Primeiros Ensaios
Apologia e sátira ao amor cortês na Tragicomédia de D. Duardos
Andreza Barboza Nora
Universidade do Estado do Rio de Janeiro / UERJ
andrezanora@hotmail.com
Apologia e sátira ao amor cortês na Tragicomédia de D. Duardos: O artigo analisa as diferentes relações amorosas presentes na Tragicomedia de D. Duardos, do teatrólogo português Gil Vicente, e busca revelar a existência de uma escala de perfeição na qual se inserem as mesmas. O enfoque recai principalmente sobre o protagonista, o príncipe D. Duardos – símbolo do amor verdadeiro – e sua amada Flérida. Ao mesmo tempo em que examina a apologia ao amor cortês, retratado no comportamento do príncipe, o trabalho mostra a sátira que Gil Vicente empreendeu aos falsos amadores que se apoiavam nos preceitos ditados por André Capelão em seu Tratado.
Palavras-chave: Gil Vicente. Tragicomédia de D. Duardos. Amor cortês.
Apology and satire for courtly love in Tragicomedy of Don Duardos: The article analyzes the different love relationships present in the tragicomedy of D. Duardos, written by the Portuguese playwright Gil Vicente, and seeks to reveal the existence of a scale of perfection in which the relationships are inserted. The focus is mainly on the main character, Prince D. Duardos - symbol of true love - and his beloved Flerida. At the same time that examines the apology for courtly love, evidenced by the behavior of the prince, the paper shows the satire that Gil Vicente undertook to false loves that relied on the precepts dictated by André Capelão in his ”Treatise”.
Keywords: Gil Vicente. Tragicomedy of Don Duardos. Courtly love.
No prólogo presente na edição de 1586 da Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, o autor explicou ao rei D. João III a gênese de sua extraordinariamente bela Tragicomedia de Don Duardos. No referido documento, Vicente valoriza a escolha da matéria e deixa transparecer certo entusiasmo pelo trabalho urdido a partir da consabida fonte, Primaleón.1
Entretanto, não acreditamos que Don Duardos se configure, por esse motivo, como afirmou Reis Brasil, como “uma simples adaptação de um romance de cavalaria” (BRASIL, 1965, p.181). Gil Vicente não reproduziu indiscriminadamente as prolixas e intrincadas aventuras de D. Duardos narradas no Primaleón (1598), e sim, escolheu, com fina intuição, determinados momentos e aspectos de algumas delas, sugestivas e essenciais para dramatizar amores, segundo já observou Menéndez Pelayo:
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Dramatizó, pues, algunos incidentes, pero no escribió la comedia a manera de novela. De fábulas tan embrolladas acertó a sacar un cuadro escénico, sencillo y interesante, prescindiendo de la desaforada máquina de gigantes, vestíglos y endriagos de la monótona repetición de mandobles, tajos y rebeses, desafios y pasos de armas, insistiendo en la parte humana, y especialmente en aquella pasión que es el alma del teatro (MENÉNDEZ PELAYO, 1944, p.374).
Gil Vicente, conforme destaca Stanislav Zimic, “adivina y elabora una compleja psicología de los personajes, que en la fuente apenas queda sugerida en algunas pocas situaciones, y dota toda la materia espisódica de que se sirve de un valor simbólico nuevo” (ZIMIC, 1983, p. 49). O dramaturgo “altera a história, reformula personagens, remodela situações” (ALMEIDA, 1991, p. 8). É isso, em conjunto, o que consideramos constituir a originalidade de Don Duardos.
Ainda que alguns estudiosos, notadamente Dámaso Alonso, já tenham intuído a importante função do simbolismo presente na Tragicomedia de Don Duardos, como também a complexa psicologia dos personagens, acreditamos haver, na referida obra, outra matéria relevante e merecedora de exame mais detalhado: as diferentes relações amorosas representadas na trama e a razão de ser de cada uma delas para o conjunto que conformam.
