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Ao Longe
A “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos
Marcus Alexandre Motta
Universidade Estadual do Rio de Janeiro /UERJ
marcusalexandremotta@globo.com
Ao Longe A “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos
Esta pequena conferência se consagra como um pequeno ensaio. Articula a voz da assinatura de Álvaro de Campos com a situação musical da Ode em questão e, portanto, reflete sobre a cantoria moderna como precisão do primitivismo e sofisticação do canto existente na estrutura do narcisismo.
Palavras-chave: canto. Assinatura. voz e narcisismo.
From a distance: the “Triumphal Ode”, by Alvaro de Campos
This small conference takes the form of a short essay. It articulates the voice of Alvaro de Campos´ signature with the musical atmosphere of his Ode, and introduces a reflection about modern chants as precision (found in primitivism) and as sophistication (existing in the structure of narcissism).
Key - Words: singing. Signature. Voice. narcissism.
Ao longe fiquei a imaginar o que seria falar após, ou antes, da performance de Lucas Castelo Branco, portando, a olhos vistos, uma febre sensível de quem acaba de ouvir Ode Triunfal de Álvaro de Campos. Ao longe, tive a forte impressão de que deveria cassar o meu direito a fala, mantendo-me em silêncio e correndo, com isso, todos os riscos de não cumprir qualquer expectativa, minha ou de quem me ouviria.
Ao longe, com o passar do tempo, quase convencido de que deveria ousar ficar em silêncio diante daqueles que tomariam suas posições no pequeno auditório imaginado, me entretive pensando o contrário. Ou seja: vi-me pedir à “eloqüência” um empréstimo de algumas particularidades acentuadas pela tradição crítica, configurando um ambiente discursivo capaz de forjar um bom entendimento sobre a obra de Fernando Pessoa. Tal pensamento rebaixou a febre sensível, imediatamente.
Havia encontrado uma situação de conforto, na qual tomaria a Ode Triunfal como um exemplo da fácil, por muitas vezes canhestra, situação heteronímica de Fernando Pessoa. Assim sendo, demarcá-lo-ia por conceituações precárias (tipo poema futurista, etc.) e, com isso, no imediato de minha máscara de intelectual, esvaziaria a performance de Lucas Castelo
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Branco, estabelecendo-me como um soberbo comentarista que ao falar rouba a cena e usurpa uma mais–valia de um ato de arte.
Entretido, nas circunstâncias de espera e de aconchego parasitário, reli a Ode e me pus a escutar. Era evidente, ao longe, que me deparava, na audição dos versos, com um verso que não estava ali nas estrofes: a assinatura Álvaro de Campos. Este verso me requisitou atenção.
Reconheci que deveria falar, nesta conferência, com o poema, falar ao lado dele, testando de maneira curta a minha escuta, evitando explicado, aprendendo, aceitando as críticas de deslocá-lo do mundo pessoano. Simularia, portanto, uma retórica do silêncio que se realiza como ensaio longínquo da minha angústia de escuta, requisitando, para ser, o desprestígio da “eloqüência” que poderia ter conquistado. Senti que me posicionando dessa maneira, teria o meu ao longe como uma categoria histórica que se debruça para olhar e ouvir chamar o que se pode denominar de ensinamento artístico do poema.
É evidente que isso soe poético ou improcedente numa conferência; porém, absorto no longe, assistido como estou agora por Álvaro de Campos, posso explorar a idéia de que há no poema um canto decisivo sobre a indiferença à moral que a assinatura traduz. Assinatura, algo não puro ou absoluto que um corpo traça como sua linha, cuja presença é o x que corresponde ao destaque e a ironia da identidade relativa e impura do humano, distinguindo-se entre a arrogância e o aviltamento.
