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Arquipélagos de insônia brilham no escuro na ficção de Antônio Lobo Antunes
Ângela Beatriz de Carvalho Faria
Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ
angela.faria@ig.com.br
porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro Voz atribuída a uma personagem de Ontem não te vi em Babilônia ou confissão autoral?
António Lobo Antunes
Arquipélagos de insônia brilham no escuro na ficção de António Lobo Antunes
Tomando-se, por base, a metáfora “arquipélago da insônia”, título do último romance do escritor português, António Lobo Antunes, publicado em 2008, pretende-se refletir sobre a reincidência de determinados temas e estratégias textuais na produção ficcional antuniana, tais como, o fato de “não existir narrativa no sentido comum do termo, mas apenas largos círculos concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam”; a “noite” da memória e os “motivos existenciais e poéticos de anulação e obscurecimento do humano”; a segregação dos sujeitos– “ilhas” isoladas da insônia - imersos em sua solidão e nas dobras da memória ; o inerente naufrágio existencial – “navios à vela a desfazer-se nas rochas”; as dicções fraturadas e as elipses; os rastros de escrita e os restos de afetos; o animismo de objetos simbólicos e as imagens obsedantes; a estética do onirismo (“isto não é um livro, é um sonho”) e da negatividade; a escrita análoga à “oscilação”, “arabesco” e “hieróglifo” – típica da cena literária contemporânea.
Palavras-chave: Lobo Antunes. Memória. Arquipélago. Insônia. Onirismo. Negatividade.
“Archipelagoes of sleeplessness” shine in the dark in the fiction of António Lobo Antunes
Taking as a starting point the metaphor “archipelagoes of sleeplessness”, title of the last novel by Portuguese writer António Lobo Antunes, published in 2008, the aim of this paper is to speculate about the recurrence of specific themes and textual strategies in Lobo Antunes´ fictional production. Examples of such themes and strategies are the fact that “there is no narrative in the common sense of the term, but only wide concentrical circles that become narrow and apparently suffocate us”; the theme of the “night” of the memory and the “existential and poetic motifs of cancellation and obliteration of the human being”; the segregation of individuals - “isolated islands” of insomnia - immersed in their solitude and in the folds of memory; the inherent existential shipwreck - “sailboats that dismantle in the rocks”; fractured dictions and ellipses; traces of writing and residues of affection; the animism of symbolic objects and obsessive images; the aesthetics of dreamlike states (“this is not a book, it is a dream”) and of negativity; writing analogous to “oscillation”, “arabesque” and hieroglyph” - typical of the contemporary literary scene.
Keywords: Lobo Antunes. Archipelagoes. Memory. Sleeplessness. Dreamlike states. Negativity.
O arquipélago da insônia, 20º romance, de António Lobo Antunes, publicado em 2008, pela editora Dom Quixote, veio à luz, em duas versões. Uma, mais econômica, encadernada em forma de brochura, apresenta, logo abaixo do título, a figura de um garoto na capa, sem camisa, com um colar ao pescoço, formado por uma bobina de fita de máquina de escrever, semelhante
