Resenhas
Lendas amazônicas sobrevivem à tecnologização da palavra em: Órfãos do Eldorado
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.
Regina da Costa da Silveira
UniRitter/Porto Alegre/RS
regina.flausina@gmail.com
Para uma proposta de leitura de Órfãos do Eldorado, recuperar o mito do Eldorado torna-se imperioso. Escrito em 2008, o livro de Milton Hatoum anuncia, a partir de seu título metafórico, a queda de um império. Do encantamento que o mito sugere em seu título, passa-se ao poema de Konstantinos Kaváfis, “A cidade”, sabiamente escolhido pelo autor, onde se lê: Só vejo minha vida em negras ruínas/ Onde passei tantos anos, e os destruí e desperdicei. Nesses versos, fica clara a intertextualidade com a história que vai ser narrada sobre Arminto Cordovil. A história desse protagonista é a de descendentes dos barões da borracha que, como a cidade dourada de Manoa, agora Manaus, tiveram seus impérios econômicos lapidados por estrangeiros. Desses fatos, o narrador deliberadamente dá conta ao leitor: “Um dia vou concorrer com a Booth Line e o Lloyd Brasileiro, dizia meu pai. Vou transportar borracha e castanha para o Havre, Liverpool e Nova York.” (HATOUM, 2008, p. 15).
Atravessado pelas lendas, muitas delas também encenadas na literatura de Macunaíma, pelo paulista Mario de Andrade, e em Cobra Norato, pelo gaúcho Raul Bopp, o romance de Hatoum reencena-as em seus detalhes, com a garantia de que, no imaginário amazonense, mitos e lendas encontram-se enraizados de tal sorte que a industrialização, a dizimação da população nativa, ou mesmo a tecnologização da palavra não conseguem ofuscá-los: “Lendas que eu e Florita ouvíamos dos avós das crianças da Aldeia. Falavam em língua geral, e depois Florita repetia as histórias em casa, nas noites de solidão da infância.”(p. 13).
Na história de Arminto Cordovil, às mulheres cabem um perfil sublime e um destino cruel. O romance inicia com a voz de uma das tapuias da cidade. Palavras e gestos da mulher que apontava para o rio chamaram a atenção de muita gente e fizeram com que Arminto, menino em seus nove anos, fugisse da casa de seu
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professor e fosse à beira do Amazonas, para ver a tapuia desaparecer, precipitando-se para se afogar no fundo do rio iluminado. Como nos mitos que envolvem a sereia, o romance inicia, assim, com a atração do protagonista pela voz feminina, porém, uma voz de mulher em desespero. “Mas a história de uma mulher não é a história de um homem?”, pergunta-se o narrador à página 13 do romance. Órfão de mãe, Arminto passa a ouvir as histórias contadas por Florita. E é deitado na rede com Florita que na puberdade ele será surpreendido e severamente repreendido por seu pai: “Ainda era menino quando Amando me arrastou duas vezes para a festa. [...] só me encontraram de manhã cedo, deitado com Florita na rede do quarto dela.” (p. 43).
O protagonista revolta-se com o fato de as meninas serem violentadas, defloradas às vezes por seus próprios pais. Mas a mulher por quem o jovem vive fascinado é a órfã Dinaura, espécie de musa, amor intenso, silencioso, e que se tornará inatingível: “Dinaura nunca mais ia voltar.”(p. 66). O personagem Estiliano, amigo da família, é quem olha por Arminto, quando este perde todo o patrimônio herdado de Amando. Para agravar o sofrimento de Arminto, contrariando um final feliz para o romance de Hatoum, Estiliano confessa-lhe que Dinaura era sua irmã pela parte de Amando, e que regressara à Ilha . “Ela está viva? Onde fica a ilha?” , enigma que se desfaz ao final, com a resposta de Estiliano, mediante um mapa e duas palavras: Manaus e Eldorado. “Já foram sinônimos, disse ele. Os colonizadores confundiam Manaus ou Manoa com o Eldorado. Buscavam o ouro do Novo Mundo numa cidade submersa chamada Manoa. Essa era a verdadeira cidade encantada.” (p. 99).