Quaisquer que forem os significados que darei, a idéia serve para captar as inumeráveis formas com as quais praticamos o querer e o não querer ouvir a voz do poema que assina em nós — como se nos fosse possível, ao ouvir a Ode, saber ou não saber o que ela, a voz, deseja; saber ou não saber o que ela canta sobre os nossos desejos, apagando-nos ou nos enfermando; reconhecendo até que ponto os nossos desejos modernos solicitam a existência e, se isso, cantado, não aperfeiçoa a indiferença à moral da assinatura. E nesse estado, admito adotar a voz do poema para deslizar no
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juízo do mundo como algo real, anexo, indo até uma sensação geral de outro reino que flui, auditivamente, como uma ária.
Ária assinada, eis o poema — cuja ligadura dos versos aviva o fracasso da distinção entre voz ativa ou passiva, conforme a descoberta histérica e obsessiva que nos é dada por ele ao escutá-lo, expressando a situação de estarmos completamente comprimidos entre mundos ao sentir. Um no qual somos vistos à distância no mais próximo: lugar do pensamento quando, ele, esvazia as coisas para enchê-las de si e nos delega imagens correspondentes ao absurdo das coisas existirem fora da mente. E, no outro, no qual nos ouvimos de perto como ato longínquo da música que as sensações cantam, ao irromperem através de nossas cavernas, encontrando o ser mais anônimo que nos vive e trabalha com martelo, bigorna, apoiado num estribo, o audível, manufaturando-o num romance mais monótono ou refrão mais conhecido: nós, os “pós-modernos”.
Naquele lugar, no fundo da caverna sem janelas, cuja membrana é lubrificada com cera arcaica antes da câmara de trabalho, ele clama atenção. O ser mais anônimo, segundo a natureza dos instrumentos em nós, acrescenta ao que já é estranho, a fala, a surpresa e a angústia do canto, ao ressoar pelos corpos de quem escuta a Ode a multiplicidade de estímulos da modernidade.
É essa a idéia que se desprende da assinatura Álvaro de Campos como um sinal do abandono e do êxtase musical ao qual estamos submetidos ao fazermos usos de nossas palavras cantantes, ouvindo-as como escutamos os versos da Ode Triunfal — aprendendo a ditar, musicalmente, os versos, dele ou os nossos, e iniciando o falar de algo para encontrar a voz, sem a qual não se saberia que se tem uma assinatura.
A indiferença à moral da assinatura é o plágio derradeiro da identidade humana moderna que o poema consagra, expressando-se como vontade auditiva de se apartar do mundo e estar paradoxalmente imbricado nele — casado com ele e tendo relações ilícitas com ele. Ou seja: um mundo do longe como um reino audível que intervém no moderno, validando, dialeticamente, o mais próximo como um sujeito para si mesmo em tal lonjura — conforme o
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corpo, digo, recolhe a imortalidade mortal de nossas sensações febris e as canta; descrevendo a base e a parábola da possibilidade e da necessidade de corda, de bigorna, de martelo e de apoio no estribo, para encontrar a “minha voz” e, em conseqüência, viver a ameaça de se tornar um cantor pedinte por não encontrá-la ou não assumi-la ou, mesmo, não ser reconhecido com ela, modernamente.
Tal perspectiva do sujeito para si mesmo é a derradeira pauta musical que recorda a estrutura do narcisismo. “creio que o conceito de narcisismo introduz a dupla intenção do canto como êxtase e como abandono, uma intuição de que suas respostas representam as mais primitivas e as mais sofisticadas da escala humana”. (Cavell, 2002, p. 191).
A direção sofisticada do poema apresenta a musicalidade do canto que se expõe a morte ao ressoar nas coisas, segundo o uso da voz ostenta a perda de potência vibratória de suas cordas na lonjura da escuta. Cantando, a voz na Ode Triunfal consagra o poder do desejo de ouvirmos como nós nos escutamos nos múltiplos estímulos modernos, obrigando-nos a romper o fio da relação da morte com a comunicação, nos fazendo clamar o recuo da existência moderna até o ponto no qual as sensações cantantes demarcam a prova da autonomia da angústia em ser lançado ao mundo e sentir historicamente o imediato das coisas ordinárias. E, nelas, haver cantado, assinalado, de haver considerado as suas assinaturas em nossos olhos, trabalhando febrilmente com instrumentos, para ter voz e olhar.