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a uma medalha. Esse miúdo possui um rosto marcado e dois grandes olhos que nos inquietam: um deles aparentemente perfeito e expectante; o outro, enevoado ou vazado, denota algum problema de visão. O design é do Atelier Henrique Cayatte. A outra edição, por sua vez, considerada de “luxo” e autografada pelo autor, apresenta-se de forma extremamente singular a partir do projeto gráfico e do design da capa – “Ideias com Peso”, da autoria de Luís Alegre e Ricardo Nunes. Na capa branca e dura, de papel linho, sem qualquer imagem, há apenas um efeito luminoso: as letras do título, em relevo, e, provavelmente, plastificadas, brilham no escuro, o que nos parece assinalar o estado de vigília ou de insônia recorrente e com o qual iremos nos deparar ao longo das 263 páginas (poucas, aliás, se comparadas com os outros romances do autor, de cerca de 600). A edição referida vem, inclusive, protegida por uma capa ou caixa protetora, feita de papel de radiografia em que se vê uma coluna vertebral, o que ressalta a visão de claridade da superfície, na semi-obscuridade do fundo. No espaço textual, há uma alusão à presença concomitante de “arquipélagos brancos” e de “arquipélagos normais”, acerca da radiografia de uma determinada personagem (AI,269). Ao empreendermos a leitura do romance, descobrimos, extasiados, a sua possível significação: relâmpagos de clarividência e de ocultação na sombra dos relatos, que se sucedem, distribuídos por 15 capítulos agrupados em três partes, referenciados por algarismos arábicos, sustentam a interioridade dos sujeitos problemáticos, ou seja, aquilo que está oculto sob a pele ou aparência e que se nega a vir à superfície captada pelo olhar do outro com quem se divide uma determinada habitação, suspensa no tempo e no espaço. Parece-nos que a capa e seu invólucro funcionam como uma metáfora da principal temática do romance e dialogam com o título: arquipélagos formados pelas ilhas isoladas da insônia são os sujeitos dos relatos. Imersos em sua solidão, e, estagnados na paisagem, vivenciam a segregação de afetos e apresentam, através de fragmentos ou lampejos, as subjetividades fraturadas. Elos vagos e fluidos, semelhantes ao vaivém das ondas, se desfazem nas dobras da memória.
Façamos nossas as palavras de Maria Alzira Seixo, ao comentar, no Jornal de Letras, Artes e Idéias, datado de outubro de 2008,o título do romance por ocasião do pré-lançamento:
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O título indicia ainda a solidão das personagens, vistas como arquipélago de ilhas desligadas cuja hipótese de elos vagos se perde nessa rememoração repetitiva e desgastante que lhes dá a sensação do tempo imutável, sem renovação: este silêncio que estagnou, horas que se repetem sem avançarem nunca. O não avançar nunca (do tempo), o não acabar nunca (da onda), levam a vida a reiterar-se, lugar íntimo no qual essa onda vinda do fim do mundo (eco da citação de Neruda em ME na qual o narrador se compara à vaga, em tropismo amoroso: como uma onda para a praia na tua direcção vai o meu corpo) se atinge pela pulsão da morte e se transpõe em vaga de escrita que dá a noite sem redenção: e não será manhã nunca. (SEIXO, JL de 18-21 de outubro de 2008, p.18)
Essa narrativa de trevas e não solar, típica da pós-modernidade, apresenta, no primeiro capítulo, uma voz que pronuncia a frase emblemática ou incipit narrativo – “De onde me virá a impressão que na casa, apesar de igual, quase tudo lhe falta?” (AI, p. 13). Trata-se da percepção de um adulto sobre a herdade rural em que se encontra, marcada pela falta e pela carência, e cercada pelos espectros familiares presentes nas fotografias de contornos difusos ou da voz de uma criança, situada no limiar do labirinto? Esse sujeito estagnado, à espera de que alguém venha buscá-lo ou de que alguma coisa aconteça, está acompanhado do irmão que ora o observa ou observa-se a si mesmo no poço, ora demonstra indiferença e alheamento absolutos. Mais adiante, o leitor descobre que se trata de uma criança autista, a mirar-se no poço, que oscila entre “um rosto movente” e “o não responder à nada”, e que termina por ser internada em uma clínica, provavelmente, psiquiátrica. Em vários capítulos, o seu ponto de vista ou a sua voz, assinalada por “dicções fraturadas”, predomina e instaura um imaginário delirante.
