Primeiros Ensaios
Virgílio de Lemos: o barroco estético em onze proposições de corpo
Fábio Santana Pessanha
santanapessanha@gmail.com
Virgílio de Lemos: o barroco estético em onze proposições de corpo
A partir do ensaio “Barroco estético ou 7 enunciados e 4 variantes” do poeta moçambicano Virgílio de Lemos, este artigo se envereda pelos caminhos da hermenêutica ao interpretar as variações dadas ao barroco estético, conceito alcunhado pelo poeta mencionado. Veremos que este olhar é uma experiência do barroco como corpo vivo, impossível de se definir, e que tais enunciados ou variações são possibilidades, e não afirmações conclusivas.
Palavras-chave: Barroco estético. Corpo. Hermenêutica.
Virgílio de Lemos: Baroque aesthetics in eleven proposals for the body
This essay adopts an hermeneutic approach to the text “Barroco estético ou 7 enunciados e 4 variantes” [Baroque aesthetics or 7 statements and 4 variations], by the Mozambiquean poet Virgílio de Lemos, with a view to offering an interpretation of variations in Baroque aesthetics, a concept coined by Virgílio. This perspective shall lead to an experience of the Baroque as a living body, undefinable, since such statements or variations are possibilities, and not statements of truth.
Keywords: Baroque aesthetics. Body. Hermeneutics.
Em diálogo com o ensaio “Barroco estético ou 7 enunciados e 4 variantes” (1997), do poeta moçambicano Virgílio de Lemos, faremos uma incursão no espaço de seus pensamentos, uma interpretação poética acerca das proposições que demarcam um posicionamento diante de um barroquismo muito peculiar. Entendemos seu barroco estético como prenúncio de corpo, a saber: onze maneiras de o corpo se dar poeticamente, ou, sendo mais específico aos dizeres virgilianos, sete maneiras e quatro derivações de encorpamentos.
Em nosso enfoque, cremos que o barroco estético não seja a convergência da libertação em uma literariedade específica, mas a concretização de um corpo vivo, obstinado a se livrar dos enleios detentores da tradição colonial imposta pela metrópole portuguesa. Em vista das palavras de nosso poeta, o barroco estético “propôs uma ruptura, através da escritura literária, a qual buscava libertar o corpo oprimido dos poemas” (LEMOS, 1999, p. 154). O fato de haver onze proposições acerca de uma concepção de se fazer arte acena uma impossível estagnação conceitual. Embora também possam soar como um tipo de manifesto em que se tenha as diretrizes
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fundamentais de se pensar a criatividade e liberdade literárias, estas proposições não se fixam em si mesmas, e sim apontam ao indizível do acontecimento poético. Neste caso, observamos que o acontecer (O acontecimento poético é muito bem estudado no livro O acontecer poético (1982),de Manuel Antônio de Castro.) é o que não pede licença para se realizar; simplesmente se dá. Na poesia, eis a procura de todo pensante, de todos que se abrem ao imaginário e brindam a ocorrência do extraordinário no cotidiano.
Devemos ressaltar ainda que não entenderemos o estético como parte de uma abordagem filosófica do belo ou como adjetivação estilística do barroquismo virgiliano, mas como experiência corpórea. A estesia (Do grego aisthetón – significando “perceptível pelos sentidos” (HOUAISS, 2001) –, também temos a palavra estética.) se atém à sensibilidade do corpo, então, questionamos de que maneira estas sensações infringem o limite de mera percepção e se configuram como experiência corporal. Neste sentido, cremos que a sensação compõe o corpo e não se soma a ele, por isso o barroco em sua estética se dá enquanto fulgurância experiencial de um corpo que vive e traz para sua vivência o horizonte do perceptível e do sensível.
A estética está mais para um aprofundamento empreendido pelo sujeito poético do que pelo sujeito metafísico, ou seja, o primeiro é em si mesmo o desdobramento entre um eu que sente e o objeto observado, portanto, uma liminaridade tensional em que um e outro se mesclam num impossível delineamento espacial. O segundo demonstra uma distância entre os mesmos, explicitando uma relação dicotômica, conforme nos é comum pela tradição retórica: sujeito versus objeto. Teríamos com isso um tipo de deslocamento em que este sujeito poético toma o lugar do objeto investigado, logo,
a estética, em primeiro lugar, na realidade só pode preocupar-se com o sujeito, e não com a natureza do objeto representado. Achar uma coisa bela é sentir subjetivamente um elo necessário entre a representação desta coisa e o prazer que esta representação produz (HAAR, 2000, p. 33).
