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Hélia Correia: A instuição feminina aquém dos limites humanos
Monica Rector
University of North Carolina, EUA
prector@mindspring.com
Hélia Correia: a intuição feminina aquém dos limites humanos
Este trabalho analisa a obra de Hélia Correia, Montedemo. A obra pode ser abordada a partir de uma multiplicidade de aspectos, gerando vários significados. A mulher se liberta do sistema patriarcal e assume um comportamento condizente com o feminismo e com o pós-colonialismo em Portugal. Este comportamento nem sempre é entendido pela sociedade, e passa a ser interpretado por adjetivos como mágico, misterioso e sobrenatural.
Palavras-chave: Hélia Correia. Montedemo. Feminismo. Intertextualidade. Magia.
Hélia Correia: Female Intuition Beyond Human Limits
This paper analyzes Montedemo, by Hélia Correia. The work can be approached from different aspects, generating a variety of meanings. The woman finally reaches her independence from the patriarchal system and has a behavior according to what Feminism preaches and within the Post-Colonialism in Portugal. This behavior is not always understood by society, and it is interpreted as magic, mysterious and supernatural.
Key-words: Hélia Correia. Montedemo. Feminism. Intertextuality. Magic.
O século XX, em Portugal, significa uma mudança de valores e uma tentativa de regeneração da imagem nacional a partir da Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974. Desta sociedade emerge a voz feminina, relatando suas experiências para uma tomada de conscientização do que até então passava-se às escondidas. A presença da mulher faz-se por meio de reivindicações políticas e da escritura.
Segundo Hillary Owen, a década de 1960 foi a da fome (famine), a da necessidade da mulher-escritora contar suas experiências em forma de estórias para expôr o sistema patriarcal e a submissão da mulher às regras que lhe foram impostas. Já a década de 90 é a da festa (feast), da abundância de publicações que revelam o valor literário da mulher e do seu novo lugar nas letras e artes. No entanto, este reconhecimento nem sempre se faz presente na teoria femininista: “The absence of feminist literary theories to insure this fiction a place in women’s cultural history will mean that much of it is not identified or classified, in Portugal at least, as ‘women’s writing” (OWEN, 1992, p. 374).
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Nesta conjuntura se insere a obra de Hélia Correia, impregnada de terra e céu, de superstições atávicas, de inserções mágicas e fantásticas. Suas principais obras são da década de 80 e início da de 90. Destacam-se O separar das águas (1981), O número dos vivos (1982), Montedemo (1ª. ed. 1983), (2ª. ed. 1984), Villa Celeste (1985), A pequena morte (1986), Soma (1987), A fenda erótica (1988), A luz de Newton (1988), A casa eterna (1991), Perdição: exercício sobre Antígona (1991) e Insânia (1996).
Soma é uma obra enigmática e só pode ser desvendada com base na intertextualidade sugerida por textos históricos e bíblicos, que dão ao leitor pistas para uma melhor compreensão de sua escrita. Soma provém de Aldous Huxley, referindo-se a uma droga perigosa, mas com efeitos benéficos, existente nos hinos védicos, à qual o deus do céu, Indra, não resistiu. Entre o protagonista e a autora há em comum o silêncio significativo, ambíguo e híbrido. Antonio inicia sua jornada num mundo estruturado no qual tem nome, profissão e estado civil. Desta certeza emerge a desilusão, levando-o ao desespero. Antonio passa, então, a ser uma não-personagem. Como diz Albano Nogueira, passa a ser “um teorema, um teste, pode dizer-se até que uma proveta” (NOGUEIRA, 1988, p. 91-92). A soma destas realidades termina no imaginário mitológico, o de um Ícaro.
Em A casa eterna, o protagonista é o poeta Álvaro Roiz, cuja vida, após sua morte, é pesquisada pela narradora, em forma de flash-backs. Para chegar a uma possível biografia, a narradora faz uso de “falas vestibulares”, “falas de gente da terra que poderia ter visto, ou viu” a personagem (MAGALHÃES, 1995, p. 95). A biografia é um pretexto para mostrar como uma biografia pode ser equivocada ou deturpada a partir do “olhar dos outros”. Magalhães chama a atenção para o fato de que Hélia Correia insiste em avisar o leitor “quanto à perversidade do olhar, quanto à impossibilidade de se ver o real” (1995, p. 101).