Situadas no limiar do labirinto da memória, formada por lembranças e esquecimentos, essas personagens tecem fabulações que se fundem a fatos considerados “reais”, como se constata através da fala atribuída a uma delas: “mas serão lembranças ou episódios que invento, provavelmente não passam de episódios que invento” (AI, 15). As enunciações discursivas de ambas, postas em dúvida, em uma narrativa que desfaz, propositalmente, as certezas absolutas, resgatam as figuras que habitaram a casa, agora deserta: o avô -“terratenente autoritário a abusar sexualmente das criadas da casa, com “uma avidez de canário” -; o pai, considerado “idiota” pelo avô, principalmente pelo fato de ter escolhido uma empregada que servia na cozinha para habitar com
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ele no andar de cima e que veio a traí-lo com o ajudante do feitor; a avó, vista como uma “chávena a tremer no pires”, ao constatar os desmandos do marido e ao vivenciar o desafeto; e tantas outras. Todas, aliás, surgem representadas por objetos ou gestos residuais, por falas recorrentes, lembranças obsedantes, silêncios impostos ou assumidos. À proporção que o romance se desenvolve, algumas ocupam os diversos capítulos e pronunciam-se, isoladamente, revelando o desconhecimento do outro com quem se convive -“não sei quem você era, senhora” – (AI, 16); a violência contida ou manifesta, assinalada pelos atos de esventrar animais, tramar assassinatos, cometer suicídios, impor ordens arbitrárias; a submissão, o medo, a impotência; gestos de afeto esboçados e não concretizados, gestos de afeto pressentidos e rejeitados -“uma ocasião pegou-me na cara, tive medo que me desse um beijo – Chega cá e graças a Deus não me deu um beijo, largou-me desgostosa de mim”.(AI,16).
“Um rosto sem feições a dissolver-se no muro” (AI, 23) e espectros a rondar a casa apontam a desaparição iminente dos sujeitos e a ausência de uma identidade sólida, inerente às estéticas da descontinuidade e da negatividade: “quem habitou aqui antes de nós e não nos procura como as pessoas da sala esqueceu-nos e ao esquecer-nos deixamos de existir, não somos, não éramos, não chegamos a ser, a minha mãe não foi, eu não sou, o meu irmão não é” (AI,18). Ou ainda: “o meu irmão e eu debruçados para o poço” - elemento que reflete a obsessão abissal - “comparando-nos com os afogados que éramos” (AI, 67). A solidão dos sujeitos faz com que se enredem, cada vez mais, nos jogos infinitos do lembrar, que parecem constituir uma luta contra a morte. Tais constatações levam-nos a transpor, para o romance de Lobo Antunes, algumas reflexões críticas de Jeanne Marie Gagnebin, presentes em História e Narração em Walter Benjamin:
A dinâmica do lembrar (Erinnerung), que guia a escrita proustiana, e a exigência da historiografia benjaminiana salvadora de um passado esquecido, desconhecido ou recalcado, se juntam, portanto, neste movimento infinito e microscópico até infinitesimal, no sentido de Leibniz. (GAGNEBIN, 1999, p.78)
A grandeza da Recherche é ter ousado entregar-se, pelo viés da memória involuntária,à dinâmica imprevisível do lembrar, dinâmica que submete a soberania do sujeito consciente à prova temível da
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perda, da dispersão e, como ressalta Benjamin no seu ensaio sobre Proust, do esquecimento. (GAGNEBIN, 1999, p.79)
No entanto, parece-nos que o romance de Lobo Antunes, embora calcado no ensimesmamento das personagens, não corra o risco de registrar, apenas, “o devaneio complacente e infinito do qual o sujeito não mais quer emergir”, uma vez que insere a noção do “despertar” - exigência política e ética, capaz de confrontar o sonho e a vigília e agir, em conseqüência, sobre o real. A dimensão individual do sujeito amplia-se em uma rede social e coletiva e alude aos acontecimentos da História recente de Portugal ou, mais especificamente, ao período pós-revolucionário português, exemplificado pelas ações de barbárie perpetradas pela tropa e pelos camponeses, por ocasião do processo de desapropriação de terras pelo sistema vigente, tais como, a queima do celeiro, a degola das