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Estamos diante de um corpo poético que se derrama na consumação da vida, na leitura de uma derrocada imaginária, uma vez que imaginário não é o que está além da realidade. Ao contrário, imaginar é adentrar a realidade com suas possibilidades de aprofundamento, isto é, imaginar é se deixar tomar pelo pensamento, é encorpar e incorporar uma nova dinâmica de realidade.
Gerindo a maneira poética de se relacionar com a realidade, temos incontáveis envios do real. Estes se entrelaçam e nos amontoam no território da explicação, melhor dizendo, por termos a necessidade de tudo explicar, não percebemos as filigranas das realidades e nos encaixotamos no limite de nossa sensoriabilidade. Então, ao imaginarmos, damos vazão ao incomensurável e nos permitimos cair no absurdo do viver.
O barroco estético de Virgílio de Lemos é este ganhar de asas que funda na imaginação e na profundidade do corpo o redimensionamento das experiências com o literário e, por desdobramento, com o real. Isto é, o corpo é o grande templo dos acontecimentos, tornando-se o horizonte da desfiguração física pela insurgência do poético; a palavra se encorpa e se liberta da presunção gramatical, sai dos lugares comuns e atravessa a carne de quem se deixa possuir, vigendo no orgasmo da criação: “a força do desejo, o sexo, o erotismo são a alavanca: o sexo torna-se mesmo o exercício de libertação da palavra” (LEMOS, 1997).
Certamente que o real aqui não é um conceito longínquo das enciclopédias filosóficas, mas o gostoso cheiro de uma manhã florida, o sol que adentra a casa ao abrir das janelas... Podemos dizer que isto que sentimos é extremamente concreto não porque delimitamos com explicações, mas porque captamos além do sensório, experienciamos. É um sentir que edifica o corpo e o deixa livre a se expressar corporalmente sem que isso soe redundante. Pois esta não redundância se atém ao encorpamento das coisas quando com elas nos relacionamos.
O barroco estético e suas proposições de corpo
Sem mais demora, dirigimo-nos agora ao que diz a primeira proposição: “O barroco estético é uma forma de ‘transe’, uma forma de abstração livre, a
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preto e branco, estímulo para o imaginário (não confundir transe com ascese)” (LEMOS, 1997). O barroco estético, então, como uma maneira de transe, galga a liberdade de pensares e envolve no seu domínio o caminho ao imaginário. O transe refuta o distanciamento e convoca a imersão neste barroco enquanto corporalidade e não como mais um modo de reduzir o literário a esquemas teóricos.
Este enunciado fala de uma abstração livre, tão livre que contraditoriamente alinhava o “preto no branco”, que garante a liberdade de se desdizer. Uma liberdade que prende, mas não aprisiona. Isto é, enlaça no espiralizar da língua a possibilidade de correr ao que ela não fala, mas diz essencialmente em caminho ao deságue na linguagem. Este paradoxo nos leva a questionar e a enxergar o imaginário como o palco de um teatro de absurdos: nele tudo acontece na brevidade de um instante jamais retomado.
Tomar corpo, também podemos dizer, é pensar profundo e se entregar ao abismo da existência. Nesta movimentação, o pensamento se incorpora na assunção do imaginário como fonte ilimitada da palavra. Esta é corpo com suas curvas silabares, com seus entornos de mistérios guardados no porvir de cada aceno. Com isso, podemos pensar a segunda proposição: “o barroco estético sendo transe é uma forma do desejo – sexo que vibra com a vida – e se torna alavanca, exercício de libertação da palavra” (LEMOS, 1997).
Ainda como transe, o barroco estético se afasta do tradicionalismo de uma concepção literária para irromper na concreção do sentir. É a própria vida pulsando no corpo e como corpo, é o sexo enquanto ritual de consumação da morte, na conjugação entre corpo e palavra. Esta se incorpora assinalando o suor e as lágrimas de um prazer carnal libertário de estéticas e normalizações. O sentido antropofágico se deflagra faminto pela diversidade de escritas, pinturas, esculturas, enfim, toda a sorte de manifestação corporal da arte.