O presente artigo será empreendido, assim, com o desejo de acrescentar novas contribuições para a compreensão dessa importante problemática. Primeiramente vamos mostrar de que maneira o personagem D. Duardos busca conseguir o que considera ser o “amor verdadeiro” da princesa Flérida. Em seguida, trataremos do famoso episódio que nos dá a conhecer o par Camilote e Maimonda, ressaltando o contraste que se imprime entre este casal e o principal, e, finalmente, da vitória conquistada pelo protagonista.
“El precio está en la persona”: a busca de D. Duardos por um amor sincero
Na rubrica inicial da Tragicomedia, é-nos dito que D. Duardos, príncipe da Inglaterra, “entra a pedir campo al Emperador con Primaleón su hijo, sobre el agravio de Gridonia”2. O Imperador permite o duelo; contudo, por temer a morte de tais cavaleiros que fortemente combatiam, mandou que sua filha Flérida separasse-os:
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Flérida – Á paz, á paz, caballeros, (...).
Y a vos, hidalgo estranjero,
pido por amor de mí, (...)
que vos seáis el primero
que no queráis ver la fin
de este daño.
D. Duardos – Señora luego sin falla,
no por temor, ni por Dios,
soy contento,
porque más fuerte batalla
contra mi traéis con vos:
yo lo siento (VICENTE, 1942, p. 40).
Deslumbrado com a beleza da Flérida, D. Duardos fica instantaneamente apaixonado, o que vem ratificar o pensamento segundo o qual o “amor é uma paixão natural que nasce da visão da beleza do outro sexo” (CAPELÃO, 2000, p. 5). Ele possui todas as condições necessárias para também a princesa por ele se apaixonar e com ela estabelecer uma bela relação amorosa. Sua fama de príncipe e cavaleiro valente era já bastante conhecida em todo o mundo. Assim, bastaria que, ao interromper o duelo, D. Duardos se descobrisse, revelando sua identidade. Entretanto, D. Duardos retira-se de imediato da presença de Flérida:
Flérida – Ansí noble caballero,
¿os vais, sin más descobrir?
D. Duardos – Yo vendré.
Cobraré fama primero,
si amor me deja vivir... (VICENTE, 1942, p.40).
Apesar de sua excelsa linhagem e de sua extraordinária fama como cavaleiro andante, D. Duardos não se considera ainda merecedor da jovem fidalga. Acredita que necessita superar os esplêndidos triunfos já conquistados, mais duelos e batalhas campais, mais vitórias que façam ressoar seu nome pelo mundo e, sobretudo, pelo palácio real de Flérida. Ela poderia, assim, apreciar devidamente as muitas incontrovertidas provas de’ seu serviço amoroso e sua verdadeira valentia, reconhecendo-lhe por fim como digno do amor, ao que ela seguramente corresponderia.
Porém, que provas de amor representariam de fato os escudos amassados e as cabeças cortadas de seus inimigos? Poderiam refletir seu ânimo valente, sua agilidade com as armas, seu desejo de imortalizar o nome de sua dama, sua absoluta entrega ao amor declarado. Mas como poderiam todas essas façanhas cavaleirescas refletir a profundidade e a delicadeza do sentimento amoroso?
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Com efeito, as notícias sobre tais façanhas poderiam chamar mais a atenção da dama que a sua própria pessoa. Ele não queria ser amado somente pelo fato de ser um nobre cavaleiro, e sim pelo seu interior. Assim, demonstra estar em plena sintonia com a concepção de André Capelão, para quem “só as virtudes de alma conferem ao homem a verdadeira nobreza” (CAPELÃO, 2000, p.19). D. Duardos parece compreender que, se Flérida se apaixonasse por ele como grande cavaleiro andante e como príncipe da Inglaterra, perderia, talvez para sempre, a oportunidade de fazê-la conhecer sua alma e também de averiguar se ela seria capaz de querê-lo somente pelo valor intrínseco de sua pessoa.