criações, a quebra das patas dos borregos e das vacas, a tentativa de furtar a casa da família de latifundiários perpetuada na paisagem (AI, 15). A voz do avô, dirigida aos “comunistas” - “proíbo-os de me tirarem o que me pertence, o que fabriquei palmo a palmo para me defender de vocês” (AI, 99) - revela a sua prepotência e a tensão entre as classes sociais. Este fato, uma vez registrado em O arquipélago da insônia, suscita-nos a conjectura sobre a intencionalidade autoral. Isso desperta-nos uma primeira hipótese de interpretação a ser investigada: haveria, no início do século XXI, uma recuperação da proposta literária do Neo-realismo português, resguardando-se, é claro, as devidas diferenças? Lembremo-nos de que o romance O meu nome é legião, também da autoria de António Lobo Antunes, talvez se aproxime de Esteiros de Soeiro Pereira Gomes e de Capitães de areia de Jorge Amado, ao focalizar a infância e/ou a adolescência delinqüente da periferia de Lisboa, formada por descendentes de africanos marginalizados pelo sistema social. A ficção assume-se, portanto, como testemunho da História e representante da memória da coletividade, uma vez que denuncia os conflitos entre as classes sociais, a partir de pontos de vista ideológicos que endossam o status quo vigente: “estes camponeses silenciosos, sem pensarem ou escondendo de si mesmos o que pensam seguros de que não lhes serve de nada pensar, obedecendo não da forma que a gente obedece mas da forma que os bichos se submetem por hábito ou por medo” (AI, 238). Ou, ainda: “os
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camponeses todos idênticos senhores, nascidos para terem fome e serem escravos da gente” (AI, 255). No entanto, a própria narrativa alude, sutilmente, ao fato de que tal continuum histórico poderá vir a ser modificado, em surdina (representante do proletariado, o ajudante do feitor apara arestas de madeira com a faca, de forma recorrente). Assim, prenuncia-se, no espaço textual, o processo dialético da práxis social, a partir da conscientização e da reação dos oprimidos economicamente.... Logo, “o momento da construção consciente, o Kairos da intervenção decisiva que pára o curso do tempo, que quebra o mau infinito do desenrolar histórico” (GAGNEBIN, 1999, p.80) encontrar-se-ia na gênese da ficção antuniana.
Outra hipótese que nos ocorreu durante o processo de leitura do romance citado: aproximar-se-ia a literatura de António Lobo Antunes da literatura dos testemunhos dos espaços concentracionários? Aprendemos, com Márcio Seligmann-Silva, em O Local da diferença, que o campo de concentração, na época do Holocausto ou Shoa, constituía para os prisioneiros “a sua única realidade”, e, ao mesmo tempo, a afirmação da impossibilidade de saída e de libertação dele: “não existe mais mundo do lado de fora da cerca”. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.110).
Em O arquipélago da insônia, personagens confinados a um espaço assinalado pela desertificação e ausência de vida manifestam-se: “para além da vila e da herdade só tem mato” (AI, 48). Colocadas em situações-limite de segregação e sentindo-se rejeitadas, pronunciam-se, entre parênteses, uma vez que as suas vozes não serão audíveis: “(nunca virão buscar-nos para a vila, que criatura nos quer?”) (AI,61) Cristalizadas na paisagem, por absoluta falta de opção, desenvolvem expectativas que se frustram: “amanhã pego no braço do meu irmão e partimos destas sobras de casa porque há-de haver seja o que for para além do ribeiro e dos cactos, uma estrada, pessoas, nenhum mulo a mancar” (AI,80).
Segundo Márcio Seligman-Silva, na narrativa de testemunho, cada personagem tem “a sua verdade” e pode narrá-la:
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A narração tecida como forma de se libertar do passado desdobra-se como um doloroso exercício de construção da identidade. Ela é uma narração necessária tanto em termos individuais como também – pensando universalmente – deve funcionar como um testemunho para a posteridade. “Ela é um ato subjetivo e objetivo, psicológico e ético”. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.114).
