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A captura pelo olhar
Iracy De Souza
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
iracysouza@yahoo.com.br
"O essencial é invisível para os olhos, só se vê bem com o coração."
Antóine Saint-Exupéry
A captura pelo olhar
A partir do conto “José Matias” de Eça de Queirós, procuramos fazer a interpretação do que é dito no nível da enunciação, buscando perceber como os afetos e as pulsões são tratadas no referido conto e como o escritor constrói a dinâmica de um indivíduo singular. Buscamos também delimitar o que é estrutura subjetiva e, portanto, invariante, e o que se apresenta como resíduo contextual, ou seja, pura contingência no discurso das personagens. O campo teórico escolhido para nortear a nossa leitura é a psicanálise.
Palavras – chave: Eça de Queirós, Desejo Dever. Dissimulações. Decifração.
The Capture for the look
From the story “Jose Matias” of Eça de Queirós we look for to make the interpretation of what said in the level of the articulation, searching to perceive as the affection and the pulsões they are treated in the related story and as the writer constructs the dynamics of a singular individual, also to delimit what is subjective structure e, therefore is invariant, and what it is presented as contextual residue, that is, pure contingency in the speech of the personages. The theoretical field chosen to guide our reading is the psychoanalysis.
Keywords: Desire. To have. Dissimulations. Decipher.
Este artigo limita-se a ler e refletir sobre o que não é dito no nível do enunciado, mas no nível da enunciação, no conto José Matias da obra do escritor português Eça de Queirós, buscando perceber como os afetos e as pulsões são tratadas no referido conto e como o escritor constrói a dinâmica de um indivíduo singular. Ainda, procuramos delimitar o que é estrutura subjetiva e, portanto, invariante, e o que se apresenta como resíduo contextual, ou seja, pura contingência no discurso das personagens. O caminho que pretendemos construir, jamais será original, mas um caminho recorrido, um diálogo articulado, por sua vez, com questões e saberes diversos. O conto com toda sua intensidade poética e firmeza emotiva é o fruto de uma pureza estilística e formal que caracteriza o escritor.
Sempre pensamos a literatura como diferença e conhecimento, que só revela quando desvela as potencialidades expressivas do homem. A obra literária busca um ponto de convergência com o inconsciente do leitor, pois é uma produção do inconsciente tal qual o sonho e pode ser analisado, decifrado, decomposto, de forma a revelar alguma coisa do processo pelo qual ele fora produzido. O leitor, por sua vez, irá encontrar a realização pessoal dos
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seus desejos mais íntimos no texto lido, construído pelo imaginário do escritor. Neste sentido, a literatura é uma manifestação do desejo de satisfação, está submetida à necessidade de criar prazer intelectual e estético, bem como certos efeitos emocionais, podendo ainda ser percebida como uma fantasia de desejos.
Na busca por analisar um texto literário, compreender o que seja poética estrutural e distinguir uma tendência é condição sine qua non. Perceber, então, que podemos escolher entre duas atitudes fundamentais: uma que vê no texto literário um objeto último e único de conhecimento, interpretação; a outra vê em cada obra, em particular, uma manifestação de uma estrutura abstrata. No interior dessa atitude, podem-se distinguir diversas variedades, à primeira vista assaz apartadas entre si, estudos psicológicos ou psicanalíticos, sociológicos ou etnológicos, vinculados à filosofia ou à história. No entanto, as duas opções não são incompatíveis; pode-se mesmo dizer que elas se colocam entre si numa relação de complementaridade necessária; todavia, conforme se dê ênfase a uma ou a outra, pode-se claramente distinguir as duas tendências.
O campo teórico escolhido para nortear a nossa leitura é a psicanálise, na vertente de seu criador Sigmund Freud, e do projeto de retorno à obra freudiana empreendido por Jacques Lacan com a finalidade de descolar o conto das abordagens críticas que, de certo modo, ignoram essa dimensão e se prendem a dimensão moralizante e fatalista.