Montedemo é um texto de extraordinária poeticidade, que contribui para o melhor entendimento da mulher, expondo o que são a sexualidade e o desejo de liberdade da mulher. Uma pequena vila rural portuguesa, em local não identificado em território português, é tomado como o centro do universo. Esta
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vila, sem nome, é um micro-universo que representa toda a ruralidade portuguesa. Aí estão inseridas personagens que vivem em dois mundos diversos, os que têm o comportamento desejado e esperado pela sociedade, e os outros, que vivem a sua individualidade e se dão conta que na vida existe um mistério que abre o ser humano para uma gama de possibilidades.
Darlene Sadlier analisa esta obra em seu ensaio “Sexuality and Repression in Hélia Correia’s Montedemo” (1989, p. 75-93), enfatizando os elementos góticos existentes na obra. Segundo Sadlier: “She [Hélia Correia] has kept vestiges of the original Gothic, but she tends to center the middle-class ‘family drama’, seldom depicting the household as nurturing and protective” (1989, p. 77). Sadlier encaixa a novela na tradição literária dos romances góticos pela maneira como a narradora dramatiza o suspense e o medo relacionado ao Montedemo. O Monte do Demônio é o símbolo do mistério, que, por sua vez, é o próprio mistério da vida: "Esteve assim Montedemo rodeado de corpos que festejam nem eles sabem o que: o respirar" (CORREIA, 1984, p. 14). Montedemo é o foco que centraliza a narrativa. A ele só podem acercar-se, sem dano, os puros de coração, como as crianças. Quanto aos adultos, estes se dividem em duas categorias: as personagens "demoníacas", como Irene e Milena, comuns na literatura gótica, e as "normais". Correia, no entanto, introduz a carnavalização bakhtianiana: o demoníaco não está presente no monte, mas na repressão e desconfiança dos habitantes da vila. Estas personagens temem o monte, não podendo pensar além do racional e do social. Num nível aquém, o monte tem um poder curador e transformador. Tenório e Dulcinha são tocados pela presença mágica do monte, que para eles passa a ser um monte de Deus. O monte divino está aberto a todas as criaturas humanas, independente de sexo, cor, educação ou nível econômico. É o Jardim de Éden; os demais habitantes se encontram no reduto da vila, que é o paraíso perdido.
Esta obra, de apenas 52 páginas, é mais uma novela do que um romance, podendo ainda ser considerada como uma lenda popular. Montedemo permite inúmeras interpretações, partindo-se de qualquer uma das isotopias escolhidas. Pela epígrafe "Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que a tua filosofia pode conceber" (Hamlet de W. Shakespeare), a autora
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nos adentra na obra, que permite uma multiplicidade de leituras, com o objetivo de que o leitor aprenda a admirar o mistério da vida. “Trata-se de uma narrativa fantástica em torno de superstições populares, fundo mágico e algo satânico que subsiste no inconsciente e estabelece uma ruptura carnavalesca com a vaga esterilidade de uma povoação infeliz” (GUEDES, 1985, p. 96). O mistério também reside nos números cabalísticos, como o sete: “Sete noites duraram estas aparições...” (CORREIA, 1984, p. 39). Sete, entre muitas outras coisas, são as pragas bíblicas de Moisés. Outro número recorrente é o três: “A explosão ou ‘ressurreição sexual’ que acontece às três horas da tarde nos lembra a passagem da Bíblia que descreve a morte de Jesus”:
Às três horas da tarde, Jesus gritou bem alto…
A terra estremeceu, e as rochas se partiram.
Os túmulos se abriram, e muitos do povo de
Deus que haviam morrido ressuscitaram e saíram dos túmulos. (A Bíblia Sagrada)
A protagonista é Milena, símbolo de todo o mal, da reversão de valores proibidos à mulher portuguesa, tais como sexualidade, a liberdade de pensamento e de comportamento. Branca, ela tem um filho negro, de algum retornado da África. Demônio ou Jesus, o enfoque dado à criança depende da sociedade e do leitor, se ele é preconceituoso ou não.
Milena pertence à esfera do monte, por isso, como Eva, antes do pecado original, não sente vergonha, despe-se para amamentar seu filho, mas "aquela exibição de um corpo feminino com a sua nudez implacável; essa criança escura, parida sem ter nome, raça ou paternidade foram um desafio que a vila, enfurecida, não pode ignorar" (CORREIA, 1984, p. 47). Milena é a própria força da natureza, vive segundo seus princípios. Os seres residentes da vila não podem mais viver só com os elementos da natureza, necessitam de elementos culturais, como casa e cidade, para sobreviverem.