A palavra se liberta, mas não se afasta. Carrega e diz o corpo em qualquer movimentação poético-verbal. Transita nas vielas do pensamento, no fulgor da criação e se reinventa continuamente: a criação artística renasce na quebra dos grilhões da tradição e se doa como um filho dado ao mundo que
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acolhe os pais em si, contudo, funda na genealogia das diferenças a propriedade de ser outro.
O transe é ainda retomado na terceira proposição: “O barroco estético, sendo esse transe – o que não é bem nirvana nem ascese –, é um viajar numa teia fluida do lógos, flexível e simultaneamente, o prazer de reinventar e de criar” (LEMOS, 1997). O rigor da criação e a ruptura da mesma se interpelam mútua e tensionalmente. Não é a austeridade da técnica que recebe a unanimidade da criação e nem sua abstenção total. É um jogo em cuja circularidade a precisão e o desbunde se dão as mãos, pois não é possível conter a força da criação quando esta é criação de fato, quando inaugura seu tempo e sua poética, quando romper não significa deixar para trás um aglomerado de enunciados formais, mas trazer para o espaço da ruptura a reunião do que foi e do que desponta a ser.
O lógos neste enunciado suscita uma fluidez cuja viagem da criação transita entre o sagrado (“nirvana”) e a austeridade técnica (“ascese”), sem que se aporte rigidamente em uma destas possibilidades. Neste sentido, o barroco estético seria mais que um modo de se criar, e sim um caminho no qual a liberdade e a fome pelo novo se colocam como tipos de catalisadores. O lógos pode ser entendido como linguagem que por sua vez não se enjaula numa definição linguística, pondo-se como caminho ao inaugural e ao íntimo da poesia. Com estas palavras, lembramos de Emmanuel quando diz que “o poeta é poeta por descobrir-se tão imerso no mistério da Linguagem que toda poesia, sendo a impossibilidade de falar sobre a Linguagem, o leva a sentir nesta impossibilidade a Linguagem de toda poesia” (CARNEIRO LEÃO 1977, p. 171). Pelas palavras do próprio Virgílio, quando fala de sua escrita em entrevista concedida à professora Carmen Tindó Secco, observamos ainda que:
[...] o que pretendia era um mergulho profundo na poesia, abrindo-a ao mundo: do Brasil modernista de São Paulo à América, ao Caribe, ao Japão, à Índia, à África, à Europa, às diatribes, por exemplo, de um Almada Negreiros em Portugal (LEMOS, 1999, p. 150).
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A abertura ao mundo somado ao salto rumo à profundidade da poesia ensejam a assunção do corpo como caminhada, como redescoberta de si, ou seja, o caminho se consuma nos passos dados em direção ao inesperado.
Até aqui vimos o transe como propulsor da criação para além do cotidiano (“abstração livre”), diríamos, uma reinvenção deste cotidiano pelo poético. No entanto, isto não significa sair da realidade, ao contrário, entramos nela com mais radicalidade uma vez que destituímos a fronteira entre real e imaginário do âmbito dicionarizado. O transe criativo também deu à palavra a corporalidade da carne (“forma do desejo”); além de salientar a criação como a necessidade de ser vários ao mesmo tempo (“o prazer de reinventar e de criar”).
A perspectiva do barroco estético dá ao corpo uma dimensão além do material, revigora e concebe cada célula como plenitude de movimento artístico, isto é, uma autopoiese que evidencia a intensa dinamicidade do corpo em ser corpo, de fundir em sua corporalidade duas instâncias inseparáveis: vida e morte. Do mesmo modo, este terreno próprio de um conflito frutífero é o mesmo da literatura, da tensão entre ficção e realidade, uma vez que estas últimas não se dão separadamente, mas como facetas de um mesmo, desobedecendo ao rigor das definições, das estipulações estáticas de ser e não ser separadamente.