A generosidade com que Eça de Queirós descreve o comportamento de José Matias nos permite conhecê-lo minuciosamente, sem a mesma, nosso trabalho estaria condenado ao mesmo fracasso do trabalho de análise feito pelo narrador- filósofo, amigo de José Matias. Ainda é cabível uma colocação, visto que possa surgir uma questão: como é possível analisar uma personagem que não profere uma única palavra no decorrer do conto, um mudo, pois, tudo que conhecemos de sua vida nos é contado via narrador onisciente e graças à riqueza de detalhes e do recorte preciso das situações vividas pela personagem, que o narrador memorizou e nos conta durante o cortejo fúnebre, é que podemos perceber certas significações e formalizar algumas hipóteses. Em nossa leitura fica evidente que não temos a intenção de tornar consciente o
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inconsciente de nosso José Matias, mudo e ainda por cima defunto. O que pretendemos é abstrair no método psicanalítico o modo peculiar de trabalhar com os elementos de um relato. Ainda, faremos outra colocação, pois, é comum ouvir que “a psicanálise só pode ser praticada no enquadramento analítico”. Lembramos e talvez não fosse preciso, mas o faremos, na obra de Freud existem textos fundamentais para a compreensão do que é psicanálise, e que não se referem diretamente à famosa “clínica”, embora se apóiem constantemente nos “resultados do trabalho analítico”. Não nos propomos a resultados terapêuticos que de todo modo seria inútil a um defunto, também não é nosso propósito avaliar os possíveis complexos de nosso Eça. O conto de José Matias nos inspira tal interpretação, pela precisão e refinamento com que o autor recapitula a infeliz biografia da personagem.
O título cumpre a função de uma síntese antecipadora. Eça trabalha com uma profundidade vertical, sem digressões, uma luta constante com o tempo e o espaço, para oferecer uma escrita depurada, uma síntese significativa, capaz de romper com seus próprios limites. O conto de Eça exige do leitor condições especiais de leituras e uma grande preparação: concentração, memória.
Mas realmente, meu caro amigo, o José Matias morreu há seis anos, no seu puro brilho. Esse, que aí levamos, meio decomposto, dentro de tábuas agaloadas de amarelo, é um resto de bêbado sem história e sem nome, (...)(QUEIRÓS, 2006, p. 7).
O conto José Matias gira em torno de um desenlace sendo resultado de uma complicada e precisa organização técnica: o conjunto do relato de um enterro tem a intenção de criar um desfecho emocionante. Inicia-se em uma “Linda tarde”. O narrador onisciente, que se denomina um filósofo e comentador de Hegel, autor de um “Ensaio sobre os fenômenos afetivos”, convida- nos, leitores, a acompanhar o cortejo fúnebre de seu amigo José Matias: “Por que não acompanha o meu amigo este moço interessante ao Cemitério dos Prazeres?” (QUEIRÓS, 2006, p. 7). O narrador enquanto caminha conta a um amigo o que teria sido a vida de José Matias através do que chamamos em psicanálise de “associações livres”; lampejos em meio a um
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relato, mais ou menos ordenado, com idas e vinda e alguns comentários paralelos.
É importante notarmos que a personagem, que acompanha o narrador, também não tem voz. Logo o jogo de diálogos é presumido e somente conhecemos os diálogos das personagens, no decorrer do conto, a partir do próprio narrador, portanto um falso diálogo. O que nos leva a crer que a palavra: “amigo”, se dirige a nós, leitores. Neste sentido, esse texto, como muitos outros, nos remete a coisas que gostaríamos de dizer ou de esquecer. Enfim, desejos adormecidos e inconfessados que marcam o limite trágico da existência do homem no mundo.