Esta obra é uma apoteose às mulheres. Nela, os homens aparecem em plano secundário, como o padre, o farmacêutico e outras personagens estereotipadas. O microcosmo no qual a narrativa se desenrola representa o ciclo de vida humana, tendo os meses por referência. Em janeiro, os bichos se
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assanham na força do cio; em fevereiro, as águas formam “grandes ondas roxas” e têm “o brilho gorduroso da túnica de Cristo na procissão dos Passos” (CORREIA, 1984, p. 8); em junho, Milena “prepara-se em vão para reacções de lágrimas e cenas de romance” (1984, p. 28); em setembro, Milena não mais se aproxima das casas (são 9 meses a partir de janeiro, completando-se o ciclo da gestação); em outubro, Dulcinha se apaixona e desaparece com seu homem, mostrando que “não há limites para o que é humano… Amem-se” (1984, p. 52). O amor vence. O corpo antes interditado está agora liberto; e os costumes prescritos não mais vingam. A interdição do prazer sexual evita a perpetuação da espécie. Milena transgride em prol do amor e da liberdade. O amor é a salvação, porque é ilimitado e produz o inesperado, não o sobrenatural.
A montanha, em geral, é um símbolo de ligação entre o céu e a terra. Também simboliza a ascensão espiritual. Neste povoado, o monte, Montedemo, que dá nome à obra, encerra vários significados. Este monte assusta; é imenso, respira; é fértil e termina num bico, lembrando o seio feminino. É um marco estabelecido entre Deus e os homens, entre o bem e o mal, entre o conhecido e o desconhecido. O povoado também participa, simbolicamente, desta dicotomia: as festas do povo são pecaminosas; as festas da igreja, como a de São Jorge, não. Mas os acontecimentos se precipitam. Assim sendo, “Nunca mais houve a festa de S. Jorge. Substituem-na agora por assados numa praia deserta, mais ao norte” (CORREIA, 1984, p. 52). A festa tem um efeito catártico. A religião já não é mais a mesma, passando a haver um sincretismo religioso entre catolicismo e misticismo. Permanece o mistério do inexplicável, daquilo que está aquém dos limites humanos.
O Montedemo é rebatizado pelo frade com o nome de monte de São Jorge. São Jorge passa a ser o intermediário entre Deus e os homens. O que ocorria no monte era pecaminoso, e há esperança de que com a interveniência de São Jorge, que enfrenta o dragão, o demônio, estes pecados passem a ser supervisionados. As festas profanas, que lá se realizavam, passarão agora pelo crivo da Igreja, portanto, serão festas santas.
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O Montedemo se situa entre a cidade e a praia. Deus e o Diabo se põem entre o humano e o animal. Milena é animalizada, uma “égua brava”. “Os olhos fulgurantes, espantosamente belos, negros e luminosos como águas feiticeiras” (CORREIA, 1984, p. 24). Portanto, ela é animal e feiticeira. A festa é o elemento intermediário que separa o pecado - o prazer do povo - da Igreja, por força da interdição deste prazer. Milena, num ato de carnavalização, desrespeita todas as dicotomias e hierarquias; ela é mãe solteira, tem o corpo liberto de preconceitos; sua nudez é natural, e a criança de pele escura que concebe é apenas fruto do amor.
Entre o monte e a vila surge Irene, louca para a vila, mas ela é, na realidade, uma personagem profética. Era considerada louca porque “lançava a sua gargalhada, de costas para o mar” (CORREIA, 1984, p. 23). O riso sempre foi proibido pela sociedade, por ser um espaço de expressão espontânea e, portanto, incontrolável. Pela sua própria condição, Irene e Milena são marginalizadas. A Milena são atribuídos poderes mágicos e maléficos, por não ser entendida em sua alienação. Como João Batista, Irene prepara o caminho para Jesus. Ela prepara o nascimento do filho negro de Milena, que nasce num local equivalente a uma manjedoura. O que opera o milagre do nascimento é o amor.
Já Ercília Silveira é a imagem da mulher-repressora-da-mulher e, portanto, mantenedora do lugar-tenente da moral da sociedade. Só se sente segura e consegue (sobre) viver encerrada em sua casa. Por outro lado, Dulcinha é a esperança de transformação da humanidade. Passa do plano social para o natural, indo de um extremo a outro, transformada pelo amor de Tenório. Nesta obra, o amor é uma força transformadora das personagens. Quando Dulcinha o sente, pela primeira vez, sente-se temerosa:
Dulcinha, que aquecia um caldo de cenoura, sentiu-se enrubescer como uma adolescente.
