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Manhã submersa: A força da afetividade da escrita em “Gesto de posse da vida” na narrativa literária de Vergílio Ferreira
Terezinha de Jesus Aguiar Neves
tjneves@terra.com.br
O grande escândalo da vida é que a
vida sou eu [...].
V. FERREIRA
Manhã submersa: a força da afetividade da escrita em “gesto de posse da vida” na narrativa literária de Vergílio Ferreira
O propósito deste estudo é refletir sobre a afetividade em Manhã submersa, de Vergílio Ferreira. A partir disso, buscaremos uma fundamentação filosófica sobre o tema, também embasamento teórico em alguns ensaios metafísicos e de crítica literária de Vergílio Ferreira. Com isso, pretendemos estabelecer alguns vínculos entre a narrativa de ficção e a parte teórico-reflexiva do escritor enquanto pensador metafísico.
Palavras- chave: afetividade. Memória. Consciência. Subjetividade. Linguagem. Arte. vida.
Manhã submersa: the force of affect in the narrative prose of Portuguese writer Vergilio Ferreira, seen as “an act of possession of life”
The purpose of this article is to put forward some views on the concept of affect in the book Manhã submersa, by Vergílio Ferreira. Taking this as a starting point, an attempt is made at grounding the essay theoretically in philosophical thinking about its theme, as well as in philosophical essays and in the body of literary criticism on Vergílio Ferreira. An attempt is also made at establishing some relationships between fictional narrative and the domain of theoretical-reflective thinking in the writer´s own work.
Keywords: affect. memory. Consciousness. Subjectivity. language.art. life.
Imaginemos que temos nas mãos uma concha apanhada ao acaso sob o olhar de alerta curiosidade. Em contato com esse pequeno corpo estranho e interessante, assim, por gesto apressado de posse, nesse momento, muitos pensamentos podem nos ocorrer e a imaginação também acelerar. É pela surpresa, também pelo encantamento que iniciamos a leitura de Manhã Submersa, assim, sem planejamento, pela simples razão de que o livro chegou até nós por mãos amigas.
Para além da simples curiosidade, o contato com Manhã submersa, para nós, após uma noite de ávida leitura, foi motivo de interesse maior. Diante de uma narrativa empolgante, como tal, muitos foram os instantes em que tivemos
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− à semelhança de uma caminhada junto ao mar quando somos surpreendidos pela beleza da Natureza de aguçar a atenção para o espetáculo da escrita literária. No percurso de leitura, fica evidente o modo como o escritor de Manhã submersa lida com a linguagem, que é revestida de clareza e concisão, demonstrando, inclusive, grande esmero estético. É nisso que circunscreve a escrita dessa obra.
Sobre esse livro, o que nos parece é que a narrativa é aparentemente memorialista. O narrador, de maneira insistente, vai convencendo o leitor de que tudo que aí é contado se refere a muitos acontecimentos do passado, do tempo de sua adolescência, portanto, são lembranças de 20 anos atrás. Tocando em experiências pessoais dolorosas, o narrador de Manhã Submersa traz ao centro das lembranças o tempo vivido em um seminário católico do interior de Portugal. A narrativa toma, assim, feição memorialista girando entre dois pólos: o fora e o dentro, ou seja, o mundo das aparências (o fora, o exterior) e o mundo da própria consciência do narrador, do passado que é evocado em suas meditações sobre a vida. Vale lembrar que é na adolescência que o alargamento da compreensão do mundo vai crescendo; esse narrador anseia, portanto, entender melhor a realidade na qual está inserido.
Uma vez posta estas noções sobre a narrativa, o que parece surpreender em Manhã submersa são as questões existenciais. Por certo, não é fácil eleger uma única idéia como tema de reflexão, e dessa aparente confusão de leitura sempre surge um aspecto dominante. Perseguir o tema eleito significa que todo o movimento da leitura estará voltado para ele. Na condição de leitor, temos de interrogar o texto a cada passo, havendo sempre um limite que se impõe: que movimento anima tais palavras do autor? Que inquietação do escritor faz com que a narrativa se prenda em constantes repetições de palavras? Então, sempre cabe ao leitor a ilusão da captura de algo que a narrativa parece evidenciar. Indagar o pensamento de outrem é uma possibilidade, porém, não devemos esquecer que estamos sempre na área da indeterminação da fala do outro, no campo inatingível da experiência alheia que nos escapa sempre. Assim, o “gesto da posse” é sempre ilusório. Desta forma, pensar as idéias da afetividade, do esquecimento, do dentro e do fora
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em Manhã submersa, significa buscar interpretações que nos parecem viáveis durante a leitura deste livro. Vamos, portanto, interrogar o texto, seguir em direções sempre refreada pela incerteza, diante de uma narrativa literária tão rica de conteúdos humanos. Essa atitude, como enfatiza a filósofa brasileira Marilena Chauí, para o leitor, expressa “o desejo de rasgar a carne da obra” na tentativa de inspecionar intelectualmente alguns momentos da leitura. (CHAUÍ, 2002, p. 33).
Vale acrescentar que diante de uma narrativa empolgante, tensa e criativa, a decisão de escolha de uma idéia para refletir sobre Manhã submersa, em especial, deriva de um movimento de leitura que se ampliou para os textos de crítica literária e de pensamento metafísico de Vergílio Ferreira; portanto, significa a tentativa de formulação de algumas de nossas inquietações durante o exercício de leitura.
A noite, o silêncio e o vazio
O enigma do homem, a interrogação sobre o seu destino, aguardam-nos inexoráveis à hora do fim, quando o silêncio ressumar do ruído que nos aturde. (FERREIRA, 1969, p. 357).
Devemos fornecer outros elementos sobre Manhã submersa. A história da vida de Antonio Borralho é uma narrativa que revela o sofrimento e o desespero desse personagem enquanto jovem seminarista “sem vocação” para o exercício religioso. Romance memorialista, como é visto por alguns críticos, escrito no inverno num tempo “surdo de angústia”, como aparece no capítulo inicial. É assim que o narrador vai retomando seu passado, por via da memória, ressaltando os fatos mais angustiantes de sua infância pobre.