Tudo que vamos saber sobre a nossa personagem será contado no trajeto do cortejo ao Cemitério dos Prazeres. Nós, leitores, seremos guiados pelo narrador, que nos contará a história de um jovem sobre cuja história pulsional podemos levantar algumas conjecturas convergentes: moço interessante, “um rapaz airoso, louro como uma espiga, com um bigode crespo de paladino sobre uma boca indecisa de contemplativo, destro cavaleiro, duma elegância sóbria e fina” e “um grande espiritualista”. Além de narrar, o narrador apresenta suas hipóteses sobre os motivos de tão desarrazoado comportamento. Evidentemente, nossa interpretação irá de encontro à análise realizado por nosso narrador, que contava com um instrumento pouco preciso, a filosofia, para realizar seu intento: investigar a dinâmica de um indivíduo singular, ignorante das descobertas da psicanálise, que surge trinta anos depois, a psicanálise. Conta-nos que embora José Matias tenha herdado terras e rendas de sua mãe, “delicada e linda senhora” e de um tio General, o Visconde de Garmilde, num montante de 50 contos, morreu pobre e bêbado, em plena decadência. Tal decadência inicia-se com a morte de seus pais e sua mudança para a residência desse tio. A respeito do pai de José Matias tudo que sabemos é que se chamava Albuquerque. Sua mãe morreu após o marido, não teve outros filhos, mulher de extrema beleza e delicadeza impar. O tio Garmilde é descrito com uma riqueza de detalhes sobre sua personalidade, modo de vestir e se portar, sempre com chicote debaixo do braço com a ponta a tremer, impecável nos traje, elegante no andar e um temperamento rígido beirando ao excesso. Devido a tantos e tão minuciosos detalhes
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compreendemos que seu tio Garmilde é o forte modelo identificatório de José Matias. Hipotetizamos, então, que nossa personagem possui um caráter com traços obsessivos devido à repressão de seus impulsos e seria uma versão atenuada da personalidade de Garmilde.
A casa vizinha de seu tio pertencia ao Conselheiro Matos Miranda e possuía um belo jardim arejado, se chamava a casa da “Parreira”, lá vivia a Divina Elisa Miranda, com sua sublime beleza romântica de Lisboa, nos fins da Regeneração. O Conselheiro Matos Miranda, seu marido, era diabético e mais velho que a esposa trinta anos. José Matias se apaixonou ao ver Elisa Miranda pela primeira vez. Durante dez longos anos: “E este enlevo, meu amigo, durou dez anos, assim, esplêndido, puro, distante e imaterial!” (QUEIRÓS, 2006, p.17). Nesses dez longos anos de felicidade serena o casal trocava correspondências, encontrava-se na casa de uma amiga comum, a tia avó de José Matias, para jantar e conversar. Sem nunca trocarem um beijo, um afago. José Matias, perdidamente apaixonado, não fez outra coisa senão ficar na janela, contemplando sua amada, a divina Elisa Miranda:
E, meu caro amigo, acredite! Invejei aquele homem à janela, imóvel, hirto na sua adoração sublime, com os olhos, e a alma, e todo o ser cravados no terraço, na branca mulher calçando as luvas claras, e tão indiferentes ao Mundo como se o Mundo fosse apenas o ladrilho que ela pisava e cobria com os pés! (QUEIRÓS, 2006, p.16).
José Matias não visava à posse de sua amada. Elisa, como imagem da mulher ideal, não precisa corresponder ao seu amor. Basta consentir em ser amada. E ser amada, aqui, significa ser contemplada. Observamos aqui o que Freud denomina de mecanismo de idealização:
A idealização é possível tanto na esfera da libido do ego quanto na da libido objetal. Por exemplo, a supervalorização sexual de um objeto é uma idealização do mesmo. Na medida em que a sublimação descreve algo que tem que ver com o instinto, e a idealização, algo que tem que ver com o objeto, os dois conceitos devem ser distinguidos um do outro. (FREUD, 1914).
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Engano do narrador supor e conduzir o leitor a supor igualmente, que fosse desejo de José Matias casar-se com a Divina Elisa. Com a morte do Conselheiro, Matias abala-se para o Porto. Mas os meses de luto passaram e José Matias não se arredou do Porto. Consumindo-se em uma angustiante dúvida: - “Que hei –de fazer? Que hei de fazer?” (QUEIRÓS, 2006, p.26). Percebemos, então, que todo ideal é enganador, José Matias diz que só quer ser amado por sua amada.