Desse modo, D. Duardos abandona sua intenção inicial de “cobrar más fama” com os feitos heróicos nos campos de batalha e decide conquistar o amor da princesa de forma inusitada. Para isso, conta inicialmente com a ajuda da personagem Olimba, sua confidente no auto, o que vem corroborar a afirmação de André Capelão, de acordo com a qual “o enamorado procura obter um apoio” (CAPELÃO, 2000, p.8) quando os pensamentos a respeito da amada se tornam incessantes. O príncipe, após confessar o amor que sente pela jovem à Infanta Olimba recebe desta o conselho para que mude “la vida / el nombre y el estado y el vestido” (VICENTE, 1942, p.53).
D. Duardos, disposto a fazer o que for possível para conquistar o amor da donzela, ouve atentamente o plano traçado por Olimba:
D. Olimba – Iros hes a su hortelano,
vestido de paños viles,
con paciencia, (...)
y asentaros hes con él,
después que le prometiéredes
provecho,
y avisaros hes de él
que no sienta en lo que hiciéredes
vueso hecho.
Llevad estas piezas de oro
y esta copa de las hadas preciosas (...)
Haced que beba por ella
Flérida, porque el amor
que le tenéis
a ella, os terna ella (VICENTE, 1942, p.53).
D. Duardos, vestido em trajes de vilão, deveria procurar pelo hortelão da princesa Flérida e oferecer-lhe alguma recompensa material para que ele aceitasse abrigá-lo temporariamente. O príncipe vai até à casa de Julián (o hortelão), bate à porta e assim é recebido:
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Julián – (...) ¿dónde sois hermano?
D. Duardos – Soy de Inglaterra.
Julián – ¿Y qué mandais?
D. Duardos – Queria ser hortelano,
si vos me lo enseñáis (...) (VICENTE, 1942, p.56-57).
Começa, em seguida, a colocar em prática o plano de Olimba, de acordo com o qual ele deveria oferecer alguma forma de recompensa ao seu futuro encobridor. Sendo assim, detalha a Julián seu propósito:
D. Duardos – (...) en esta huerta, señor,
está terrible tesoro
de infinitas piezas de oro,
y solo yo soy sabidor:
esto es cierto.
Hagamos um tal concierto
que me tengáis simulado,
y de vos perde el cuidado
si tenéis esto encubierto (VICENTE, 1942, p.57).
Julián decide, com a ajuda da esposa Constanza, que o jovem se travestiria em filho do casal. Morando com os camponeses, D. Duardos estaria mais próximo da filha do Imperador. Com relação a essa estratégia de entrar na horta de Flérida como falso hortelão, costuma-se dizer que D. Duardos disfarça sua verdadeira identidade. Todavia, somente em determinado sentido isso se passa assim. Atentando bem para a situação, melhor dever-se-ia dizer é que D. Duardos “desecha el disfraz principesco, que considera como superflua y peligrosa distracción, precisamente porque quiere revelar su verdadera personalidad y su alma, sin ambages de ninguna espécie” (ZIMIC, 1983, p.52).
Bruce Wardropper observa acertadamente que D. Duardos não se propõe enganar Flérida: “What the hopes to achieve by this disguise is that she will learn the difference between reality and appearance” (WARDROPPER, 1964, p.6). De fato, ao colocar os “paños viles”, D. Duardos não deseja tão somente desviar a atenção de Flérida do seu traje de príncipe, mas também fazê-la perceber a essência, através de uma aparência desalentadora para ela, enquanto dama cortesã.
D. Duardos carrega, intencionalmente, todas as desvantagens possíveis vinculadas à aparência exterior para se assegurar assim da pureza do sentimento amoroso de Flérida, se ela é, de fato, capaz de abrigá-lo. O nobre cavaleiro, conforme salienta Stanislav Zimic,
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Es también plenamente consciente de que esta empresa es mucho más ardua (...), que cualquiera de las hazañas caballerescas que emprendió en el pasado o con que podría encararse en el futuro, porque requiere la redención de un alma prisioneira del enemigo más formidable que jamás cruzara su camino (ZIMIC, 1983, p.52).