- Agora já não há remédio - disse.
- Não é doença - observou Milena. - Posso jurar que nunca se sentiram tão bem. Para que falam de remédios? Amem-se. (CORREIA, 1984, p. 41)
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O amor também está presente na mensagem no final da obra. O que é mistério é a beleza da vida permeada pelo sentimento amoroso: "Não há limites para o que é humano.
- Amem-se - diz Dulcinha. - Nunca se sabe o fim" (CORREIA, 1984, p. 52). O amor é um sentimento que resulta em atos e, para explicá-lo, não fazem falta palavras. O amor não tem cor, nem raça, nem razão, apenas existe.
Na maioria das obras de Hélia Correia, a intertextualidade ocupa um lugar de destaque. Montedemo pode ser uma recriação do mito de Gilgamesh, no qual há uma montanha habitada pelos deuses (WALLACE, 1985, pp. 65-89). A montanha também faz parte da Ilíada de Homero. De resto, é em plena natureza que Zeus e Hera fazem amor. Na Bíblia, aparecem vários montes e montanhas, dentro da natureza, com valor simbólico. O monte é o Jardim de Éden antes do pecado original. O monte também nos faz lembrar de Moisés ao receber os mandamentos. Outro paralelo pode ser visto na perseguição que Milena sofre com seu filho, que se assemelha às crianças perseguidas no Velho Testamento e a Jesus no Novo Testamento. A própria concepção do filho de Milena é um mistério. Sabe-se que é um menino sem pai, como o menino Jesus que não tem um pai terreno que o concebeu.
A partir de uma leitura feminista, podemos dizer que uma das mensagens do livro é: o corpo da mulher é interdito e os costumes são prescritos. Mas o fantástico desfaz esta ordem: a serpente aparece, é a própria tentação de Eva. O milagre ocorre. O chão se abre ("e o chão abanou duas, três vezes, e viraram-se as gentes para o mar que se compadeceu". CORREIA, 1984, p. 49), como o mar vermelho se abriu para Moisés. Mais uma vez, temos a presença da Bíblia, aqui com relação à natureza. Há uma semelhança com o que ocorre na natureza na morte de Cristo com o nascimento da criança: “Ao meio-dia começou a escurecer, e toda a terra ficou três horas na escuridão. (...) Aí Jesus deu outra vez um grito forte e morreu. Então a cortina do Templo se rasgou em dois pedaços, de cima até embaixo. A terra tremeu, e as rochas se partiram" (Marcos 15.33.41; Lucas 23.44.49; João 19.28.30).
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Em Montedemo, Correia formula uma crítica política e sociológica à sociedade portuguesa. Além da repressão à mulher, há racismo e preconceito com relação aos retornados. Todos estes “nãos” são uma construção da sociedade que se precaveu contra o medo do desconhecido, do inexplicável. Mas a sociedade se perde em sua certeza: “Tinham os habitantes atingido aquele estado em que a insegurança inventa, do seu nada, recursos bestiais de força e crueldade” (CORREIA, 1984, p. 47). O próprio Monte só é do Diabo para aqueles que têm medo de se libertarem e de se oferecerem ao desconhecido. Montedemo é o Jardim de Deus, onde predomina a criação e fertilidade; a vila é o lugar onde vivem os homens expulsos desse jardim. Montedemo é, além de tudo, uma obra filosófica, que reflete a condição humana e aquilo que o homem dela faz. Tudo acontece ao redor do monte; é ele que dá sentido aos mistérios cotidianos: “Às vezes, quando os gatos se assanham sem razão e as crianças inclinam a cabeça escutando o som de algum deslumbramento, as pessoas murmuram: - É o Monte” (1984, p. 52). Só as crianças, que são puras e não têm medo, sobem as encostas do Monte, pois os adultos dele se afastam. Milena é nele vista porque transcendeu o mundo dos adultos. Do ponto de vista da religião católica, transparece a interdição do prazer, permite-se apenas o ato sexual dentro do casamento, para a perpetuação da espécie. Milena transgride todos os limites.