O narrador, influenciado por ideais deterministas, confunde as estruturas subjetivas das personagens, portanto o que é invariante, com o que é resíduo contextual, pura contingência no discurso de José Matias e da Divina Elisa:
O amor espiritualiza o homem – e materializa a mulher. Essa espiritualização era fácil ao José Matias, que (sem nós desconfiarmos) nascera desvairadamente espiritualista: mas a humana Elisa encontrou também um gozo delicado nessa ideal adoração de monge, que nem ousa roçar, com os dedos trêmulos e embrulhados no rosário, a túnica da Virgem sublimada. Ele, sim! Gozou nesse amor transcendentemente desmaterializado em encanto sobre – humano.(QUEIRÓS, 2006, p.18).
Elisa é uma mulher sensual que aceita a posição de objeto causa do desejo. Assim o narrador a descreve: “(...) Alta, esbelta, ondulosa, digna da comparação bíblica da palmeira ao vento. Cabelos negros, lustrosos e ricos, em bandos ondeados. Uma carnação de camélia muito fresca. Olhos negros, líquidos, quebrados, tristes, de longas pestanas...” (QUEIRÓS, 2006, p.13). Elisa representa para José Matias a mulher ideal e, portanto, perfeita. Contemplar a mulher amada é, para ele, viver a experiência do amor.
A figura de José Matias, hirto, diante da janela, imóvel, em sua adoração, com os olhos e a alma cravados naquela mulher branca e bela, nos remete, imediatamente, ao mecanismo de idealização, citado acima, o que, por sua vez, nos remete à diferença entre ver e olhar. Ver é entendido como uma ação puramente fisiológica. Olhar implica algo mais, algo que coloca em cena a pulsão, ou seja, o sexual. Um dos elementos da pulsão é a força constante.
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Lacan, ao contrário de Freud, que acreditava que a pulsão se situava no limite entre o psíquico e o somático, considera a pulsão efeito da intervenção do Outro, ou seja, do simbólico. Denominamos melhor o estímulo pulsional como “carência”, o que suprime essa carência é a “satisfação”. Ela somente pode ser conseguida através de uma modificação propositada (adequada) da fonte interna do estímulo. Nadiá ainda acrescenta: “As pulsões se articulam com o sujeito e com o outro para constituir as várias modalidades de comparecimento do objeto pulsional (objeto a)” (FERREIRA, 2005, p. 54).
Freud nos esclarece que não devemos igualar pulsão e estímulo psíquico:
Como se compara a “pulsão” ao “estímulo”? Nada nos impede de subsumir o conceito de pulsão sob o de estímulo: a pulsão seria um estímulo para o psíquico. Mas somos imediatamente avisados para não igualar pulsão e estímulo psíquico. Há, evidentemente, outros estímulos para o psíquico além dos pulsionais, aqueles que se comportam bem mais semelhantemente aos estímulos fisiológicos. Se, por exemplo, uma luz forte incide sobre o olho, isso não é um estímulo pulsional; mas seria, se a secura da garganta é perceptível ou a acidez do estômago. (FREUD, 1999, p. 209-32).
Quando Lacan acrescenta à pulsão escópica as pulsões freudianas, ele privilegia o olhar como objeto da pulsão: “Do decréscimo da importância da função do olfato ao incremento da função da visão, o que se produz, com efeito, é a passagem do funcionamento instintivo ao funcionamento pulsional, característica mais marcante da sexualidade humana.” (JORGE, 2002, p.40).
O olhar, como objeto pulsional, coloca o olho como zona erógena. Nesse sentido, a psicanálise descobre o gozo pulsional do olhar. Portanto, o olhar, como zona erógena, não é um atributo do sujeito, mas efeito da intervenção do desejo da mãe, como primeiro representante do Outro. O sujeito, como aquele que é afetado pelo olhar, se desloca da posição de sujeito para a de objeto. “O objeto da pulsão escopofílica é o olhar sob a forma de ausência. Historicamente, essa pulsão antecede as demais e se relaciona diretamente
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com o eu real submetido às leis do princípio de prazer, entrando em cena é ser visto pelo Outro.” (FERREIRA, 2005, p. 54).