Sobre a narrativa em primeira pessoa, a estudiosa de literatura portuguesa, Dal Farra, explica: “Se o narrador é ao mesmo tempo personagem, ele desempenha uma visão avec”. E acrescenta: “Assim, o narrador detém o discurso e a visão avec, quando fala sobre si ou sobre a ação e as personagens pretéritas, utilizando a subjetividade típica do emprego do
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personagem “eu” e dos tempos verbais − presente, passe composé e futuro”. (DAL FARRA, 1978, p. 132).
No avesso da experiência vivida é que o narrador vai recompondo sua própria vida, ou seja, com sua visão avec, esse personagem vai retomando seu tempo de outrora. Numa dialética entre “eu-mundo” e “eu-indivíduo”, as lembranças do passado vivido como seminarista são evocadas. Muitas lembranças são como nuvens negras que pairam, silenciosamente, na memória do narrador. São recordações dolorosas e tristes que ele gostaria de não se lembrar. E tudo fica confuso em sua mente e se assemelha a uma noite bem escura que já não cabe o discernimento de quase nada. Motivo de medo do inesperado, estranhando aquele momento de formal obediência ao sistema interno do seminário, o narrador descreve suas primeiras horas nesse lugar misterioso, conforme o fragmento em destaque:
Marcada a cama de cada um, voltamos à sala de espera para recolher a bagagem Tivemos de ceder a primazia aos mais velhos [...]. Sei que depois ainda fomos à Capela e nos despimos, com um cerimonial esquisito, antes de dormirmos. Mas nessa altura, pesado de sofrimento, um grande apelo final de silêncio e desistência subia para mim desde as raízes da noite. E fechei os olhos. E adormeci. (FERREIRA, 1980, p. 22).
Assim, nesse momento, adormecer pode significar também esquecer para tornar a vida possível. Com Michel Henry, em seu estudo sobre o pensamento de Nietzsche, esse filósofo lembra que “o esquecimento é, antes, a condição de possibilidade da vida como a contração interior pela qual ela se harmoniza consigo no crescimento, é a força que precede toda força, a potência de toda potência [...] aquilo a que Nietzsche chama saúde”. (HENRY, 1985, p. 25).
De fato, já nas primeiras páginas de Manhã submersa, o leitor percebe que o personagem principal tem verdadeiro pavor da noite, quando a solidão, o silêncio e as lembranças de acontecimentos desagradáveis do dia pesam sobre o seu frágil corpo. Para evitar tal sofrimento, é preciso esquecer, pois, entre as aparências do mundo e a consciência inquieta do narrador, o exame de algumas questões particulares levará a momentos de aflição diante de elementos ainda muito confusos para o jovem seminarista. Tudo se passa
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como se houvesse entre o meu corpo e o corpo do mundo um ponto obscuro, “zona opaca”, como lembra Marilena Chauí. E a psicologia nos ensina que a compreensão de mundo depende de um processo de maturação.
Vale lembrar que a Literatura, como arte, é o esforço do pensamento que se faz no silêncio e na solidão. Se há compensação nessa tarefa, é o encontro da palavra desejada, inclusive, da idéia e da inspiração. Assim, podemos entender quando Vergílio Ferreira escreve sobre a arte em Invocação ao meu corpo. Diz ele: “Do meu corpo centrado no mundo irradia a vida em que um homem pode viver, ou seja, o mundo humano, ou seja, simplesmente o mundo”. (FERREIRA, 1969, p. 292). Decerto que Manhã submersa encerra questionamentos sobre a própria condição humana, justamente diz respeito ao estar-no-mundo. Para intensificar tal problemática, é preciso a sincronia de forte consciência, determinada num sentido de pensar a vida humana com seus mistérios e sua presente transitoriedade. Inegavelmente, Vergílio Ferreira usa todo seu esforço literário no sentido de condicionar a escrita como uma experiência de extremada vocação para o trato de questões humanas.
No intuito de abordar Manhã submersa, voltemos à narrativa. Sabemos que o pequeno Antonio Borralho tem origem pobre, e sua família entende que ele terá o destino assegurado se tornando seminarista. Quanto a isso, o narrador comenta tão logo inicia sua narrativa:
Inesperadamente, por minha dor, eu descobria em mim o aceno de um passado. Era a grande montanha a oriente, a sua liberdade espacial, era o bafo quente de um amor perdido, a flor original de uma alegria morta. E então voltei para lá a minha face molhada, e tudo em mim disse adeus longamente. (FERREIRA, 1980, p. 13).
No recurso da luz do dia, o narrador tem a confirmação de um instante feliz: “alegria breve” enquanto curta contemplação da beleza da Natureza; “alegria morta” quando o distanciamento do olhar já não permite mais a distinção das coisas. Esse narrador tem o entendimento de que tudo, na vida, se resume no instante, pois tudo é transitório. Por isso, talvez, Vergílio Ferreira repita muitas vezes em seus textos, que somos condenados a sentir uma “alegria sangrenta” diante do incansável movimento do tempo. Portanto, o
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tempo assegura ao homem um constante fluir dos instantes, enquanto a nossa humanidade parece ficar perdida no além do inegável mistério da vida. Assim, sem escolha, deixamos para trás uma parte de nós que o tempo nos toma, sem nos consultar.
Com base em uma memória vigilante, o narrador de Manhã submersa parece viver em “alarme permanente” sempre trazendo à mente fortes lembranças do passado. Nesse estado de tensão, há uma mediação do fora do mundo e o dentro da subjetividade humana. Enquanto aprofunda suas meditações, o personagem principal desse livro de Vergílio Ferreira, em seu “gesto noturno” de consciência vigilante, revive o passado, mentalmente, na suposta tentativa de retrair o tempo e recuperar os fragmentos de vida de um jovem, inseguro e atormentado por acontecimentos que ele ainda não compreendia bem.