Na quarta proposição, lemos: “O barroco estético é talvez o lado contrário da exuberância maximalista, o que não exclui a força de contenção do erotismo” (LEMOS, 1997). Se a “exuberância maximalista” incorre na exigência de uma mentalidade hostil e, por ser exuberante, se alarga à população, ela também transgride a liberdade do pensar segundo a imposição de uma conduta colonialista. Então, vemos que embora o barroco estético assimile o momento pelo qual Moçambique passe politicamente – tentativa de respirar em meio à repressão portuguesa na qual se forçava a irrupção da identidade literária moçambicana mediante o colonialismo luso –, o mesmo não se trai ao incorporar tal instante. Não se estabelece num patamar rígido, que impeça a livre fluência da criação artística. Daí o erotismo não contido, livre para galgar
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as curvas misteriosas do corpo, que vai fundo na abstração da realidade imediata.
Diríamos que o “lado” exposto nesta proposição é aquele que se reporta ao desmedido do criar. Portanto, que não exclui a força do erotismo, mais ainda, avulta-o enquanto vigor corporal no fazer poético. O erótico aprofunda o sentido da corporalidade, sendo a dimensão do desejo tão pulsante não só no deságue deste barroquismo, mas na poética virgiliana, desdobrada, obviamente, naqueles cujo viço criativo é tangido pelas acepções então demarcadas. O erotismo transborda mera delineação descritiva para trazer à tona um corpo visceral, ardente, que corrompe as beatas perspectivas formais. Eleva a não-retenção teórica para o limite da experiência criativa ao nos convidar para o insondável de um ritmo musical que se despeja no universo telúrico-imaginário.
Como possível complementação da quarta proposição, a quinta diz: “O barroco estético é, neste caso, a resistência a qualquer forma de exotismo ou oportunismo mercantil” (LEMOS, 1997). Exótico é o que vem de fora, o que é estrangeiro. Logo, mesmo que haja uma mestiçagem cultural com o intuito de firmar uma identidade, não será o estranho que prevalecerá, mas como este será metamorfoseado a ponto de dizer a literatura moçambicana de maneira única, inequívoca. Quanto ao “oportunismo mercantil”, podemos pensar que seja o livramento de qualquer vontade superficial a imprimir um caráter utilitário. Em outras palavras, o barroco estético não está para fundar uma estética, mas para se colocar como caminho que “desenforma” a retidão da formalidade, que retira da poesia sua utilidade, que deixa a arte ser arte, ainda que presa a alguns rótulos das delimitações técnicas vislumbrados pela crítica corrente.
Quem sabe, possamos pensar na estética da “desestética”, pois quando temos artistas que se tocam em relação às suas criações, não significa que estejam presos a um modelo criativo, a uma estética. Cremos que isso ocorra quando são tomados por uma mesma questão, por uma mesma força que independe de modelos ou causas políticas. O apelo criativo da arte grita naquele que se abre à escuta de sua própria essência e, como no caso em
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vista, tratamos da reinvenção de uma literatura genuinamente moçambicana, obviamente que poetas que se caracterizam por pertencerem ao barroco estético não o fazem por mera intenção, mas por ouvirem a voz de uma mesma questão, por serem tocados pelo silêncio de um porvir criativo e que mesmo sendo tão diferentes em suas obras, tão únicos em seu trato com o poético, em suas interpretações e incursões pelo pensar, convergem para a identidade que os unem.
Retomando a ideia de mestiçagem cultural, a sexta proposição deixa este fato bastante claro:
O barroco estético é, pois, a absorção de sinais, dos sinais mais sedutores das culturas invasoras – de ocupação física ou não – e a sua superação. Algo que pode conduzir à invenção de novos sinais de uma nova cultura, de miscigenação crioula e universalista. E essa reflexão criativa – transe ou inconsciente –, vem exigindo o recurso à ética e à linguagem (LEMOS, 1999. p. 150).
Ao ser dimensionada a absorção dos sinais de outras culturas, o poeta recorre à ética e à linguagem. Em relação à ética, quando nos atentamos ao êthos grego, aproximamo-nos do que somos, do nosso modo intrínseco de ser. Então, no barroco estético, temos a fundamentação identitária de uma maneira de operar com a realidade vigente no ano de sua fundação – 1948, sendo o período mais criativo ocorrido entre 1951 e 1974 – e que se resvala nos artistas tangidos pelas questões fundamentais deste barroquismo. A ética do enunciado acima enseja um sentido equivalente à moral quando lemos despercebidamente. Entretanto, por se tratar de um movimento de libertação da palavra, não podemos confundi-la com um aglomerado de regras. Falamos exatamente da transgressão delas, da ruptura de um modelo calcificante em prol da irrupção da poesia notoriamente moçambicana.