O inimigo que agora precisa enfrentar são as considerações sociais a respeito de si, uma vez que, disfarçado de hortelão, não será fácil conquistar o amor de Flérida. Esta forte batalha que nunca precisou enfrentrar terá como palco a horta de sua amada. Em sua edição de Don Duardos (1942), Dámaso Alonso tece as seguintes considerações acerca da horta em que se desenvolve quase toda a ação dramática:
Pero el pomar, la huerta no es solo el sitio de vagar de Flérida y sus damas, el lugar de las largas lamentaciones amorosas de D. Duardos, el punto de cita de las semideclaradas entrevistas; no es solo el sostenimiento y placer de Julián y su buena Constanza, ni tampoco fondo luminoso y aromado de la trama simple y deliciosa. La huerta es más: es esencial a la concepción vicentina del Don Duardos; es un personaje mudo, que está en las mentes y en los corazones de todos, que preside la acción y muy lejos de candilejas y tramoyas (...) (ALONSO, 1942, p.22).
A horta efetivamente preside a ação de Don Duardos, inclusive algumas cenas que Dámaso Alonso considera de todo impertinentes na obra. Entretanto, o que simboliza precisamente este espaço que “está nas mentes e no coração de todos”? Na opinião de Elias Rivers, representa o “intense lyrical yearning (...) love” (RIVERS, 1961: 759) dos personagens. Também isso representa a horta, não há dúvida, mas acreditamos que o amor intenso, verdadeiro e puro é, segundo a concepção fundamental da Tragicomedia, principalmente o “utensílio” com que se cultiva a horta. Além da idéia de que este terreno seja o espaço onde se desenvolve a relação amorosa – sentido exclusivamente denotativo – há outro significado possível e não menos importante: o de símbolo da beleza exterior e interior da amada que o príncipe se propõe cultivar.
No princípio da Tragicomedia, D. Duardos recorreu a seu gênio para poder entrar no jardim de Flérida. Depois de conseguir o apoio do casal Julián e Costanza, vai até à horta, onde permanece por um rápido instante. Após a saída do protagonista, a princesa entra no jardim acompanhada por suas damas Artada e Amandria.
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Ao tomar conhecimento de que em sua horta há um novo hortelão, Flérida quer conhecê-lo, ocorrendo, assim, a cena do encontro entra a princesa e o príncipe encoberto:
Flérida – ¿Ha mucho que eres venido?
¿En qué tierras anduviste,
¿Julián?
No hablas? (...)
¿Por qué no quieres hablar? (VICENTE, 1942, p.60-61).
Não é que não queira, D. Duardos não pode falar, segundo ele mesmo confessa mais tarde:
O personagem segue falando com maior e mais particular carinho sobre as virtudes da princesa, comparando-a a outras famosas e virtuosas damas, afirmando que todas “son una sombras perto de vos” (VICENTE, 1942, p.61-62). A jovem fica surpresa e tímida diante da efervescência dos elogios tecidos pelo seu “novo hortelão” – os quais fazem parte do tópico da dama inigualável observado nos mandamentos do amor cortês e do trovadorismo.D. Duardos – Señoras, cuando el corazón
del esfuerzo tiene mengua,
ya se piensa
que, de fuerza y con razón,
será turbada la lengua
y suspensa (VICENTE, 1942, p.61).
Gil Vicente sugere, algumas vezes, a ingenuidade da princesa. O amor de D. Duardos será o responsável por transformar Flérida em uma mulher. Ainda que detentora de uma inocência infantil, a princesa sente-se atraída pelo jovem já nesse primeiro encontro. A sensação nova que experimenta é muito agradável, mas ao intuir, embora muito vagamente, sua natureza, trata de imediato de arrancá-la de seu coração, repudiando indignada a corte de “Julián”:
D. Duardos – Beso vuestras altas manos
divinales.
Flérida – Vete, con la bendición,
a comer cebolla cruda,
tu manjar (VICENTE, 1942, p.63).