Vergílio Ferreira é visto pelos críticos como um escritor existencialista, com esse aspecto também parece concordar Alfredo Bosi quando faz a apresentação do livro de Maria Lúcia Dal Farra, O narrador ensimesmado. A respeito desse texto, o críticoliterário brasileiro acentua: “Na atmosfera existencialista que penetra os romances de Vergílio Ferreira, a escritura seria a rigor, um exercício fenomenológico que tem por objeto as relações entre a consciência e a palavra, o eu e o ato de escrever [...]”. (BOSI, in: DAL FARRA, 1978, p. 13).
O trabalho com a linguagem de Manhã submersa não poderia ficar imune a esses aspectos, já que Vergílio Ferreira demonstra um grande esmero com a escrita. Na narrativa desse livro há uma linguagem que avança em permanente tensão entre presente-passado, enquanto é afirmada uma consciência em alerta do narrador sobre o “eu” e o mundo. Nessa permanente dialética existencial, é que o jovem Antonio Borralho vai formando sua compreensão da realidade do seminário com seu constante silêncio opressivo, determinado pela conduta repressiva de adultos sempre dispostos a adotar medidas severas para punir eventual desobediência, assim, contraditório para o que se poderia esperar do comportamento de pessoas religiosas que lidam com a educação de adolescentes. Vivenciando a dicotomia da verdade e da
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aparência, a narrativa de Manhã submersa é escrita no limite desse conflito de consciência do narrador, que sempre se refere aos momentos de solidão e inquietação que vivencia em permanente estado de alternadas lembranças. Se o adolescente da narrativa, no passado, não teve o poder da palavra, no presente da narrativa, no ato de escrever, esse momento é de esbanjamento da linguagem em termos de tomar a palavra para exercitar a imaginação criativa e as meditações filosóficas. Sem dúvida, Manhã submersa revela o compromisso do autor em pensar a literatura como “extensão de nós”, como escreve o próprio Vergílio Ferreira em seu ensaio, Arte Tempo, “porque o homem é em tudo a sua presença humana”. (FERREIRA, s/d. p. 14). Lembrando que a arte é o lugar da emoção e a literatura, para Vergílio Ferreira, “é a arte mais difícil é a que se define pelo combate com a palavra, porque ela é extremamente redutora e a literatura é uma forma de extravasar para lá dela [...]. (FERREIRA, s/d., p. 16).
Da afetividade com a palavra e da constante tensão com o procedimento da escrita, encontramos no poeta angolano, João Maimona, um exemplo de poesia que expressa, supostamente, esse zelo do qual tanto fala Vergílio Ferreira. Vale citar o poema “Nos desejos da dor”, da obra As Abelhas do dia:
as flores feitas dos dias
ficam nos dias
que nos rebentam no colo.as asas feitas da polpa
da noite saída do mar
dão ao mar o frio da noite.o deserto dos lábios
que crescem na sede da luz
reabre-se em pé da luz.é porque as flores dos dias
e as asas da polpa da noite
e o deserto dos lábiossobrevivem nos desejos da dor.
(MAIMONA, 1990, p. 31).
Não surpreende que a palavra desejada seja encontrada na angústia da espera, tanto para o poeta como para o escritor, supomos que o desejo da palavra justa seja fundamental diante do movimento da escrita. Lembrando
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ainda que, conforme afirma o próprio Vergílio Ferreira, em se tratando de criação artística “há no homem uma necessidade ou predisposição para que a obra de arte exista”. (FERREIRA, s/d. p. 20). Para além do “sentimento estético”, talvez ainda por sua própria imposição, conforme lembra Vergílio Ferreira, diante da escrita enquanto expressão da dificuldade do encontro da palavra ansiada ou, da “palavra adiada” como escreve Maimona em um poema, é quando as “idéias têm sangue”. (FERREIRA, s/d., p. 22). Podemos até pensar que no auge da emoção, o escritor ou o poeta parece receber um fluído vital para o exercício da escrita, que é determinado por forte querer, assim, também, é que a escrita se torna um gesto de grande afetividade pela palavra. Em conformidade com o pensamento de Vergílio Ferreira, vale lembrar que “as palavras não são um ser material na nossa língua ou na língua que entendermos”, porque justamente a palavra, como idéia, traz uma revelação ambígua, que tem assim uma face visível e outra em sombra, sendo que, essa também mantém uma ressonância com a primeira, porém, dela se distancia para dizer outra coisa, sempre por repetição da diferença. (FERREIRA, s/ d., pp. 23-24).
Encontramos em Manhã submersa uma escrita que revela os momentos de particular angústia e dor do personagem principal diante de situações opressivas, que o jovem Antonio Borralho enfrenta no cotidiano do seminário. Também, há na escrita momentos em que o silêncio é a expressão daquilo que a própria linguagem não consegue exprimir diante da tematização da dor intensa, que atinge o jovem seminarista em seus diferentes momentos de solidão. Mas é na escrita que o corpo do texto toma forma, é na carne da narrativa que emoções e sentimentos encarnam na linguagem, e a palavra, por assim dizer, se torna viva.
No capítulo 3 de Manhã submersa, encontramos um exemplo de registro da linguagem enquanto possibilidade de descrever emoções. No parágrafo final, o narrador comenta assim:
E uma saudade densa caiu-me, como um peso, na alma. E chorei longamente, um choro recolhido, só choro para mim. Chorei quanto
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pude, até que a noite foi minha irmã e eu fui irmão da noite, um diante do outro, calados e de mãos dadas. Então lembrei- me, por entre o pranto, de um pequeno saco de figos que minha mãe me dera à despedida. Procurei-o na saca da roupa, puxei-o para a cama. E o sabor deles, que me encheu a alma, trouxe-me a presença de um carinho morto, [...]. (FERREIRA, 1980, p. 30).
A passagem acima mostra que o fascínio da noite atrai o jovem narrador ao silêncio e à meditação, como se ele buscasse um estranho abrigo para o seu espírito tão conturbado pela falta de esperança de sair do seminário. Acreditando não ter vocação para o ofício religioso, o sofrimento do jovem é grande. Tudo se passa como se, na intimidade da noite, nessa entrega sem reserva à escuta de sua inquieta consciência, assim, fosse possível obter, afinal, uma compensação qualquer. A configuração da noite pode servir de ilustração para aquilo que, mesmo sendo ameaçador, se revela como aparente possibilidade de resgate de algo íntimo e precioso que faz parte da centralidade de suas emoções.