A Ode de Álvaro, por conseguinte, é um tipo de encanto da indiferença à moral da assinatura, que desafia a cifra de certas dúvidas que o cantar vai fazendo, descobrindo, progressivamente, o atrativo modo de como se faz para haver escuta do mais longínquo em tudo que é o mais próximo. Se aceitarmos que todo o canto é um bem e mal, interno ou externo, há de convir que isto motive um juízo que não pressupõe uma moral que lhe seja cordata; antes, como fundamento, explana uma assinatura como juízo de mundo, requerendo a afirmação ou negação de cada sensação cantada pelos versos em nossas escutas — pois a árvore do conhecimento, do bem e do mal, fez valer a
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angústia antes do juízo com tal, ao afirmar sua decorrência na oralidade e confirmar uma escuta renunciada.
Talvez o motivo da expulsão do jardim do paraíso indique que a Ode Triunfal de Álvaro ajuste o tema da separação, reintegrando-o num cantar que precisa nomear as novas circunstâncias — como se isso fosse a resposta moderna ao trauma fundamental da experiência da partida para o mundo. Se o canto respira o mundo moderno, há de convir que o poema estabeleça um princípio do sopro cantante e mundano, cujos vestígios do esforço ressoam a angústia em cada verso quando os escutamos. Respirar o mundo ao cantar é não pressupor a expulsão como única consequência; na razão direta de que o cantar isola o mundo, convertendo-o em absoluto, incluindo-o, teorizado, naquilo que as palavras fazem consigo mesmas quando cantadas, segunda a idéia de que a voz se converte em assinatura quando se entrega ao canto.
Indiferente à moral, a Ode Triunfal desproporciona a exigência de compartilhar a dor e o prazer do trabalho de sentir, manufaturando estímulos sensíveis, que por natureza cantam uma versão do narcisismo como a forma de algo que há de ser possuído ou superado e reiniciado como perda e partida. “Narcisismo como algo que capta e reúne a condição primitiva da oralidade do canto, a sofisticação da exibição do canto” (Cavell, 202, p. 198.
Nesse sentido, a Ode Triunfal é o inexpressável abandono do mundo em nós, como se a voz o desencarnasse e o desdobrasse num êxtase, no qual estarmos em nós mesmos talvez seja júbilo, talvez pesar. A assinatura, Álvaro de Campos, é a tortura em sentir o que se canta cantando, cuja sofisticação requer a voz como o único representante estético do terror da separação na infância. Alguém que assina os nervos doentes da matéria do canto. Alguém que assina a angústia humana de sua entrega ao mundo. Entrega que está acompanhada pelas metamorfoses maquínicas atuantes do novo, submetida como está às imperceptíveis gravidades e insatisfatórias ondas sensíveis e multidões: eia todo o passado dentro do presente!/Eia todo o futuro já dentro de nós! Eia!
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Se eu pudera dizer sobre a visão da totalidade audível da Ode, estando ao longe, diria ser, ela, a historicidade radical e perpétua da partida em direção ao mundo humano na imanência radical de um dia moderno que se canta. Ode, cujas texturas da angústia, sem embargo, de um dia, e suas justaposições de uma escala humana, afiançam a musicalidade poética como “interseções de sensualidade e abstração, de evanescência e permanência, de afirmação sem as sua conseqüências, de referências sem verdades, de compreensão sem significado” (Cavell, 2002, p. 213), de toda a plenitude da espera e da urgência conjuntamente, do prévio e do posterior cantado a cada vibração dos instrumentos nas cavernas que são as nossas.
Insisto, ao longe. Insisto nessa experiência do canto e da audição cantante, em que o pensamento do ouvinte está, por assim dizer, ontologicamente excluído pela legibilidade histórica dos versos. Uma história que mostra a absoluta falta de originalidade, posto que nada se origine na alma do cantor, tudo está na origem do fora, cantado na sua voz, mesmo que haja, por muito movimento inquieto, mundo moderno.