A linguagem é o vazio no qual a língua se resguarda. Em consonância com o silêncio, a linguagem é o oceano no qual as palavras se dirigem e repousam a fim de renascerem. Muito comum de ser entendida pela ótica linguística, a linguagem não significa carrossel de possibilidades
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comunicativas, mas a origem da libertação da palavra. É pela linguagem que temos o verborrágico e o essencial, ela é o nada recriado na folha em branco, como vemos no poema:
A tragédia e a língua
(Ao Luiz de Camões e ao Fernando Pessoa)
Fora ou dentro, a língua é luz
da alma, sendo seu próprio corpo
vegetal. Na folha em branco
passeia-se o nada recriado.Sol, sendo luar, no desvelar reside
o segredo do criar, e na paleta
esquecida, vive ainda o morto,
duplo mergulho no texto e na deriva.E é face ao mesmo mar de teus anseios
que neste outro olhar recrio o gesto
e reconcilio a tragédia e a língua.(Virgílio de Lemos, Ilha de Moçambique, 10-06-1957)
(LEMOS, 1999, p 67-8)
No poema, vemos a linguagem como o vazio doador da palavra, como a tensão residente entre o texto e a deriva. Eis o barroco estético desprovido de formalidade, nu e são, aberto e liberto das concatenações rituais do poetar estilístico.
Voltando à sexta proposição, entendemos que exigência à ética e à linguagem da reflexão criativa seja tal qual o movimento da morte que concretiza sua existência na vida, tanto quanto a vida afirma a morte em sua permanência. No sentido exposto, cremos que refletir criativamente signifique trazer à lume a imensidão revoltosa entranhada nos poetas moçambicanos da época, a universalização do poetar, que embora validasse uma bandeira ou dada práxis política, não se reduzia à poesia engajada. A exemplo disso, Virgílio de Lemos ao falar da revista Msaho – que instaurou a modernidade literária moçambicana e certamente deflagra o barroco estético –, comenta: “A nossa militância era poética: fundia contenção e rigor, mas buscava também as pulsões e as sensações da poesia, ou seja, um corpo a corpo silabar com a linguagem do desejo” (LEMOS, 1999. p.153).
A absorção, a viagem ao desejo e a instauração de uma produção artística corporal deram ao movimento do barroco estético a autonomia de se
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criar a cada instante pelas obras poéticas. Assim chegamos à sétima proposição: “O barroco estético possui uma regra própria de princípios que não sejam seus. Viagem através do desmedido, imagem e palavra, que pode recolher-se no tom da voz em que se exprime, se canta ou grita” (LEMOS, 1997).
A pulsão do poético na palavra, no gestual do corpo é a própria reinvenção deste barroquismo desmedido. Não temos poemas enquadrados em movimentos artísticos, não temos danças que obedeçam aos ritmos encadeados de cada definição, temos a pulsação involuntária do criar. Não é o corpo que dança, o corpo é dança. Não é a palavra que canta, ela é canto. Não são as mãos que pintam ou esculpem, elas são a própria pintura ou escultura enquanto desdobramento corporal. O barroco estético não está nem em seus enunciados, é mais uma captação sonoro-verbal da criação livre e da irreverência de se medir o imensurável.
Virgílio de Lemos em suas andanças percebe que a arte é estruturalmente inadmissível, isto é, não se circunda de estéticas e formas. Estas são a assunção de um momento específico, porém não reduzem a invenção na composição de um estilo específico. O poético é um agir que não se mede, pois renasce a cada novo olhar, dúvida, pensamento... Arte é gestação do porvir em tensa ligação com os descaminhos do homem, do artista que se deixa inventar por suas criações. Não há medida, não há definição, há talvez uma fronteira na qual não se sabe onde começa a técnica e onde termina a fantasia.
O barroco estético é irônico em sua própria invenção, é um contraponto dele mesmo no instante em que se notabiliza como procura incessante. Assim, cremos ser um equívoco taxá-lo como paramento de uma estética poética ou de uma fase na qual a evolução dos movimentos artísticos se encarregarão de novas técnicas de criação.