Escolhemos esse momento para trazer algum pensamento sobre a arte, lembramos que Blanchot assegura que o artista diante da obra “mesmo tendo a decisão do começo’’, ele será continuamente acometido de incerteza. Nesse sentido, o “risco de errar” como assegura o filósofo e a solidão imposta ao ato da escrita, tudo isso significa “o movimento de sacrifício’’ do artista para que a obra se realize. E, “o silêncio, a reserva de paciência fazem brotar de seu seio, não apenas como a centelha que acende a extrema tensão mas como o ponto brilhante [...], o acaso feliz da despreocupação”. (BLANCHOT. 1987, p. 174-176). Por conseguinte, diante da vontade de realização da obra, o artista tem momentos que oscilam entre preocupação e despreocupação, paciência e impaciência, tudo, enfim, é como “uma força surda’’ que opera durante a realização do trabalho solitário do artista.
Quanto a isso, na evolução da narrativa de Manhã submersa, lemos já no início do capítulo 8 algo que remete para o processo da criação literária. É como um fluir constante da memória do narrador principal, sempre com acréscimos de fragmentos do passado e com detalhes de seu estado emocional e psicológico atual, que, o próprio perfil humano do protagonista vai
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se definindo com traços mais nítidos de seus temores, angústias, indignação, descrença nas pessoas e insubordinação ao sistema opressivo do seminário:
Porque eu desejaria proclamar precisamente que o Seminário era uma prisão, que um ministro era talvez superior a um presidente e tudo o mais que fosse necessário para gritar a traição à minha infância. E nada disse. E, num susto repentino, outra vez eu senti que a nossa comum desgraça era invencível como a condenação do sangue. (FERREIRA, 1980, p. 60).
Temos nesse fragmento um instante de reflexão do narrador, através do qual ele exprime sua indignação com tanta opressão vivida no seminário; indiretamente, temos um momento em que se percebe um traço de amadurecimento do personagem. Para o conjunto do que, no corpo da narrativa, estaria, com rigor, se referindo apenas ao fluxo da memória do narrador, justamente, também, aparece um lado em que o gesto amoroso da escrita é conduzido no sentido de mostrar a vontade de querer do narrador. Assim, num alto grau de insatisfação com o seu destino, ele mobiliza toda sua vontade num único sentido de agravamento do seu querer; portanto, seu esforço é na direção de não deixar diminuir seu anseio por mudar sua própria vida. Assim, também associada à imaginação da ficção narrativa vem o compromisso do autor voltado para pensar a arte literária. A decisão do narrador de Manhã submersa de falar de suas lembranças parece ser um recurso literário usado pelo escritor para fazer também uma reflexão sobre a arte literária. E a memória aí, então, não seria apenas uma faculdade associada à retomada de lembranças de um passado vivido, pois, o que afinal é afirmado, assim parece, é a vontade de corresponder à criação literária à própria vontade da vida, ou seja, falar do existir humano na plenitude de uma vida de adolescente. O que surpreende o leitor desse livro de Vergílio Ferreira é justamente a maneira diferente do autor em lidar com a linguagem, repetindo sempre as mesmas palavras, mas com conotações diferentes.
Enquanto realização da ficção, supomos que a narrativa de Manhã submersa traz algo de que fala Walter Benjamin enquanto crítico da obra de Proust. Segundo ele, na obra do escritor francês, há todo um labor de rememoração que seria “o trabalho de Penélope da reminiscência”. A esse
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respeito, uma indagação de Walter Benjamin: “A memória involuntária, de Proust, não está mais próxima do esquecimento que daquilo que em geral chamamos reminiscência?” (BENJAMIN, 1993, p. 37). Pressupõe o crítico que o aspecto do esquecimento, em Proust, é uma força oculta que dinamiza a vontade de desfazer os fios da memória do passado, então, o querer é no sentido de tecer outra trama possível na “tapeçaria da existência vivida” e imaginar outra possibilidade para o existir. Se no passado os acontecimentos são encerrados e não podem ser trazidos novamente à experiência, na esfera da narrativa eles são, assim, de novo elaborados e servem como “chave” para abrir a porta da imaginação, então é quando o passado é assim recriado .
Todo evento de criação literária exige, de fato, a solidão, a espera da palavra desejada, a angústia com o vazio da própria palavra que não dá conta de dizer os mistérios da própria vida; tudo, enfim, contribui para tornar o ofício da escrita uma tarefa difícil. O artista vive assim “o desespero laborioso” conforme repete sempre Blanchot em seus textos sobre a literatura. Por conseguinte, o gesto da escrita tem duas faces: uma que representa a “alegria breve” com a palavra justa ao movimento da escrita; outra que mostra o momento de tensão enquanto palavra que não é capturada no movimento da criação literária.
Em conformidade com isso, encontramos no poema a seguir, de João Maimona, a ocasião em que o poeta angolano reconhece a grande importância da palavra como eco de múltiplas vozes da tradição africana, nesse sentido, é essa “alegria breve” de que fala Vergílio Ferreira, quando se refere ao gesto da escrita como possibilidade de afetividade pela palavra:
O que (não) está ausente
sucedem-se as palavras
eu vejo as palavras azuis
que hão-de sustentar o túnel
com a voz do rio
da terra repartida.
sucedem-se as palavras.
as palavras se transformam
no olhar sem desespero
que se não transformam.sucedem-se as palavras.
e as vozes permanecem
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ausentes e vividas
no desenho da catástrofe.(MAIMONA, As Abelhas do Dia, 1990, p. 39).
Do gesto imaginado ao gesto que explica
O gesto da criação sou eu que o executo e ninguém mais por mim. (FERREIRA. 1969, p. 319).
Na parte introdutória da obra Do mundo original, Vergílio Ferreira afirma que a existência humana está condicionada por “três zonas” que ele classifica assim: a exterior corresponde à apreensão da realidade que nos cerca; a interior diz respeito à nossa subjetividade, ao movimento da nossa consciência; a terceira, o escritor chama de “eu profundo” por estar referida às nossas necessidades de especulação metafísica. (FERREIRA, 1979, p. 12).