Quanto à estrutura, podemos dizer que, como em Calendário privado de Fernanda Botelho, a narrativa de Montedemo está estruturada em torno do tempo: em janeiro, os bichos estão assanhados, é a força do cio; em fevereiro temos as águas "com grandes ondas roxas que pareciam imóveis e mal faziam espuma ao tocar as areias" (CORREIA, 1984, p. 8); junho serve de pano de fundo a um relato (1984, p. 28); setembro, ou seja, nove meses a partir de janeiro, Milena se prepara para dar a luz e não se aproxima mais das casas da vila.
Correia também celebra a escrita através do silêncio: "Porque aquilo que as palavras não cobriram, mesmo que exista, não se reproduz" (CORREIA, 1984, p. 15). O silêncio está na pretensa surdez da tia Ercilia: "Ficou então dotada de surdez selectiva, de modo que os ouvidos decifravam apenas as falas optimistas e qualquer má notícia ou mero incômodo esbarravam numa
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incompreensão angelical" (1984, p. 28). A diferença está no fato da tia Ercília não ter nenhuma receptividade ao que a ela não convém; Milena, mesmo descartada da sociedade, mantém a receptividade.
Montedemo ainda permite uma análise dentro da linha estruturalista. Há várias dicotomias com elementos intermediários ou mediadores da tensão:
cidade – Montedemo - praia
humano - Montedemo (Deus/Demonio// São Jorge, santo pagão-cristão) - animal
povo/prazer (pecado) - festa - igreja/interdição do prazer (redenção) palavra - silêncio (surdez)
A festa de São Jorge é o marco que quebra as hierarquias: de um lado temos o prazer, do outro o não-prazer e o dinheiro, no meio está o amor como valor supremo e Milena como seu representante. Ela é aquela que quebrou todas as hierarquias quer pela nudez, quer pelo filho escuro, quer por ser mãe solteira, quer pela liberdade de expressão corporal. Mas ela vai além. A festa é um período fixo no tempo e no espaço. Ela subverte este aspecto, pois a carnavalização continua mesmo depois da transformação, além do tempo e do espaço.
De Milena, só conhecemos o antes e o depois. O processo de transformação da personagem propriamente dito é uma lacuna para o leitor preencher. Só sabemos que o silêncio de Milena é quebrado quando volta da festa da montanha. Volta grávida e mostra-se em toda sua pujança. O corpo dela começa a falar.
A cor que caracteriza Milena é o vermelho. Vermelha é a cor da paixão, do ato sexual, do sangue da concepção, da natureza (das ondas e da terra). Ela não é branca como a Virgem Maria, porque é filha da terra, da terra vermelha, e seu filho é a semente desta terra. Terra e corpo se fundem num todo, cujo silêncio fala por si só.
No fim, a mensagem transmitida não é a da repressão e da falta de liberdade; pelo contrário, esta obra é um hino de amor e de glorificação à vida, entendida em sua espontaneidade, perto da natureza e longe da cultura. Enquanto o povo da vila fala, o monte murmura e sussurra; as crianças e
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Milena entendem o seu som, em silêncio. Silencia quem sabe e não precisa de palavras para entender. O silêncio de Hélia Correia é símbolo da fala silenciada. O sobrenatural é explicado no silêncio. A autora/narradora não mais se desespera.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica, 1988.
BOTELHO, Fernanda. Calendário privado. Lisboa: Bertrand, 1958.
CORREIA, Hélia. Montedemo. 2ª. Ed. Lisboa: Ulmeiro, 1984.
____. Soma. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1987.
____. A casa eterna. Publicações Dom Quixote: Círculo de Leitores, 1991
GUEDES, Maria Estela. Montedemo. Colóquio. Letras, Lisboa, v. 87, p. 96, 1985
MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O sexo dos textos. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.
NOGUEIRA, Albano. Soma. Colóquio. Letras, Lisboa, v. 103, p. 91-92, 1988).
OWEN, Hillary. Feast or Faminism? Women, Revolution and Class in Works of Hélia Correia and Olga Gonçalves. Forum for Modern Language Studies, Oxford, v. 28, n.4, p. 363-375, 1992.
SADLIER, Darlene. The Question of How: Women Writers and New Portuguese Literature. New York: Greenwood Press, 1989.
WALLACE, Howard N. The Eden Narrative. Atlanta: Scholars Press, 1985.
Monica Paula Rector
Mônica Rector
Doutora em Letras (Spanish )/ USP, 1970
Professor Titular University of North Carolina
Professora do Programa de Pós-Graduação (Línguas Românicas)/University of North Carolina
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero12/monica.html
Número 12 (1º semestre de 2010) - ISSN 1981-870X