A finalidadede toda pulsão é a satisfação (gozo para Lacan). Não existe o objeto específico da pulsão, qualquer objeto pode servir a finalidade da pulsão. É nesse sentido que Freud afirma que o objeto da pulsão é parcial. E Lacan, nos rastros de Freud, nomeia o objeto da pulsão de objeto a. Uma pulsão, depois de constituída, permanece o resto da vida.
Para Lacan, na pulsão escópica, o sujeito só pode se apreender no olhar do Outro como ausência: o olhar é um objeto perdido que só pode ser reencontrado “na conflagração da vergonha pela introdução do outro”. (LACAN, 1993, p.72).
No texto, As pulsões e seus destinos, Freud enumera as etapas da constituição do olhar:
a) Olhar, como atividade dirigida a um objeto estranho (Objekt).
b) Abandono do objeto, reversão da pulsão de olhar para uma parte do próprio corpo; inversão em passividade e instauração de um novo alvo: ser olhado.
c) Introdução de um novo sujeito (ein neues Subjekt) a quem o sujeito se mostra para ser olhado por ele.
Elisa, quando apreende o olhar de José Matias, o que está em jogo é o se fazer ver: o gozo a serviço do Outro. É no olhar do Outro que o sujeito reencontra seu próprio olhar sob a forma de objeto perdido. Lacan diz: “O que se trata de discernir, pelas vias do caminho que ele nos indica, é a preexistência de um olhar — eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte.” (LACAN, 1993, p. 73).
José Matias está preso a um olhar circular: ele se vê no que é olhado. A pulsão escópica nada mais é que uma relação circular entre o sujeito e Outro: Se fazer ver “se indica por uma flecha que verdadeiramente retorna para o sujeito.(...) O olhar e o olhar, esta é para nós a esquize na qual se manifesta a pulsão ao nível do campo escópico”.(LACAN 1993, p. 74, 184.)
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Nessa relação entre sujeito e Outro, os conceitos de dentro e de fora desaparecem. Aqui o que entra em cena é a expulsão do simbólico: “Não sou simplesmente esse ser puntiforme que se refere ao ponto geometral, onde é apreendida a perspectiva. Sem dúvida, no fundo do meu olho, o quadro se pinta. O quadro, certamente, está em meu olho. Mas eu, eu estou no quadro.” (LACAN 1993, p. 74, 184.)
Chamamos a atenção, aqui, para o ideal-do-eu, como ponto em que o sujeito se vê como amável, e para o superego, como ponto em que o sujeito se sente vigiado e, justamente por isto, surge a necessidade inconsciente de se punir. O olhar do Outro como pura ausência se articula diretamente com a angústia de castação, pois a angústia nasce nesse ponto em que o sujeito experimenta a sensação do desejo do Outro como desejo no qual só pode se ver como objeto. (FERREIRA, 2007, p. 55.)
Nós, leitores, ficamos sabendo que os meses de luto se passaram. O desejo dos amigos próximos (lugar tenente do desejo do Outro) é ver o casal unido e feliz. Porém, em um domingo, eis que nosso querido narrador filósofo avista a divina Elisa, com plumas roxas no chapéu. Nessa mesma semana, lê, em uma pequena nota, no Diário Ilustrado, a notícia do segundo casamento de Elisa. “Com quem, meu amigo? – Com o conhecido proprietário, o Sr. Francisco Torres Nogueira!... (QUEIRÓS, 2006, .13).
José Matias se consome com o segundo casamento de Elisa e com o surgimento de um amante. Este casamento tem duração relâmpago, o segundo marido da sua amada morre, e esta regressa a Lisboa, tendo um amante, o Apontador de Obras.