À procura de Dinaura, numa velha embarcação rumo à Ilha, Arminto lembra em muito a viagem empreendida por Macunaíma, herói de nossa gente, em busca do talismã sagrado. Uma intertextualidade necessária porque evidencia a consolidação das lendas, a representação dos mitos e das crenças amazônicas na literatura, com a criação de personagens, cujos percursos põem a nu identidades de sujeitos que atravessam os mesmos caminhos, navegam pelos mesmos rios, em épocas social e economicamente diferentes. Macunaíma não conseguiu mais compreender o silêncio às margens do rio Uraricoera: sem os tesouros e com a perda definitiva da muiraquitã, o herói sem nenhum caráter não tinha coragem para uma organização. Não havia
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ninguém lá, o lugar em meio à mata virara tapera, deu tangolomango na tribo dos tapanhumas.
Para Arminto, a caminhada em meio à floresta foi penosa: “Nenhuma voz. Nenhuma criança, que a gente sempre vê nos povoados mais isolados do Amazonas. Os sons dos pássaros só aumentavam o silêncio. [...] Aquele lugar tão bonito, o Eldorado, era habitado pela solidão” (p. 102). Quanto ao herói de Mario de Andrade, ele não mais encontra a consciência deixada antes da viagem na Ilha de Marapatá, metáfora da ilha dos bem-aventurados. Arminto, por sua vez, andava em busca de um povoado na ilha do Eldorado, é quando tem notícias da existência de uma vila de leprosos: “A doença que Dinaura escondia? Imaginei a beleza destruída, pensei no silêncio dos nossos encontros.” (p. 101).
Tal é o final da narrativa em Órfãos do Eldorado: “Viajei numa embarcação velha: um vapor do Mississipi, o último que navegava na Amazônia. Pendurei no pescoço o olho de boto que ganhei de Florita e enfiei no bolso da calça a fotografia de minha mãe, Angelina.” (p. 100). Como se observa, não faltou a Arminto o amuleto que, em Macunaíma, é a muiraquitã, presente de Ci, sua amada, cuja perda o impulsionou a viajar pelo Brasil. Diante da mercadoria, o herói de Mario vê-se “contaminado” pelo progresso; não resiste à tentação do consumo; troca o cacau por moeda e adquire o revólver Smith Wesson e o relógio Patek. Nas palavras do próprio Arminto, a declaração de que resiste ao consumismo: “No cais, fui cercado por vendedores de objetos deixados pelos americanos durante a Segunda Guerra. Não comprei nada”. Ocorre que o Cordovil do passado não mais existia: “Por vingança e por prazer pueril eu tinha jogado fora uma fortuna.” (p. 101).
Mas a semelhança entre os temas desenvolvidos no romance e na rapsódia não ocorre por conta apenas dos heróis, dos amuletos e da representação das viagens. Nos dois livros, existe a presença de um narrador e de um interlocutor, e o narrador é um contador de causos. Nem falta a presença de uma ave ao final dos dois percursos: aave macucauá lembrao papagaio, que em Macunaíma reproduz as histórias do herói para o homem. Ao final da história de Arminto Cordovil, intrigante torna-se a pergunta do narrador velho a seu interlocutor: “Pensas que passaste horas nesta tapera ouvindo lendas? (p. 103).
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Com a leitura da obra de Milton Hatoum, pode-se constatar a formulação benjaminiana, segundo a qual, a experiência que passa de pessoa a pessoa é fonte a que recorrem os narradores. Ao borrar as fronteiras entre realidade e ficção, entre a biografia do autor e a narrativa de seu herói, a história oficial e o mito se interpenetram instigando o leitor a buscar informações para a construção do conhecimento e para aprender que as melhores narrativas escritas são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.
Regina da Costa da Silveira
Doutora em Letras (Literatura Brasileira)/UFRGS, 1997
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras/UniRitter
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero12/regina.html
Número 12 (1º semestre de 2010) - ISSN 1981-870X