoa em quem prestassem atenção, encolheu-se como uma velha assassina solitária, uma criança passou correndo sem vê-la. (LISPECTOR,1982, p. 155).

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Precisaria, então, do animal que a ensinasse a odiar, mas agora já entendia que a genealogia do sentimento buscado nela residia em sua capacidade de perdoar, em sua piedade.

Sob o feitiço de um olhar tranqüilo de ódio
Eis então, a nosso ver, o terceiro tempo do conto; neste, um búfalo negro olha a mulher; e ela se sente, de longe, por ele olhada. Tal era a novidade disso, que, ao sentir a reafirmação desse olhar, os seus olhos não mais escureceram, pois foram tocados pela intensa brancura da “coisa branca” que se espalhara dentro dela, contrastando com “o corpo enegrecido de tranquila raiva”(p.155) do búfalo. Uma morte branca, com a qual o búfalo a enfeitiça, e que a conduz à veneração.
Nesse desfecho, observa-se a contraposição do claro e do escuro, do amor e do ódio, do abrir e do fechar de olhos e de seus efeitos sobre a personagem. Ela, agora, transforma-se em presa desnuda; nesse momento sua nudez não mais é ofensiva, não mais está presa a um corpo preso em um casaco marrom:

E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono profundo. Olhos pequenos e vermelhos a olhavam. Os olhos do búfalo. A mulher tonteou surpreendida, lentamente meneava a cabeça. O búfalo calmo. Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranqüilo de ódio, a olhava. Quase inocentada, meneando uma cabeça incrédula, a boca entreaberta. Inocente, curiosa, entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num suspiro de sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato. Presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo. (LISPECTOR,1982, p. 155).

Ela vê o céu e o búfalo, agora fisgada por um brilho branco, fascinada e em vertigem. Veria ela, finalmente, os seus traços se transformarem nos traços do búfalo? Seria essa uma morte que, diferentemente daquela da montanha russa, a conduziria a outro despertar - aquele que remeteria aos tácitos

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segredos que se fabricam, num piscar de olhos, entre a vida e a morte, entre o sexo e a finitude, entre o amor e ódio?
Ter-se-ia cumprido, nesse terceiro tempo, o circuito da pulsão escópica: olhar-se, olhar, ser olhado e, com ele, em homologia, e considerada a sua especificidade, haveriam se cumprido os destinos do objeto do amor. Ou implicaria, para essa mulher de casaco marrom, uma impossibilidade de se efetuar a restituição narcísica compreendida no se fazer amar? Tratar-se-ia de um renascimento ou de uma morte efetiva.
Voltemos, para concluir, à nossa indagação inicial, o que diz essa mulher da relação entre a pulsão de ver e a experiência do amor e do ódio, senão que toda pulsão guarda algo do olhar em sua estrutura mesma, o que Marco Antonio Coutinho Jorge e Paul Laurent Assoun já tiveram oportunidade de assinalar – remetendo-nos a Freud, a propósito do recalque olfativo que marca a evolução do homem em sua diferença dos demais animais. (JORGE, 1996; ASSOUN, 1995) Esse recalque do odor resulta na substituição da prevalência da pulsão olfativa pela pulsão escópica na constituição do humano, sendo a possibilidade mesma de tornar crônica a nossa sexualidade. Dela padecemos, como do amor e da morte.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA

ASSOUN, P. L. O olhar e a voz. Rio de Janeiro: Companhia de Freud Editora, 1999.

DARMON, M. Ensaios sobre a topologia lacaniana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

FERREIRA, N.P. A teoria do amor na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

____. Amor ódio & ignorância: literatura e psicanálise. Rio de Janeiro: FAPERJ, Contra Capa Livraria, Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, 2005.

FONTENELE,L.B. O feminino na literatura. In: II Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, 2006, Fortaleza. II Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental - Psicopatologia e Cultura. São Paulo: Editora e gráfica Vida e Consciência, 2006. v. 1,p.55.

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FREUD, S. Pulsões e destinos da pulsão. In. Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente. Vol.1. Rio de Janeiro: Imago, 2004.a.

____. À guisa de introdução ao Narcisismo. In. Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente. Vol.1. Rio de Janeiro: Imago, 2004.b.

JORGE, M.A.C. Os fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

LACAN, J. O Seminário, Livro 2. O eu na teoria de Freud e na Técnica Psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

____. O estádio do espelho como formador da função do eu In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

LISPECTOR, C. O Búfalo. In: Laços de Família. Rio: José Olympio, 1982.

NASIO, J-D. O olhar em Psicanálise. Rio: Jorge Zahar Editor, 1995.

Laéria Fontenele
Doutora em Sociologia/UFC, 2000
Professora Adjunta/UFC
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFC
Psicanalista, diretora do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise Seção Fortaleza
Membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste/Seção Fortaleza

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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero12/laeria.html
Numero 12 (1o semestre de 2010) - ISSN 1981-870X

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