Aqui irrompe a urgência do ensinamento artístico da Ode. Ensinamento da indiferença à moral da assinatura, a estrutura do narcisismo, que é o evidenciar de que o novo nunca se descobre em nós, sendo, portanto, alguma coisa como vertigem, ou angústia, resistente. Alguma coisa que tentamos transformar na oficina e cantamos pelas cordas de nossa assinatura vocal, ainda como derradeira partida em direção ao mundo.
Nada a contar, Álvaro nos diz. Tudo a escutar como se fosse ele assinando, há que se dizer. Nada é tão perigoso como a aquisição de todas as novidades. Álvaro sabe disso. A experiência moderna é demasiada vertigem para ser conservada. É necessário cantá-la como casos de sufocamento, sendo possível, paradoxalmente, ser isto um espelho que experimenta a própria imagem — como se na imagem estivesse expresso à indiferença à moral da assinatura, entre as urgências de reconhecimento e os rasgos do trauma humano. Uma tensão sonora da imagem, por assim dizer, que descobre o não total descobrimento do novo na modernidade, cuja antevisão da escuta é responsável pelas cifras que esconde o quanto de trabalho há em
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fazer ouvir, para ver, a camada arcaica da angústia, que aparece na superfície da partitura do moderno ao permitir o canto de todas as nossas partidas para e recuperações de mundo.
Isso por que os fracassos do descobrimento completo das situações maquínicas, em razão da biológica situação humana dos instrumentos, revelam os êxitos do cantar as horas européias por si mesmas como uma exceção histórica de sua assinatura na voz que canta a Ode. Outro lugar para a existência, vertigem da liberdade, obrigando uma nova compreensão que recusa o sabido como norte e consubstancia o saber como um pressentimento audível de tudo e de todos num afã radicalmente narcísico e, por isso, nada mais do que uma voz que assina para esconder que fomos postos para fora de nossas cavernas e jardins, vendo-os sem reconhecer e escutando-os depois de cada uma das renúncias ao silêncio.
Haver chegado para mais longe. Ter ido até um ponto no qual a intuitiva identificação da Ode Triunfal como uma assinatura das ocasiões cantadas é expresso. Ação da voz de Álvaro. Uma assinatura que faz a diferença entre receber e armar uma promessa da modernidade, plantando a questão mais geral de que uma assinatura seja um corpo com voz entregue ao mundo (sedutor, repelente, desdenhoso, vivaz, sério, divertido e cruel); cabendo-nos apenas ficar ao longe e escutar que tempo nenhum há de ser sem o canto poético que canta a separação, o abandono e o êxtase da angústia de qualquer um de nós: narcisos sem quase modernidade alguma para sempre em todo o mundo do seu após. E assim canto:
Ode Triunfal
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com o que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
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De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes e óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos.
Da faina transportadora-de-cargas dos navios.
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!
Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés – oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de l'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!
Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
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Presença demasiadamente acentuada das cocottes;
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!
(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo?)
A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!
Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes –
Das colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos com uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!
Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!
Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, betão de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!
Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parcks.
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes –
Na minha mente turbulenta e incandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
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Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.
Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).
Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.
Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento da deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo dos navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!
Up-lá-hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!
(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah! olhar é em mim uma perversão sexual!)
Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,
E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!
Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu não me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissenções domésticas, os deboches que não se suspeitam
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!
Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
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Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! –
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosa gente humana que vive como cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!
(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)Álvaro de Campos
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA:
CAVELL, Stanley. Um tono de filosofia — Ejercicios autobiográficos. Madrid: A. Machado Libros, 2002.
PESSOA, Fernando. Poesia — Álvaro de Campos. São Paulo: Companhias das Letras, 2002.
DERRIDA, J. La Voix Et Le Phenomene. Paris: PUF, 2009.
Marcus Alexandre Motta
Doutor em História Social da Cultura/UFRJ, 1997
Professor Adjunto de Literatura Portuguesa, UERJ
Professor dos Programas de Pós-Graduação em Letras, UERJ
(Literatura Portuguesa/Literatura Comparada/Arte e Cultura Contemporânea)
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero12/marcus.html
Número 12 (1º semestre de 2010) - ISSN 1981-870X