Por tal distinção, num primeiro momento, parece que tendemos a uma ordenação de nossa compreensão da vida. Ocorre justamente o oposto, como observa Vergílio Ferreira, pois estamos sempre imersos em grande desordem existencial em relação às exigências do próprio dinamismo da vida diária. Para a meditação sobre a nossa existência, portanto, seria preciso justamente instantes de quietude, ficarmos em silêncio para que “a verdade íntima de tudo” possa, assim, emergir do fundo de nosso ser. (FERREIRA, 1979, p. 14).
Associado a esse modo de pensar, também Marilena Chauí apresenta uma idéia interessante quando reflete sobre o pensamento de Merleau-Ponty, acentuando que o aspecto metafísico corresponde a uma “abertura para o que não é nós”. Assim, a experiência da interioridade exige uma disposição para fazer “a junção de um fora e de um dentro”, que pode ser alcançado mediante
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a escuta do silêncio. Então, a dualidade do visível e do invisível se contrapõe quando a experiência da interioridade é buscada. (CHAUÍ, 2002, p.137-138).
É preciso ressaltar que o narrador de Manhã submersa deseja o silêncio, talvez, para elaborar as cenas do passado e meditar sobre sua curta vida. Neste sentido, basta citar um fragmento do capítulo 8:
O vento gelado de Dezembro esperava-nos às esquinas, de dentes finos à mostra. Uma grande mão milenária, enrugada e negra, pairava no céu, longamente, como asas de um enorme abutre... E eu olhava o silêncio fechado de tudo isso, sentia na escuridão transversal de tudo isso, no vago halo expectante, um súbito medo da morte − e o coração parava-me de alarme. (FERREIRA, 1980, p. 66).
No que concerne à abertura ao mundo, a angústia do desconhecido parece tomar conta do narrador. Por conseguinte, o espanto parece ser um aspecto que domina esse estado de observação da realidade. Sobre isso, lendo Eduardo Lourenço como crítico da obra de Vergílio Ferreira, há um momento em que ele acentua que “o estatuto do eu” referido ao “primado da subjetividade” na obra desse escritor aparece como uma “intensa dramatização” na encenação homem-mundo. Tudo isso se constrói no corpo da narrativa como pequenas incisões na escrita, instantâneos da palavra esperada como “aparição” e instante em que o “eu” do escritor se encontra consigo mesmo, daí o espanto, ou o “deslumbramento, pânico, revelação de um sentido de verdade, enfim, tudo o que o escritor entende como indeterminação no mundo e mistério”. (LOURENÇO. In: Revista Colóquio, nº. 90, s/d., p. 26). Por outro lado, o crítico literário português acentua que a “jubilação”, nos romances de Vergílio Ferreira, parece ter por fundamento um estado de profunda “alegria breve” enquanto representa o instante do encontro da palavra esperada, em especial, destinada a exprimir a força de um “adestramento necessário” no pensamento diante do processo da escrita. Assim, essa manifestação da força da palavra é recebida pelo escritor num gesto de profunda afetividade. Para isso, portanto, é preciso um mergulho profundo no silêncio e na solidão. Segundo Vergílio Ferreira, esse momento significa uma queda no abismo do “eu profundo” que processa a fermentação
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do mundo num intenso movimento do dentro e do fora de si. Confirmando isso, vale lembrar que grande parte da obra do escritor é sempre um jogo do dentro e do fora, portanto, sempre efetuando uma dialética homem-mundo. Em Signo sinal, temos um exemplo que serve de alusão a esse momento especial quando o personagem principal afirma: “A verdade do homem é uma verdade dialética em que o fora e o dentro estabeleceu um jogo de relações”. (FERREIRA, 1979, p. 40).
Mesmo não analisando a vasta obra de Vergílio Ferreira, endossamos a idéia de alguns estudiosos de que aos personagens desse escritor, o repouso é negado. Movendo-se em inquietações, vivendo quase todos em conflitos de consciência, portanto, sempre em alerta, é isso, talvez, o que torne os personagens tão verdadeiros. Também há uma dose de humanidade neles que, por vezes, deixa o leitor deveras surpreso. Nesse aspecto, Heidegger deve ser lembrado com a seguinte observação: “O humanismo é isso: meditar, e cuidar para que o homem seja humano e não des-humano, inumano, isto é, situado fora de sua essência”. (HEIDEGGER, 1987, p. 61).
Supomos que o leitor de Manhã submersa percebe a feliz construção do narrador principal desse livro, que o autor soube, essencialmente, deixar traços humanos tão verdadeiros. No capítulo 9, encontramos uma breve reflexão desse narrador que representa um dos muitos momentos de autêntica luta interior do personagem diante de imposições completamente absurdas aos olhos de um jovem que anseia por liberdade para realizar seus sonhos.
Então eu endireitava a coluna com violência, e tudo em mim rangia de desespero. A imagem do Inferno esmagava-me de pavor, não bem talvez pela maldição de fogo e de enxofre, não bem pela presença vesga dos demônios, mas pelo desencorajamento da imensa eternidade. Quantas vezes, para dominá-la, eu me pus a imaginar um extensão pavorosa de tempo, qualquer coisa como um número de anos com um quilômetro de comprido em algarismos pequenos. (FERREIRA, 1980, p.131).
Trespassa nesse fragmento toda expressão de verdadeiro pavor, que um jovem seminarista pode sentir diante de um lugar tão opressor. De fato, a idéia de Inferno incomoda até um homem ateu. Talvez o grau de desconforto
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do jovem diante da “imagem do Inferno” tenha sido bem maior a ponto do pequeno seminarista sentir todo o corpo dolorido.
Em Carta ao HUMANISMO, Heidegger reflete sobre a questão da verdade. Longe de tentar um aprofundamento nas idéias do filósofo, pensamos que o homem ao se abrir ao mundo quer entender o mundo para agir sempre nele. Então, o estar-no-mundo exige ter uma predisposição à abertura, para que, assim, seja possível a obtenção de novas experiências na vida. Como assinalamos, a questão do abri-se às coisas exige uma consciência vigilante. Acreditando nisso, supomos, Vergílio Ferreira escreve em Arte Tempo, algo bem interessante a respeito da arte em geral.