José Matias se consome pela angústia e pela derrota. Mas ele permanece devotamente crente de que Elisa, na profundidade de sua alma, onde não entram as imposições das conveniências, nem das decisões da moral, o amava. José Matias acredita que deveria ser amado por Elisa pelo que ele imagina ser. E ele continua dedicando sua vida a confirmação dessa imagem. Sua fantasia é que ele deve atender sempre a demanda de Elisa. Assim ele se coloca, tal qual o trovador das Cantigas de Amor, a serviço de sua
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amada. Só que, ao contrário do trovador, ele acredita que esta posição de estar a serviço da amada implicará na reciprocidade do amor. Não podemos esquecer que Lacan nos ensina que a fantasia sustenta o desejo.
É certo que, quando um homem deseja uma mulher, não é o corpo como objeto natural que está sendo desejado (isso caracterizaria o instinto), mas o corpo como imagem. Ainda comenta o narrador: “Enredado caso, hein, meu amigo? Ah! muito filosofei sobre ele, por dever de filósofo! E conclui que o Matias era um doente, atacado de hiperespiritualismo (...) que receara apavoradamente as materialidades do casamento...” (QUEIRÓS, 2006, p.35).
O sentido e a função do sintoma determinam à estrutura. Aqui, é preciso acrescentar a definição freudiana de sintoma como formação substitutiva e a de Lacan como símbolo. Freud grifa que os sintomas se constituem para prevenir o eu da angústia de uma coisa que está no lugar de outra. Lacan em “Função e campo da fala e da Linguagem em Psicanálise”, publicado em Escritos, afirma que o sintoma tem duplo sentido, porque é, ao mesmo tempo, símbolo de um conflito defunto e símbolo de um conflito presente. Se o sintoma é um símbolo, obviamente, ele só pode ser estruturado como uma linguagem. Mas, Lacan faz questão de grifar que o sintoma é uma linguagem “cuja fala deve ser libertada”. Fica clara essa dupla função do sintoma: defesa da angústia para Freud e defesa do desejo para Lacan. Deparamos, assim, mais uma vez, com o desejo...
José Matias não está disposto a correr o risco do desejo. Ele se coloca em uma posição masoquista, típica do masoquismo moral. Neste sentido, ele, por ser incapaz de reconhecer o seu desejo por Elisa, a transforma num objeto impossível.
A mulher, como representante do Outro do sexo, é um enigma sem decifração. Freud, no primeiro artigo sobre as “Contribuições à psicologia do amor”, nos ensina que há uma infinidade de maneiras dos neuróticos se posicionarem em relação ao amor:
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A primeira dessas precondições para o amor pode ser descrita como positivamente específica: onde quer que ela se manifeste, pode-se procurar a presença de outras características desse tipo. Pode-se designá-la a precondição de que deva existir uma terceira pessoa prejudicada’; estipula que a pessoa em questão nunca escolherá uma mulher sem compromisso, como seu objeto amoroso — isto é uma moça solteira ou uma mulher casada livre — mas, apenas, aquela sobre a qual outro homem possa reivindicar direitos de posse, como marido, noivo ou amigo. Em alguns casos, essa precondição evidencia-se de modo tão convincente que a mulher pode ser ignorada ou mesmo rejeitada, desde que não pertença a qualquer homem, mas torna-se objeto de sentimentos apaixonados, tão logo estabeleça um desses relacionamentos com outro homem. (FREUD, 1920, p.1.)
José Matias não se posiciona diante do seu desejo, o que nos leva a crer que estamos diante de um sujeito com uma estrutura obsessiva. Freud define o obsessivo como aquele que na infância se viu como objeto privilegiado do desejo materno. Tal privilégio promoveria na criança um dispositivo de suplência à satisfação do desejo da mãe e despertaria nela um investimento libidinal precoce. Lacan, retomando Freud, afirma que o sujeito obsessivo está atrelado ao jogo petrificador, que se estabelece entre o mestre e o escravo, mostrando-se rigorosamente limitado às normas, às regras e aos ditames da lei.