D. Duardos, aproveita as rudes palavras da donzela para ratificar seu sentimento:
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D. Duardos – ¡Quien tiene tanta pasión,
todo comer se le muda
en sospirar! (VICENTE, 1942, p.63).
Não sentir necessidade de comer, como o personagem afirma, é exemplo de mais uma característica codificada do amante, assim como também o são a falta de sono e de senso. Na continuidade da cena, novamente Vicente sugere a ingenuidade de Flérida. Basta examinar o comentário que ela faz a sua dama Amandria:
Flérida – Aquel tal
que lamenta su ventura
y exclama su tristeza
¿de qué mal?
Amandria – Es un modo de hablar
general, que oís decir
a amadores (VICENTE, 1942, p.63).
Refere-se Amandria à coita de amor, tão explorada pelos trovadores galego-portugueses e pelas novelas e/ou romances de cavalaria. Entretanto, veremos que D. Duardos não é um falso amador cortês. Ao afirmar que “todo comer se le muda en sospirar”, o príncipe não quer apenas impressionar a donzela. Ele, de fato, suspira noite e dia por Flérida. Os solilóquios comprovam:
D. Duardos – Oh, Flérida diesa mía, (...)
Tú duermes, yo me desvelo.
Yo solo, señora, velo, (...)
Pues, recuerdes mi señora
que se acuerde
que no duerme mi dolor
mi soledad sola una hora
se me pierde (...).
Consuelo vete de ahí,
no pierdas tiempo conmigo,
ni te quiero (VICENTE, 1942, p.67-75).
D. Duardos passava noites em claro pensando na dama por quem se apaixonou. Não sabia ele que também em Flérida os indícios da paixão começavam a se tornar mais claros. A princesa, depois do primeiro encontro com seu “jardineiro”, não o esqueceu. Mais que isso: ela desejava voltar à horta a fim de encontrá-lo. À tentação, ela não resistiu, e, acompanhada de suas damas, lá retornou. Há um assomo de pânico nas palavras que pronuncia Flérida quando não encontra o jovem Julián em sua horta. Assim, com grande ânsia, solicita que sua dama o busque:
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Flérida – ¡Jesús! ¿ qué cosa es ésta?
¡No hacen hoy labor
ni ayer!
(...)
Amandria, por vida vuestra
que lo busquéis, y llamaldo (VICENTE, 1942, p.69-70).
Em seguida, suaviza esse tom grave das palavras que todos perceberam em seu pedido, como perceberia também D. Duardos se a ouvisse falar. Logo após, dá-se a cena do reencontro no jardim. Dela também participa Costanza, que, anunciando “[hacer] gran siesta”, aparece com uma fruta para oferecer à princesa. Sentindo calor, Flérida pede a Amandria que lhe traga água fria. A ordem é transmitida à “mãe de Julián”, que vê aí a perfeita oportunidade para que a “copa encantada” (presente que Olimba deu a D. Duardos) chegue às mãos da jovem. Flérida, depois de beber desta água, exclama:
Flérida – ¡Oh, qué água tan sabrosa!:
toda se me aposentó
n’el corazón.
Y la copa, ¡muy graciosa!
¡Oh, Dios libre a quien la dió
de pasión! (VICENTE, 1942, p.72-73).
Comentando essa bela cena, Elza Paxeco afirma que “a taça transforma em filtro de amor a água fria que Flérida por ela bebe. É o único elemento mágico de Don Duardos (PAXECO, 1938, p.198)”. A essa e a outras opiniões semelhantes acerca do elemento mágico em Don Duardos é possível confrontar a observação de Wardropper na qual ressalva que “If the reader peruses Don Duardos without recognizing its metaphisycal sense, he has not truly read it” (WARDROPPER, 1964, p.4). Já Dámaso Alonso frisa que “Gil Vicente, con su fina sensibildad, ha comprendido que el beber el água de la copa no podía tener más que un valor simbólico” (ALONSO, 1942, p. 25). Se atentarmos para o fato de que, muitas vezes, o início do primeiro amor é considerado um acontecimento mágico, chegamos à mesma conclusão de Stanislav Zimic, segundo a qual Gil Vicente não poderia ter dramatizado esste momento da oferenda amorosa e da primeira comunhão de duas almas com uma imagem mais sugestiva que esta (Cf. ZIMIC, 1983).