Como se a voz que fala ao homem não fosse a sua voz mas uma outra que lhe é anterior e passou também por ele. E toda a questionação da arte começa aí, na evidência de que ela não é um acrescento do homem, mas o esclarecimento ou superior objetivação do que lhe era já consubstancial. A relação do homem com o mundo fala a linguagem da emoção, ou seja, o que não é ainda linguagem. (FERREIRA, s/d., pp.15-16).
Abordada a dimensão sensível da arte, Vergílio Ferreira privilegia, na totalidade de sua obra, questões humanas intensas. No campo da elaboração da linguagem, o escritor de Manhã submersa dá ênfase a um modo especial de usar a escrita no sentido de emocionar o leitor, quase sempre, focando questões familiares em seus textos de ficção. Segundo Eduardo Lourenço, nesse livro, o autor obstinadamente busca evidenciar de forma original os aspectos humanos de abandono, medo, inocência, pureza, “infância perdida”, aprendizado de mundo, enfim, tudo o que um jovem solitário pode sentir diante de um mundo opressor. Eduardo Lourenço também acentua que quase tudo na narrativa de Vergílio Ferreira tem um desdobramento, pois há sempre uma intensificação posterior de algo que é dito durante a escrita. (LOURENÇO, in: Revista Colóquio, s/d., p. 27). De fato, em Manhã submersa, as meditações do narrador assumem uma feição para além do âmbito pessoal. Nas falas do narrador, o agônico movimento da consciência do personagem toma dimensões maiores, ampliando, então, o campo de reflexão, que se estende para o aspecto humano no geral. Nesse sentido, em destaque um fragmento do capítulo 12, que diz muito, especialmente, do sentimento de medo e angústia que nos domina numa situação de risco:
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Um arrepio partia-me das unhas das mãos e dos pés, endurecia-me de angústia, centrava-me contra mim. Já a humildade da boca me refluía ao ventre e uma dor suave me crescia na nuca, quando subitamente eu pensava: “Ouve, desgraçado, espera! Tu vais morrer, lembra-te bem! Vais morrer! (FERREIRA, 1980, p. 130-1).
Muito embora esse fragmento tenha por foco uma situação do cotidiano do seminário, a reflexão do narrador supera a ambiência do particular, pois são questões humanas que se referem ao estar-no-mundo. Vale observar ainda que a narrativa de Manhã submersa não seja linear como o próprio narrador informa: “Impossível seguir, na minha narrativa, uma cronologia contínua [...]. Irei, pois, saltando pelo tempo, apanhando aqui e ali a linha da minha história”. (FERREIRA, 1980, p.123).
Saltando também pelo tempo da narrativa, vamos a outros enfoques. Até aqui, sabemos que em Manhã submersa o tema da memória é um recurso literário usado pelo autor para tratar de várias questões ligadas ao campo do humano. E tudo serve para interrogar o próprio fenômeno existencial. Leitor atento de Heidegger, Sartre e outros filósofos existencialistas, Vergílio Ferreira revela toda uma predisposição em construir personagens, inteiramente, envolvidos em procedimentos de consciência em alarme. Nesse sentido, podemos indagar como se dá o despertar da consciência? Desprezando um aprofundamento em teorias da psicologia, por exemplo, fica a suposição que são justamente certos acontecimentos absurdos que despertam em nós uma inquietude muito grande, daí a necessidade de pensar sobre eles. Parece que em Manhã submersa o narrador enfrenta muitos momentos de grande angústia diante do abalo da consciência.
Mas, violentamente, outra vez a imagem da morte me assolou a alma de pavor. Vi-a logo, diante de mim, avançando inexorável, dando sempre mais um passo para a minha cama. De repente, porém, não sei como, ó Deus, nem nunca o saberei, apoderou-se de mim um orgulho horroroso da minha qualidade de pecador perdido, da minha sorte de condenado. E, desvairado, levantei os olhos ferozes, encarei a morte de frente. “Vem”, urrei-lhe do mais fundo de mim. (FERREIRA, 1980, p.132-33).
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O tom enfático do narrador não elimina o pavor que ele parece sentir da morte. Angustiado com o absurdo da morte, ele tem a “experiência de negatividade”, aqui significa tomar consciência da existência da morte como realidade humana misteriosa. Nesse sentido, escreve Vergílio Ferreira: “vive-se de dentro para fora e é por isso que a morte nos surpreende”. (FERREIRA, 1969, p. 287).
Pressupomos que este narrador tem uma consciência em permanente alarme diante do desespero por viver, forçosamente, no mundo do seminário:
Toda a violência da minha carne rugia até aos astros, como um animal com o ventre furado de um lado ao outro E era daí, da altura incomensurável da minha aflição a prumo, que eu caía depois, verticalmente, desgraçado e triste, até ao fundoda minha confusão. (FERREIRA. 1980, p. 154).
O que parece mobilizar o narrador de Manhã submersa a recordar fatos de seu passado é o próprio clamor da consciência. A memória do passado tão recorrente na narrativa desse livro também faz suspeitar de que se trate da força da imaginação do protagonista principal. Assim, também o esquecimento se faz presente quando o ânimo do narrador é pelo agir no mundo e compor uma vida bem diferente da que está, então, vivendo. Portanto, esse personagem de Manhã submersa parece que sempre está à escuta do clamor do mundo. Assim, compreende-se sua constante inquietude. Por isso, talvez, sempre haja um recuo às lembranças como um modo próprio do narrador de manter acesa em sua consciência a viabilidade de uma vida nova. Há, supomos, sinais disso neste fragmento quase ao fim da narrativa de Manhã submersa:
Perdido de tudo, olhei longamente a serra a prumo, com um amor cruel e faminto como o de um lobo perdido acossado ... Disperso agora, como nunca, em esquecimento e fadiga, subi devagar até o alto de um rochedo donde tudo era ausência, e ali fiquei, longamente, aberto à noite e ao silêncio. (FERREIRA, 1980, p. 187).