Pensando na desmedida conduta deste barroquismo da procura, vejamos a oitava proposição:
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O barroco estético é o teatro do que exprime, testemunha da sombra e da luz, voz musical da noite em que o corpo do desejo se debate. Não é o que lá está que é significativo, mas a sua essência, o seu significado, por vezes, o significado da ausência (LEMOS, 1999).
A liminaridade entre presença e ausência diz o trânsito desta procura barroca, vemos que o importante não é aquilo que se mostra, mas o que subjaz essencialmente. Isto significa que potencialmente temos uma estética da reinvenção, portanto, uma não-estética, a desestética da procura: a arte em pleno ato de criação desprovida da parafernália teórica que impede a exuberância da liberdade.
Temos que esclarecer que a técnica é fundamental quando está em harmonia com a criação, logo, quando não engessa o ato criativo na preocupação de se adequar a obra em dado movimento ou estilo. A técnica é como a ponte que nos ajuda a chegar ao outro lado do nada, mas que precisa ser detida em sua função cooperativa. Não deve ser depositária da irrupção artística, pois compõe a obra em sua operacionalização.
Sendo o barroco estético um tipo de teatro da expressividade, devemos entender esta expressividade num sentido diverso da palavra como significante, e sim como pronúncia da incoerência. Afinal, em que momento a coerência dá conta da realidade? Em nenhum. A coerência seria o mecanismo de amenização do que não compreendemos na realização do real. Isto é, voltamos à necessidade das explicações, onde tudo deve fazer sentido e ser crível ao modelo seguido pela lógica da convenção racional. Mas e o que acontece com o que não é convencional? O que fazer com o diferente? Cria-se um lugar da desinvenção no qual a ruptura se acomoda no continuísmo do aceitável, do cômodo, do comum.
No palco do barroco estético figura o inaceitável, o deslumbre, a incoerência. Eis a reunião empreendida pelo teatro do corpo: o testemunho “da sombra e da luz” ocorre no limite entre caos e cosmos, trevas e luz na dança do incontornável, Shiva com seus braços sustentando o ritmo interminável do universo; a “voz musical da noite” é corpo sonoro e livre, lugar da desordem em que o desejo se alicerça no incontrolável gesto da consumação; a ausência
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não como vazio retórico, mas como originário, como possibilidade infinda: nascividade.
A nona proposição trata da anunciação vocal que antecede a deflagração artística, da tessitura do silêncio ao alinhavar a fala, a música, o canto na pronúncia da palavra. Mais ainda, trata da subjacente tensão que singulariza o indivíduo na ambiguidade de ser um desdobramento de si mesmo na obra: “O barroco estético, sendo voz da palavra, da música, da arquitetura, da escultura, da pintura, é a singularidade do indivíduo e da sua própria imagem” (LEMOS, 1999).
O indivíduo é dual com sua imagem, manifesta-se numa tensão complexa sendo dois ao mesmo tempo: um que se recolhe na imaginação criativa e outro que se assegura no rigor da razão. A imagem do indivíduo são as projeções de seus desejos captados pelos olhos da razão. Quando essa imagem é retida pelos braços da imaginação, ela se torna outra, não deixando de ser a mesma. Traça-se uma linha cujo horizonte resguarda a permanência de tais mudanças.
O que singulariza o indivíduo seria sua maneira única de entrelaçamento com o real. Seu trabalho obedecerá à identidade de seu próprio, ou seja, do seu modo inerente de corresponder à linguagem, ao silêncio; de se entregar à metamorfose da existência criativa. Neste sentido, vem a nós um sentido de horizonte que conclama o poeta para o rasgo empreendido na criação de sua obra. Ele é entranhado pelo silêncio no relevo de seu poetar e surpreende ao inovar a língua na música da poesia, nas curvas da escultura, no mistério das linhas arquitetônicas.
A cisão entre indivíduo e sua imagem reclama a discussão acerca da subjetividade. Daí, podemos pensar que “o eu que se aprofunda em si mesmo jamais atinge o seu fundo, porque o eu é a matriz abissal das possíveis configurações de seu próprio ser” (SOUZA, 2005, p. 138). Deste modo, a ruptura entre o eu-individual e o eu-imagético permanece transitável conforme mobilidade do horizonte, pois quanto mais nos aproximamos dele, mais se afasta de nós, deixando à nossa frente uma série de encaminhamentos
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possíveis de se percorrer. Assim, o horizonte é o guardião dos caminhos, das possibilidades de se trilhar rumo ao desconhecido, e este desconhecido somos nós mesmos.