Ao aceitar a água contida na taça encantada, Flérida sabe que essa pertence ao camponês e deseja ter a posse do utensílio. Para tanto, promete grandes recompensas ao rapaz:
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Flérida – ¿Dónde la hubiste, Julián?
D. Duardos – En unas luchas reales
la gané.
Flérida – Quiérola y pagártela han (VICENTE, 1942, p. 72).
A resposta de D. Duardos, esperançosa e categórica ao mesmo tempo, é de crucial importância para a apreciação da obra:
D. Duardos – ¡Si fuesen pagas iguales
a mi fe! (VICENTE, 1942, p.72).
D. Duardos quer fazer com que Flérida compreenda, desde o princípio, que não pode pagar a dívida de seu amor senão com outro amor tão bom e tão grande como o dele. E, efetivamente, a paixão amorosa de Flérida logo começa a competir em intensidade com a de D. Duardos.
Os dois amantes estão de amor enfermos, embora em D. Duardos todos esses efeitos se manifestem de maneira mais visível. Capelão, no Tratado do amor cortês, já havia afirmado que “o amor esgota o homem, (...) leva-o a comer e beber menos, sendo assim natural que sua resistência física diminua; (...) o amor também lhe tira o sono e o priva normalmente do repouso” (CAPELÃO, 2000, p. 286). Não é estranho, portanto, que Costanza traga a Flérida a notícia do estado enfermo do filho Julián:
Costanza – Mi hijo está maltratado
que el corazón se le abrasa (...)
Dos veces se ha amortecido (...)
Sospira de tarde en tarde,
pero quéjase a menudo,
que el ánima se le arde (VICENTE, 1942, p. 78-79).
Flérida não quer que Julián deixe a horta. Conforme diz, “se Julián se partiese / pesarme hía / como se mucho perdiese” (VICENTE, 1942, p.74). Ela também não quer do jardim se afastar. É na horta, personagem muda na obra, que se passam todos os encontros entre o apaixonado casal. Assim como D. Duardos, a princesa reflete constantemente sobre a horta, nos encontros excitantes ali ocorridos, sonhando com outros iguais no porvir. Entretanto, “¿cómo olvidar, como sumprimir la desconcertante realidad de la humilde alcurnia del hortelano que indefectiblemente ofusca los placeres idílicos del amor?” (ZIMIC, 1983, p.67). Flérida tem consciência de sua paixão pelo hortelão, mas a condição modesta do mesmo representa um impedimento à assunção pública de tal sentimento.
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Segundo Antonio José Saraiva, “Quando Gil Vicente põe no seu teatro um problema, esse problema é exterior aos personagens, e supõe, não um drama num sujeito, mas um jogo de tipos” (SARAIVA, 1970, p. 136). Este “adramatismo” corresponderia à “insuficiência técnica, ao primitivismo das obras” (SARAIVA, 1970, p.136) e ao fato de que “quando a situação atinge a tensão máxima e aguardamos um desenlace, (...) uma onda de lirismo [dissipa] a tensão (...) o drama [é] suprido pelo lirismo; e o dilema [dissipa-se] ao som da música” (SARAIVA, 1970, p.134).
Essas observações não parecem ser de todo pertinentes no que diz respeito especificamente a Don Duardos, já que nesta obra “el lirismo (...) no solo no disipa la tensión, sino que se conjuga de manera extraordinariamente armónica con la acción acentuando su intenso dramatismo” (ZIMIC, 1983, p.68). Ainda de acordo com Zimic, “el lirismo del teatro de Gil Vicente, como el de Calderón y de Shakespeare, nos conduce a los rincones más recónditos del corazón, donde se anidan los más sutiles conflitos humanos, inexpresables por medio de recursos dramáticos menos internos” (ZIMIC, 1983, p.68).