José Matias julga necessário assumir esta posição submissa de não se defrontar com seu desejo. Ele escolhe se colocar a serviço da amada, aquela a quem ele idolatra. Sabemos que a neurose obsessiva se caracteriza por uma carência de reconhecimento paterno. Nela, a função paterna é representada (Lei) pela via da proibição e não do impossível. A função do pai é proibir e punir o desejo incestuoso. Em função disso, o sujeito obsessivo reivindica um mestre (pai ideal) que se apresente como agente da lei. Assim, o obsessivo não pode desejar, porque ele acredita, em sua fantasia, que ele pagaria um preço extraordinariamente alto pelo seu desejo.
Em a História de uma neurose infantil, Freud citou um episódio clássico a propósito da postura do obsessivo:
(...) também à tarde costumava fazer uma ronda por todas as imagens sagradas penduradas na sala, levando consigo uma cadeira
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sobre a qual subia para beijar piamente cada uma delas. O que era totalmente destoante desse cerimonial devoto – ou, por outro lado, talvez fosse bastante coerente – é que se recordasse de certos pensamentos, determinadas blasfêmias que lhe vinham à cabeça como uma inspiração do diabo (...).(FREUD, 1926/2000)
Em relação à neurose, no texto, Inibição, sintoma e angústia, Freud diz que o sintoma é o resultado de um recalcamento e que vem em suplência a representação recalcada. Aprendemos com Freud que não há recalque sem retorno do recalcado. Logo o desejo recalcado reaparece disfarçado em sintoma. Se por um lado o desejo é retirado de cena por ação do recalque, por outro lado, o retorno do recalcado aparece sob a forma dos sintomas sociais de nossa época. Então, a autodestruição de José Matias, sua entrega ao vício da bebida, é sintoma.
Não podemos deixar de lembrar que o sintoma faz a natureza humana na medida em que a exigência de toda cultura é a domesticação das pulsões. Freud, ao elaborar uma teoria do aparelho psíquico, se refere ao recalque original, fonte de todos os recalques que dão origem aos sintomas. Estamos diante do que Freud nomeia de mal estar na cultura.
Para Lacan, a castração como dívida simbólica, faz parte da estrutura do sujeito e remete à inscrição do Nome-do-pai, cuja função é introduzir, a Lei e o Desejo. O conceito de castração se articula com o mecanismo da denegação (Verneinung): a denegação nada mais é o que aparece na fala para ser negado, porque rompeu a barreira do inconsciente. Ou seja, se o que não poderia ser dito é dito, o eu nega o que acabou de ser dito de forma que esse dito não seja acolhido e, justamente por isso, será, de novo, recalcado.
O neurótico é aquele que nega a castração e insiste em desconhecer o impossível. E mais: é aquele que transforma o impossível em proibido. Ele inviabilizam a realização dos seus desejos, adiando-os ad eternun. O luto sem fim de José Matias e sua doença aparecem como obstáculos à realização do seu desejo.
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A neurose obsessiva é, entre outras coisas, um processo de defesa do eu diante do desejo. O obsessivo, por não reconhecer a sua natureza (castração), segue infinitamente em busca da completude.
Assim, o obsessivo tem uma forma bem particular de se posicionar diante do desejo e da lei, a qual se caracteriza pela rivalidade com a figura paterna. E a história termina com uma imagem significativa em perfeita harmonia com o sentido plástico e visual que recorre ao conto desde o seu princípio, carregado de intensidade emocional, que define a atitude dos personagens e presta ao relato uma profunda significação: “Santo Deus! Já estamos em Santa Isabel! Como estes lagóias vão arrastando depressa o pobre José Matias para o pó e para o verme final!. (...) Com efeito, está frio... Mas que linda tarde! (QUEIRÓS, 2006.p. 57).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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JORGE, Marco Antonio Coutinho. Freud – Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan, volume 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. p.142, 148.
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Iracy De Souza
Mestre em Letras (Literatura Portuguesa) /UERJ, 2009
Professora Substituta de Literatura Portuguesa/UERJ
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa)/UFRJ
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero12/iracy.html
Número 12 (1º semestre de 2010) - ISSN 1981-870X