Os fragmentos de memória, marcas da vida passada e, “ainda hoje capazes de ferir, se tocados”, literalmente rasgaram uma ferida (trauma, em grego) na memória das personagens, e, problematizaram a questão da identidade e da sua vertigem enquanto processo sem fim e sem fundo: “_ Quem sou eu? E em lugar de resposta a lividez do silêncio e um esboço de móveis de que não reconheço a forma ou o cheiro, a certeza que só parte do corpo me pertence, uma fracção da cara, uma fracção de gestos parecidos” (AI, 102). A identidade dos sujeitos e da própria obra de arte surge, na cena literária contemporânea, e, particularmente, em O arquipélago da insônia, descontínua e fragmentada, e manifesta-se em forma de “oscilação”, “arabesco” e “hieróglifo”, o que se reflete pelo entrelaçamento entre imagens e palavras e pela sua não- legibilidade imediata. O “hieróglifo” como utopia lingüística corresponde, na teoria romântica da superação dos gêneros literários tradicionais, à construção de uma poesia que reunisse esses mesmos caracteres do “hieróglifo”, que fundisse imagem e escritura. Os “arabescos”, por sua vez, significam a exposição do indizível através do sentido e da fantasia. Nela os significantes valem mais do que um improvável significado final.
Essa arte da escritura imagética da memória, baseada nas estratégias citadas, apresenta “largos círculos concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam” (LOBO ANTUNES, 2002, p.109) e consubstancia-se em “traços” e "rastros” de escrita, como atestam as ambivalências de sentido, as fragmentações discursivas, as elipses ou omissões, as citações, que revelam o entrecruzar do ocorrido e do agora, presentes no romance em questão. As personagens não possuem, como vimos, uma “identidade sólida” que lhes permita recuperar, com precisão, através do relato, as memórias da sua existência, e, por isso, inventam e transfiguram o real, com exceção do ajudante do feitor, que afirma dizer a
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“verdade” e assume ser o pai do autista. Talvez não seja gratuito o fato de esta personagem pertencer a uma classe social que não simula ser o que não é. No espaço textual, surge a “remexer na memória”, “a olhar lápides do cemitério à procura de seus mortos” sem encontrá-los e “a pensar” que “se uma pessoa não tem mortos não tem vivos também”. (AI, 48).
Os fragmentos mnemônicos das personagens e que compõem o romance assemelham-se a estilhaços que penetram em suas mentes; suas lembranças metamorfoseiam-se em um campo de ruínas de imagens e acontecimentos isolados, incapazes de serem reunidos segundo uma perspectiva lógica. As ilhas de sentido que afloram à superfície, formando arquipélagos, deixam entrever traumas residuais e afetos segregados, resultantes de uma total incomunicabilidade e comunhão entre os sujeitos. O fato de não conviverem com o olhar do outro impede que lhes seja devolvida a sua verdadeira face, uma vez que se isolam em si mesmos, enredados nas dobras da memória:
O que lhe dói por dentro, porquê tanta desolação nesta casa onde as pessoas não se olham, não se juntam, não falam, imensos coelhos nus e imensos alguidares de pêlos, baús de que o perfume se evaporou, só a bomba dá água a acordar-me e ao meu irmão no poço a perguntar ao lodo quem era (AI, 96).