Uma imagem é sempre uma possível questão que se apresenta identificada no espelhar de uma forma, seja esta nossa feição ou um objeto qualquer sobre o qual recaia alguma inconformação. O barroco estético se coloca neste meio, neste entre-indivíduo-e-imagem, por isso sua permanência, sua inconstância criativa e apelo ao desejo do corpo. O movimento por ele empreendido é de instabilidade porque cria e se renova a todo o tempo. Seja na poesia, na escultura, na pintura ou na arquitetura, o barroco estético quebra a formalidade da forma exata e se imprime como queda inconsciente do fazer artístico, uma vertigem criadora, renovadora e incessante.
A mesma tensão entre indivíduo e imagem pode ser vista entre a imaginação e a realidade cotidiana, na qual o sonho irrompe. Assim chegamos à décima proposição: “O barroco estético contém uma parte de sonho onde o imaginário se serve ao vivo. Ele vai metamorfosear a viagem lúdica” (LEMOS, 1997). Voltando a pensar na realidade, vemo-la indissociada do sonho. A realidade é o tátil e o abstrato concretizados ao mesmo tempo. O concreto é o concrescer, o crescer que ajunta em si a dinâmica daquilo que se mostra aos nossos olhos e se esconde na viragem da imaginação. No entanto, esta consubstanciação entre o lúdico e a realidade não se dá só no barroco estético, mas é o próprio movimento do real. Digamos que quando Virgílio de Lemos aponta e chama a atenção para esta dança do real, mostra o quanto a arte é desprovida de dono. O que há são pessoas que se deixam tomar por ela e evocam o corpo na operacionalização do artístico.
O “servir-se ao vivo do imaginário” aproxima a distância entre o racional e o não-pensado, isto é, o imaginário não está além da realidade, não ocupa um espaço próprio e distante dela. O que precisamos compreender é que esta fronteira foi uma invenção humana como provável herança da cisão moderna entre corpo e espírito, por exemplo. Não há ruptura, não há o espaço do corpo e o do espírito: entendemos que o corpo se dá na junção do material e
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imaterial. Portanto, da suposta separação agora mencionada, o que sobrou foi um amontoado de equívocos racionais aportados na certeza científica.
A metamorfose da viagem lúdica encerra em si a inconstância da forma, de um modelo rígido cuja estrutura espera ser preenchida por algum transeunte intelectual. A arte não se atrela à forma, do contrário deixa de ser arte e se transforma em disciplina. Trazendo para o âmbito do barroco estético, não há uma regra que o adéque à formalidade dos estilos vigentes nas teorias literárias. Sua busca é pelo descabido, pela originalidade que toma uma feição, mas dela logo se livra. Deste modo, a forma existe e se faz visível, mas não detém o formato pleno da obra de arte, seja ela poética, arquitetônica, plástica, musical etc.
Contribuindo com nossa discussão, Gilvan Fogel diz o seguinte: “Forma, que não é fôrma nem formato, mas determinação, melhor, gênese ontológica, modo de ser, que faz isso aparecer ou mostrar-se como isso ou com o aquilo” (FOGEL 2009, p. 51). Logo, o modo como a arte se manifesta conserva em sua apresentação o genuíno diálogo entre uma estética única de aparição e a antecedência originária contida numa força tal como o on. No hinduísmo, esta palavra expressa todo o universo, todas as coisas existentes e não existentes. No grego, referencia-se ao ser, ao real, enfim, independente da perspectiva, tem-se o direcionamento ao vazio, ao nada como vigor do que pode vir a existir e se constituir na tensão entre ser e não-ser.
Nas leituras retóricas usuais, a efemeridade da forma é deslocada para a infinitude do a-se-formar, destituindo o fazer artístico de sua inventividade sempre inaugural. Com isso, tornamo-nos alvos, por exemplo, da literatura enquanto transmissão de estilos epocais, presa à ditadura da escrita acadêmica. A autoria do pensamento é delegada às referências bibliográficas, colocando o diálogo que fazemos com obras literárias ou filosóficas como resultado de subjetividade ou de um tipo de esoterismo poético.