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A alusão à perdição de rumo na vida é uma experiência bem sofrida para o narrador. Contudo, parece que esse personagem amadureceu e já não teme a noite e o desconhecido. Por isso ele parece querer experimentar, então, a si mesmo. Em Invocação ao meu corpo,Vergílio Ferreira reflete sobre a existência humana e sobre o gesto da própria escrita literária como uma grande descoberta que o escritor faz de si mesmo ao testar sua própria humanidade:
Pelas mãos, o nosso espírito habita o mundo material, presentifica-nos no corpo como matéria entre a matéria, estabelece-nos uma continuidade entre ele, o espírito e a terra, introduz na açção [sic] prática, no fazer, no modificar a consciência plena de quem age e faz pelas mãos saímos do mais íntimo de nós e chegamos ao mais concreto da “realidade”, pelas mãos realizamos intensamente o mistério da nossa encarnação. (FERREIRA, 1969, p. 311).
Na narrativa de Manhã submersa há a sugestão de que quando somos projetados em direção à realização de certas “evidências” de nossas vidas, isso exige de nós uma vontade firme em direção a certa cintilação que sequer sabemos definir racionalmente. Enquanto, na verdade, o que vigora é um “querer profundo da vida”, como lembra Michel Henry com foco em Nietzsche. Também a vida tem um querer que nos atravessa, sempre. Assim, a afetividade de acordo com o que pensa Henry com ressonância no pensamento de Nietzsche , encontra uma força interna atuante, porque no mais profundo do homem sempre há a alegria de viver. (HENRY, 1985, p. 59). Por conseguinte, na alegria e na dor, estamos diante daquilo que Nietzsche chama de um experimentar de nós mesmos. Nesse sentido, a narrativa de Manhã submersa retoma o elo da afetividade ligada ao procedimento da escrita literária, também incluindo a própria vida, no sentido humano como uma afirmação constante: “Sim, sou uma experiência”, como podemos ler nesta parte que destacamos:
E então sofri um novo ataque da fortuna. Mas ele trouxe-me também a coragem ou o desespero que ainda não tivera para me ver de frente e acabar com tudo de uma vez. Porque nas férias seguintes, como depois contarei, fui o homem perfeito que o meu ardor esperou − e saí. (FERREIRA, 1980, p. 194).
Com efeito, neste ponto, o narrador antecipa um desfecho surpreendente para o fim da narrativa, o que vai, certamente, definir o futuro da sua vida. E na duplicidade do foco narrativo, temos um momento em que o
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personagem principal vivencia sofrimento e alívio diante dos eventos da vida. Vamos seguir os últimos passos do narrador:
De súbito, porém, um silêncio. Olhei em roda a terra morta, o peso obscuro do céu. E tremi ainda. [...]. E era como se toda a terra fervesse em labaredas, sob a hirta majestade do pavor das profecias...
Até que, finalmente, depois de uma última ameaça, os cânticos se afastaram lentamente, para longe e nunca mais voltaram. Surpreso do silêncio, fui emergindo devagar da minha estupefacção [sic], ergui os olhos ao céu; enchendo a abóbada de horizonte a horizonte, um deus de majestade cerrava os olhos mansamente, diluía-se em azul.
“Estou vivo ainda, estou vivo ainda − só o Gaudêncio morreu.” (FERREIRA, 1980, p. 204).
O que parece marcante nesse relato é a certeza do narrador da plenitude de estar-no-mundo, de manter ainda o elo da afetividade da vida. E o narrador de Manhã submersa, em momento decisivo, afirma a seguir: “Mas eu dizia sempre e sempre para mim: Tem de ser. Quem poderá viver a vida por mim? Só vivemos uma vez. Tem de ser! (FERREIRA, 1980, p. 210).
Submisso a uma vontade firme, o narrador, enfim, tem a necessária coragem para, deveras, assumir seu destino rompendo com a vida no seminário. Agora ele tem certeza de que tudo não será como antes; ele terá que agir para encontrar seu verdadeiro lugar no mundo fora do seminário. Consideremos, a título de acréscimo, que aí sua formação escolar como jovem de origem pobre já estava, portanto, garantida. Surpreende o momento em que a mãe do jovem ex-seminarista exprime uma sabedoria de vida, própria de quem já passara por muitos sofrimentos. Diz a mãe do narrador:
− Meu pobre filho. Meu pobre filho sempre tão triste. Quanto custa viver? Às vezes ponho-me pensar no que tenho sofrido desde que nasci. E no que sofreu o teu pai. E no que sofre toda a gente pobre. E então eu digo se não era melhor que tivesses morrido em pequeno. (FERREIRA, 1980, p. 211).
Com efeito, a sinceridade dessas palavras parece ter abalado o jovem Antonio Borralho. Ele diz quase em sussurro: “Eu sabia, como não sei explicar, que minha mãe tinha pena, uma pena grande, tão grande como a vida, de que eu não pudesse salvar-me”. Reflexo de um olhar interior, meditativo, o narrador ainda acrescenta:
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Foi então que senti como era imensa a distância que eu teria de percorrer, se quisesse dominar o meu futuro. Mas nesse mesmo instante, despedaçou-me uma súbita revolta mais alta e mais forte do que quantos houvesse. E disse para mim: “Hei-de fugir, hei-de vencer. (FERREIRA, 1980, p. 211).
Determinado a viver uma vida fora do sistema opressor do seminário, sabendo intimamente que não fora destinado à vocação religiosa, restava ao jovem só a certeza de que aquele lugar na vida não era o seu. Essa era uma verdade que correspondia a uma decisão bem firme do jovem narrador por agir para mudar.
Encaminhando para o final da narrativa de Manhã submersa, sabemos que o jovem Antonio Borralho, repentinamente, numa festividade familiar, toma uma bomba e ateia “fogo ao rastilho”. Sobre esse evento, segue a narração do personagem principal:
A chama fervia pelo rastilho dentro, aproximava-se vertiginosamente da bolsa de pólvora. Uma placa de aço incandescente colava-se-me, por dentro, ao osso da fronte, queimava-me os olhos uma ácida lucidez. Eu estava sozinho, diante de mim e do mundo, perdido no súbito silêncio em redor. Mas no instante-limite da explosão, no ápice infinito em que tudo iria acontecer, um impulso absurdo, vindo não sei de que raízes, fez-me arremessar a bomba. (FERREIRA, 1980, p. 213).