É difícil negar a extrema e contínua tensão dramática com que Gil Vicente apresenta os conflitos e dilemas que desgarram a alma de Flérida. Concordamos com Dámaso Alonso quando este afirma que
(...) por delicados matices, el arte exquisito de Gil Vicente nos va mostrando los avances del amor en el corazón de Flérida, (...) después de bebida el água de la copa mágica (...) empezamos a sentir su amor, pero es un amor reprimido por el pudor y por la diferencia de clase social. Los tres soliloquios de D. Duardos son tres jalones de este suave camino llevados también por uma magia inefable. (...) Aquí, en la expresión, por matices sumamente delicados y pequeños, de variaciones de un alma, es donde está el mayor valor dramático de la Tragicomedia (ALONSO, 1942 p.25-26).
A personagem passa a buscar, com ansiedade, indícios reveladores de que o hortelão não seja de condição humilde como parece. Como tentou em vão obter alguma informação alentadora, a princesa solicita à sua dama Artada que descubra, afinal, quem é este homem por quem se vê apaixonada:
Flérida – (...) sabed de él, por vuestra fé,
qué hombre es, que crer no quiero
que es villano (VICENTE, 1942, p.78).
Quando acredita haver percebido nas palavras de D. Duardos alguma indicação, embora muito vaga, de que ele fosse muito mais que um simples camponês, Flérida anima-se. Ao contrário, sente-se angustiada quando suas esperanças de que o rapaz seja um grande cavaleiro se veem diminuídas:
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D. Duardos, como veremos, não se esforça a fim de manter segredo sobre sua linhagem. Como é um cavaleiro nobre e virtuoso, não suporta por muito tempo ver Flérida sofrer tamanhos tormentos. Estes, causados principalmente pelo fato da princesa saber que “por mais qualidades que possua um plebeu, será muito incoveniente (...) para uma condessa, uma marquesa ou dama de condição igual ou superior conceder-lhe o amor, [pois] o próprio vulgo achará que com isso ela se estará rebaixando e desclassficando” (CAPELÃO, 2000, p.51). Pela ansiedade e tristeza que observa na amada, D. Duardos sofre. Quando Flérida sai chorando da horta, com a intenção de lá nunca mais retornar, ele, solitário, lamenta:
D. Duardos – ¡Oh, Olimba! ¿qué hiciste?
que para remediarme,
de mil suertes
heciste a Flérida triste;
y verla triste es matarme
de mil muertes (VICENTE, 1942, p. 82-83).
Não é somente nos solilóquios, conforme teremos a oportunidade de ver, que fica provada a autenticidade do amor do príncipe. Atormentado, D. Duardos lamenta-se com o verdadeiro hortelão:
D. Duardos – Nunca tan triste me vi.
No me hallo en esta tierra,
y este tesoro me tiene;
este solo me da guerra (...) (VICENTE, 1942, p. 83-84).
Julián não compreende o sentido ambíguo destas palavras; aliás, nunca os hortelões conseguem ver além da literariedade do discurso do príncipe encoberto. Outros sentidos, velados porque metafóricos, ficam-lhes despercebidos. Assim, ao notar a angústia de seu “caçador de tesouros”, oferece-lhe um conselho:
Julián – (...) será bien de os casar
en este nuestro lugar
con una moza valliente.
Quiéroos dar
moza que tiene un telar
y arquibanco de pino,
afuera que ha de heredar
una burra y un pomar
y un mulato y un molino.
Es moza baja, doblada,
es morena pretellona,
graciosa, tan salada
que no la mira persona
que no quede enamorada. (VICENTE, 1942, p. 84-85).
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O melhor exemplo da total incompreensão é o fato de Julián sugerir o remédio – segundo sua opinião – mais apropriado para o ambicioso desejo de D. Duardos pelo tesouro da horta: pretende recompensá-lo com os bens materiais e atrativos físicos da morena Grimanesa:
Julián – Estoyle diciendo yo
que case con Grimanesa;
pues que tanto bien halló
y para nos lo cavó,
que le demos buena empresa (VICENTE, 1942, p. 85).