A ficção de Lobo Antunes não se aproxima apenas da literatura de testemunho e dos relatos inerentes aos internos dos hospitais psiquiátricos, mas também (ou principalmente) dialoga com a tradição literária. O jogo complexo dos “eus”, que assumem a enunciação discursiva em forma de contraponto e o entrelaçamento dos tempos narrativos (a superposição do presente, do passado e do futuro), comprovam isso. Em O arquipélago da insônia, nos são transmitidas inúmeras versões das imagens e dos acontecimentos que se anulam umas as outras, através de uma escrita movente e oscilante, que se desfaz e se refaz. Porque inexistem “verdades” estabelecidas ou certezas definidas, uma das personagens (o autista) confessa, através de sua dicção fraturada, decorrente da presença imaginária de um “arame na garganta” a impedir o contar (AI, 170) ou a elocução das
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frases (AI,175): “Não há nenhuma Maria Adelaide no bairro, inventei-a, inventei-vos a vocês e inventei tudo isso porque tenho medo de”. Em seguida, a manifestação de uma outra voz, situada em um outro contexto espaço-temporal, ratifica a invenção citada ao inserir outra versão para os episódios relatados: a herdade rural, citada no primeiro capítulo, e, símbolo de abundância, mando, prestígio e influência do avô em uma determinada localidade rural que se supõe alentejana, por sua vez, será substituída, no segundo capítulo, por um bairro pobre da periferia de Lisboa (Trafaria) e pela situação de penúria da família. O mesmo topos retorna nos capítulos finais e espelha a desolação da paisagem, povoada por defuntos e marcada pelas “ruínas de segadora” e “campos ressequidos” (AI,77). Maria Adelaide, até então, um espectro da menina morta por quem o menino era apaixonado na infância, retorna, ao final do romance, como a mulher do irmão que o abriga em casa, após a saída do hospital psiquiátrico e que é perseguida por ele.
No romance citado, a própria questão da autoria ficcional é posta em dúvida: “o meu irmão a escrever esta história” (AI, 100); “(foi o meu irmão que escreveu estas páginas muito mais devagar do que se passou de fato, não fui eu quem o disse)” (AI, 104). A autorreferencialidade e a autorreflexividade recorrentes deixam transparecer a materialidade da escrita, assim como a distribuição dos signos lingüísticos e caracteres gráficos, de forma inusitada, pelas páginas em branco do papel (AI, 106). A alusão ao lápis -“o lápis completo a meditar”- (AI.119), na mão do menino, revela-se como um instrumento que possibilitava a ele desenhar seres, locais e objetos, em seu processo onírico de criação e de representação do mundo, o que anula, totalmente, a escritura anterior e a “verdade” dos acontecimentos relatados pela personagem:
- Qual herdade?
Uma pergunta tão injusta a mim que a construí sozinho às escondidas de todos quando tinha a certeza que dormiam se calhar acordados a espiarem-me, um trabalhão com a serra, a lagoa, o pomar, galinhas feitas a lápis uma a uma, cada pena, cada bico, cada cor eu que apenas concebia o cinzento e o branco e as inventei a custo (AI, 99).
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No decorrer da leitura, tomamos conhecimento de que estamos diante das estéticas do onirismo e da negatividade, como atestam os fragmentos textuais: “Isto não é um livro, é um sonho”; “o bosque agora cinzas tal como eu cinzas, o meu filho cinzas, este livro cinzas, adeus” (AI,235). A presença de leitores que venham a comungar com o autor (“gostava que se comovessem ao ler isto e me observassem com dó” - AI, 127) já estava implícita na crônica “Receita para me lerem”: “Disse em tempos que o livro ideal seria aquele em que todas as páginas fossem espelhos: reflectem-me a mim e ao leitor, até nenhum de nós saber qual dos dois somos.” (Segundo Livro de Crônicas, 2002, p.111). Resta saber se, imerso na retórica ficcional, o leitor projeta-se a si próprio, no quadro emblemático do naufrágio, com o qual a personagem autista, e, paradoxalmente lúcida, se identifica e que representa “um navio à vela a desfazer-se nas rochas”.“A impressão de que as coisas inanimadas estão repletas de vida e de emoção” (Op. cit., p. 477) surge em O arquipélago da insônia, em contraposição às personagens estagnadas na paisagem e enredadas em sua própria interioridade, diante da iminência da morte e do delírio psicótico. Observa-se, assim, no romance citado, a personificação de objetos simbólicos que se manifestam sozinhos, sem a intermediação dos sujeitos: “retratos que perseguem, desprezam e troçam do sujeito” (AI, 112), “tangerineiras que dão risinhos e imitam as pessoas” (AI,63), “gavetas a desobedecerem, recusando-se a abrir” (AI, 65), “o relógio a concordar com as opiniões das pessoas, subindo o peso da direita e descendo o da esquerda” (AI,65).