A ênfase dessas palavras evidencia o desejo do narrador em querer uma mudança de vida. Neste ponto, vale lembrar uma reflexão de Vergílio Ferreira sobre a nossa presença no mundo, conforme o fragmento a seguir de Invocação ao meu corpo.
O gesto define assim a forma primeira de estar no mundo, ou seja, de nos relacionarmos com os outros e até conosco. [...]. Não conhecemos o nosso gesto como não conhecemos a nossa voz; a nossa pessoa que conhece está no manifestar-se e não separada da manifestação para a poder conhecer. (FERREIRA, 1969, pp. 305-307).
Pelo gesto, temos então acesso ao mundo. Segundo Vergílio Ferreira, pelo corpo atuamos no mundo, e as mãos são “sobretudo gesto”, portanto não será difícil admitir que “elas expressam a manifestação espiritual de nosso ser” diante da abertura ao mundo. (FERREIRA, 1969, p. 311). Nesse sentido, o
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gesto da escrita também não poderia ser esquecido. Por sua vez, para realizar integralmente o acesso ao mundo, o escritor depende da palavra com a qual ele mantém um sentimento de afetividade por ser ela a ferramenta que possibilita a abertura ao pensamento.
Para Vergílio Ferreira, “o homem é um ser de horizontes”, supomos que isso equivale a dizer que devemos sempre esgotar todas as nossas possibilidades de criação, de transformação, inclusive, de nós mesmos, ou seja, fazer da vida uma estética de viver. Para o narrador de Manhã submersa, talvez seja essa a maior exigência da vida, pois, conforme suas próprias palavras, “somos um extraordinário milagre da vida”. Na dimensão da horizontalidade, como humanos, gravitamos, portanto, em torno de um e mesmo foco de luz: a própria vida.
Ao final da narrativa de Manhã submersa, fica claro que o narrador principal se afasta do seminário por sofrer uma mutilação em dedos de uma mão. Nos limites deste breve estudo, vale ainda trazer uma observação da estudiosa M.Lúcia Dal Farra quando afirma que cada personagem é apenas “uma impostação, uma máscara que o autor cria a fim de fazer prevalecer acertas afinidades específicas a cada obra sua”. (DAL FARRA, 1978, p. 126).
Mas devemos voltar ao final da narrativa de Manhã submersa. Ainda acentuando seus sentimentos e sofrimento após o gesto repentino do estouro de uma bomba, o narrador descreve, com veracidade, aqueles momentos marcantes de sua vida. “Por isso, nesta hora nua em que escrevo, perdido no rumor distante da cidade, conforta-me pensar não sei em que apelo invisível de vida e de harmonia que não morreu desde as raízes da noite que me cobriu”. (FERREIRA, 1980, p. 217).
A passagem acima mostra de novo a questão do estar-no-mundo como experiência autêntica. No isolamento em que se permitiu, o narrador parece aliviado do peso de viver no seminário. Rompendo em definitivo com a possibilidade de voltar à vida antiga, forçosamente, devido à mutilação nos dedos da mão, ao que parece, o jovem protagonista de Manhã submersa agora deverá encontrar outro caminho para se realizar na vida. Se, pelas mãos vem a
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possibilidade de acesso ao mundo, assim, se nós não podemos explorar tudo que queremos, podemos também romper com o que acreditamos em definitivo que é alguma coisa que deriva de nossa plena recusa interior. Por certo a intensidade de vida desse narrador não encontrou promessa de continuidade no seminário. Uma explicação para tudo isso, encontramos nas próprias palavras de Vergílio Ferreira, em Invocação ao meu corpo: “A tua vida é a vida. A tua palavra é a palavra e o absoluto da sua evidência. E só há um absoluto, que é naturalmente o teu”. (FERREIRA, 1969, p. 340).
A recorrência a algumas reflexões de Vergílio Ferreira em seus textos como ensaísta, aqui, se justifica, pois pensamos que há um claro encontro do pensamento metafísico do escritor em seu trabalho de ficção. Em Manhã submersa, por exemplo, supomos que o que fica submerso na narrativa desse livro é um conteúdo metafísico que sugere muitas reflexões sobre o fenômeno existencial.
Muitos filósofos pensam que a obra, tanto teórica como de ficção, é sempre um “combate” entre o pensamento e linguagem. De fato, para alcançar a palavra em sua luminosidade, enquanto palavra desejada para o movimento da escrita, isso requer um esforço e uma vontade de salvaguardar o próprio exercício de escrita. Por conseguinte, durante o movimento de realização, a obra fica como que submersa numa indeterminação, pouco a pouco, então, vai emergindo da aparente desordem em que parece ser sua origem. Segundo Valéry, a obra já nasce na subjugação de uma “necessidade de origem interna” do artista, algo assim obscuro, a tal ponto que nem mesmo o próprio autor da obra sabe definir. (VALÉRY. IN: “O homem e a concha”, 1991, p. 109).
Com isso, resta ainda acrescentar que a afetividade em Manhã submersa, supostamente, vem referida ao procedimento da escrita e ao “gesto de posse da vida”, isso que parece mobilizar a escrita de Vergílio Ferreira, que é a questão do humanismo de fundamental importância também em sua obra de ficção. Por isso, supomos, ele é tão repetitivo em seu pensamento, como por exemplo, em Carta do futuro quando afirma: “Só há um problema para o homem, só há uma forma de humanismo: a evidência de uma alegria final nos limites da nossa condição”. (FERREIRA, 1953, pp. 33-4).
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Terezinha de Jesus Aguiar Neves
Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Africanas em Língua Portuguesa)/ UFRJ, 2004
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas /UFRJ
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero12/terezinha.html
Número 12 (1º semestre de 2010) - ISSN 1981-870X