Os padrões são calabouços dos quais o barroquismo virgiliano se despede a cada estreia, deixando para trás uma constelação de obras cuja singularidade é própria de cada tempo, de cada errância. O desmedido se
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instaura na procura pelo questionamento. Então, rumo à décima primeira – e última – proposição, veremos nela o arremate do improvável. Não fechamos com um formulário deste barroquismo, mas incitamos a sondagem pelo que seja sempre mutável:
Barroco estético da imagem da irreverência, capaz de inverter conceitos, sinais e significados, ele é questionamento e risco, o desejo conduzido à palavra poética, ou à imagem cultural, ou cinematográfica. Em suma, o barroco estético é a adoção de elementos como a surpresa e o que é aleatório (LEMOS, 1997).
Fundamentalmente, entendemos ser o barroco estético o despropósito de uma vertente artística que desobedeça a certos padrões definidos. Alicerçado no questionamento, tendo o risco como extensão corporal de seu ideário, este barroco se sustenta na criatividade, na tradição relida a partir da efervescência do agora. Talvez seja o teatro de alma absurda em que cada cena eleve a plangência enrustida do clown, isto é, incita que a desordem ordinária do humano se resplandeça no palco da realidade, encenando a caracterização do que seja simultaneamente antagônico e aliado de si no percurso da vida-morte.
De certa maneira, este enunciado retoma todos os anteriores, condensando em poucas palavras o devir da criação artística. A correção e a linearidade do raciocínio são desfeitos, ou melhor, são acolhidos e regurgitados em forma de inventividade. Como já dissemos, a arte não se reduz a teorias, a formatos pré-estabelecidos, ela inaugura seu tempo, seu espaço, sua língua, enfim, retorna ao vazio vindouro do novo. Cada momento é único e irreversível, cada pincelada traduz o inominável ato de pensar e ser: a tinta volta a ser cor; a palavra, poesia; o som, música. A obra de arte se dá na inconformidade do já sabido, vinga na ruptura dos modelos vigentes. Por mais que falemos e tentemos captar a essência deste barroquismo, conseguiremos apenas chegar a nuances do que seja este ato libertário da palavra, do corpo, do pensamento, da inquietude de ser.
A irreverência do barroco estético traduz na sua história um corpo de palavra desnuda, cravada pela intempérie daqueles que se punham ao embate, que tomavam as ruas – imaginárias ou não – da mão pesada de um
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dominador. Romper com esta prisão não se detinha só no âmbito do palpável, mas na voz profunda de um invisível alucinante, de uma incontida vontade de se renovar na alteridade de si mesmo.
O desejo é a força motriz de um movimento de consumação da palavra, na assunção de um corpo que é tanto carne quanto o improvável da razão, o lúdico de uma mão que dança no tempo e conserva o horizonte entre céu e terra no calor de seu toque. O barroco estético é tanto teoria quanto questionamento dela própria, um movimento espiral de retomadas e derrocadas que dá ao artista a essência do humano. Podemos pensar em sexo com palavras e saliva, com gesto e cheiro, com dança e colo aquecido...
Uma tentativa de conclusão...
Enfim, nunca conseguiremos dizer o barroco estético como ele, de fato, é. Apenas chegaremos perto, ficaremos na tangência de um corpo, assim como uma lembrança que se fixa em nós e logo se despede. Conceitos, temos aos montes, haja vista os enunciados aqui visitados ou mesmo as definições dadas pelo próprio poeta Virgílio de Lemos. A questão é que quando muito definimos algo, significa que o alvo da definição ainda está em movimento e que é impossível retê-lo numa frieza conceitual. Por isso, a diversidade de olhares sobre este barroquismo, cujo próprio “-ismo” se desfaz no vigor do barroco estético enquanto corpo-vivo, é mais uma perspectiva presentificada, porém com a consciência de que podemos apenas sentir sua brisa. Então, deixemos este corpo se desenvolver no desejo de sua volúpia, na leitura da diversidade, fiquemos com o calor de um corpo em crescimento e profundidade lúdica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Fábio Santana Pessanha
Mestrando em Ciência da Literatura (Poética) / UFRJ
Editor do Dicionário digital de poética e pensamento
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero12/fabio.html
Número 12 (1º semestre de 2010) - ISSN 1981-870X