Esse viés surrealista, tão caro à ficção de Lobo Antunes, possui uma função catártica, ao desanuviar a tragicidade do relato que acompanha o enevoado naufrágio existencial das personagens. E, nesses momentos, a narrativa de trevas torna-se solar, ao provocar o riso do leitor.
Em O arquipélago da insônia, embora haja referências a Deus e aos homens abandonados por ele (AI, 256), em uma noite sem redenção, surge à figura mitológica de uma Parca que corta o fio da vida das personagens e segue, com o bico da tesoura, a lista dos nomes selecionados para morrer. Trata-se da prima Hortelinda, figuração alegórica da Morte, que aponta o dedo para os escolhidos e deixa cair uma chuva de goivos (flores da família das
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crucíferas que representam estados de alma e formas apelativas). Ao escrever os seus nomes em um fatídico livro, alguns tentam suborná-la para que indique outros, oferecendo-lhe “prendas aflitas, um frango, um leitãozinho, dinheiro que vão pedir emprestado” (AI, 214). Assim, ironia e humor, imbuídos de claridade, coexistem com o lado sombrio na ficção antuniana.
O final do romance, em questão, apresenta a prima Hortelinda a chamar a personagem que queria afogar-se e a preveni-la, dizendo-lhe que, pelo fato de não constar do livro da Morte, não seria bem-sucedida em seu intento. Assim, o responsável pela enunciação discursiva descobre que não há redenção possível e que continuará imerso na noite da memória e da existência: “-Daqui a nada é manhã. E não será manhã nunca” (AI, 263).
O romance, O arquipélago da insônia, termina com a mesma inscrição latina de O esplendor de Portugal - FINIS LAUS DEO – e o próprio autor assume a sua autoria, identificando-se, assim, como uma das personagens criadas por ele “(escrito por António Lobo Antunes, em 2006 e 2007)” (AI, 263). Ao desvanecer os limites entre a realidade empírica e a ficcional, também ele vivencia a segregação dos afetos e o arquipélago da insônia, ao expor os “motivos existenciais e poéticos de anulação e obscurecimento do humano”, uma vez que não haverá redenção possível para o sujeito nessa noite que jamais verá nascer à manhã.
Em Ontem não te vi em Babilónia (romance publicado em 2006), no meio das vozes do romance, quase no fim, aparecem dois parênteses a dizer: “(isto não é um livro meu Deus, acreditem que não é um livro, sou eu)” e “(Chamo-me António Lobo Antunes, nasci em São Sebastião da P[e]d[r]eira e ando a escrever um livro)”. Segundo o próprio autor, em entrevista concedida a Alexandra Lucas Coelho, do Público, em 2002,
Cada vez [isso] deve aparecer mais nos últimos livros. São dois corpos. Eu um, o livro outro. Dois organismos vivos. O livro começa a correr bem na escrita quando eles começam a fundir. Chega a uma altura em que o livro e eu formamos um corpo único – e eu acabo por falar muito mais de mim. Deixo de falar dos episódios da minha vida para falar da minha vida interior.
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Partindo do princípio de que o livro é, metaforicamente, o autor ou a sua própria vida, e não uma representação literária, o leitor depara-se com um infinito jogo de espelhos, o que impossibilita discernir os limites entre simulação e veracidade, claridade e obscurecimento do relato.
“Consonâncias e dissonâncias entrecruzam-se na ficção antuniana, uma vez que a idéia que preside a escritura de Ontem não te vi em Babilônia – “Como é que a noite se transforma em dia?”- ou, se preferirmos, “É possível a noite transformar-se em dia, dentro das personagens?”ecoa em O arquipélago da insônia, Eu hei-de amar uma pedra e em Não entres tão depressa nessa noite escura, entre outros. Em Ontem não te vi em Babilônia, por exemplo, “uma série de personagens - um polícia, uma doméstica, uma enfermeira..., situadas em cidades diferentes, numa só madrugada, vão relatando as histórias das suas vidas. O que contam terá mesmo acontecido? De que é feita a memória das coisas? Onde é que, afinal, reside a verdade? Da meia-noite às cinco da manhã, numa vigília um tanto ou quanto delirante, eles vão tentando adormecer. “Por vezes, até dialogam com quem as cria.”
Observa-se que o tempo presente da narrativa é a noite de insônia. O torpor noturno entre o início do sono e o seu adiamento continuado, ao longo das cinco horas pela noite adentro, conduz o rememorar obsessivo e extremamente disfórico das vozes narrativas. A frase, que deu origem ao título e fez o autor sonhar, foi retirada de um texto do poeta cubano Eliseo Diego e estava inscrita em escrita cuneiforme num fragmento de argila de 3000 anos a.C. Provavelmente, alguém desejava ver uma pessoa e não a encontrou e frustrou-se.
Ao ser questionado sobre o fracasso amoroso de suas personagens, Lobo Antunes pronunciou-se da seguinte forma:
Nunca pensei se as minhas personagens estão loucamente apaixonadas ou se pelo contrário se odeiam imenso. Não é isso que me interessa. O que me interessa é o mais fundo de nós, o negrume onde depois as paixões e as emoções podem brotar. O que me interessa é o que está antes de elas florescerem ou se manifestarem.
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Em uma das entrevistas, publicadas em Confissões de um trapeiro (edição organizada por Ana Paula Arnaut, em 2008), António Lobo Antunes pronuncia-se sobre o seu processo de criação, destacando a analogia entre os atos de contar e de sonhar e a percepção do leitor, ao deparar-se, no escuro, à noite, com um livro “iluminado”:
Tenho a impressão que as emoções se vão esbatendo nas personagens e que,como nos sonhos, a voz flutua/. . ./ tenho sempre a sensação que a tristeza e a alegria já são vividas em um estado segundo. Estou a contar um sonho, estou a escrever sonhos e os sonhos, em si mesmos, não são alegres ou tristes. Somos nós a despertar, temos uma recordação deles, que pode ser de tristeza ou de alegria. Quero que o leitor, durante a leitura, fique todo mergulhado. Ao sair do livro foi uma grande alegria ter conseguido escrever o que escrevi. É isso que eu quero que o leitor entenda. Quando à noite atravessa a sua casa com as luzes apagadas e passa pelos sítios onde estão os livros, os livros bons são florescentes, os bons livros estão iluminados. Os outros, pelo contrário, não se dá por eles, estão na escuridão. Somos sempre capazes de encontrar os livros bons, de lhes estender as mãos, de saber o lugar deles. Como se eles nos dissessem: “Sou eu, estou aqui.” (Entrevista concedida à Sara Belo Luis para a Visão, em 26 de outubro de 2006, Op. cit., p. 533-534).
Resta saber se a frase selecionada para a epígrafe – “porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro” – e atribuída a uma das personagens, não será, principalmente, uma confissão autoral... Caberá à capa de uma das edições de O arquipélago da insónia nos dar uma resposta...
REFFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANTUNES, António Lobo. O arquipélago da insônia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2008.
ARNAUT, Ana Paula (Org.). Entrevistas com António Lobo Antunes. Confissões de um trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008.
____. Entrevista do Lobo Antunes, concedida a Sara Belo Luís, para a Revista Visão, de 26 de outubro de 2006, pp.136-141
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. 2 ed. São Paulo: Editora Perspectiva,1999.
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Ângela Beatriz Carvalho Faria
Doutora em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa)/UFRJ, 1999
Professora Adjunta de Literatura Portuguesa/UFRJ
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas/UFRJ
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O MARRARE - Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ
www.omarrare.uerj.br/numero12/angela.html
Número 12 (1º semestre de 2010) - ISSN 1981-870X