Acreditamos que essa passagem, além de reforçar “o divórcio entre D. Duardos e os jardineiros” (ALMEIDA, 1991, p.15), ainda destaca especificamente o fato do amor do cavaleiro estar extinto de qualquer impureza. Isso porque, como afirma Zimic, “En un nivel simbólico, la sugerencia de Julián representa la interferencia de la carne que se manifesta indefectiblemente hasta en la relación amorosa más ideal” (ZIMIC, 1983, p. 72-73). Das interferências da “carne”, nem D. Duardos está livre: ele mostra-se plenamente consciente de que a jovem a ele “oferecida” por Julián é uma tentação mundana, tanto que se dirige indignado e sarcástico ao Cupido:
D. Duardos – ¡Oh, mi dios, señor Copido,
loado seas por esto,
que a tal punto me has traído! (VICENTE, 1942, p. 86).
Está claro que o autor não introduz este incidente na obra para expor a debilidade de D. Duardos, mas sim, conforme observou Zimic, “para poner de relieve que su amor es tan poderoso y perfecto que elimina todas las impurezas y que se sobrepone aun a los obstáculos más formidables en su camino” (ZIMIC, 1983, p.73). O pensamento de André Capelão ratifica o sentimento do príncipe, pois, para aquele, todo “iluminado pelo[s] raios do amor a custo pode pensar em estar nos braços de outra mulher que não seja sua bem-amada, por mais bela que seja essa mulher (CAPELÃO, 2000, p.13).
D. Duardos, por não “cair em tentação”, além de demonstrar a força de seu amor, distingue-se dos muitos homens que constantemente se acercam de Grimanesa1. Todos esses homens que são atraídos pela camponesa – modelo de sensualidade – parecem deixar-se levar, ao contrário de D. Duardos, pelo prazer sexual que ela representa2. Diferentemente deles, o cavaleiro não se contenta com esses atrativos físicos, pois sabe que eles apenas aparentemente substituem o verdadeiro amor.
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Depois de passados três dias desde a última visita de Flérida à horta, D. Duardos exaspera-se com sua ausência em mais um solilóquio:D. Duardos – Señora, ¿quién te detiene?
No sé cómo estoy sin verte
sola una hora.
Pues darme eres servida
despiadosa batalla
y de triste guerra,
y mi paz está perdida,
¡muerte, llevame a buscalla
so la tierra!
(...)
Sácame la dolorida alma mía!
¿Qué más quieres? ¡Oh, huerta! (...)
¡Quema tu cerca y tu puerta,
pues estás tan olvidada
como yo!
Tu, diosa, ¿por qué no viene (...)? (VICENTE, 1942, p. 87-88).
Na rubrica da cena que se segue a este monólogo de D. Duardos, somos informados de que “apretando el amor a la princesa Flérida, y no pudiendo cumplir el decreto que a si misma se impuso, manda primero a Artada”3 (VICENTE, 1942, p. 88) para que tente averiguar quem é verdadeiramente o hortelão. Ao chegar à horta, Artada e D. Duardos travam diálogo:
3“apertando o amor a Flérida e não podendo cumprir o que a si mesma se impôs, manda [à horta] primeiro a Artada”.
D. Duardos – ¿No verná, por vuesa fé?
Artada – No, hasta ser sabidora
quién sois vos.
D. Duardos – Señora, eso, ¿para qué?
Soy suyo; ella es mi señora
y mi dios
(...)
Quien tiene amor verdadero
no pregunta
ni por alto ni por bajo
ni igual ni mediano (VICENTE, 1942, p. 90-91).
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A resposta dada por D. Duardos à dama de Flérida concilia-se com o pensamento de André Capelão, uma vez que para este “a pessoa cujo amor se solicita não deve interrogar-se sobre a origem nobre ou pebléia do pretendente; que procure apenas saber se seus costumes são honestos e se suas virtudes são numerosas” (CAPELÃO, 2000, p.47). Para Artada, a nobreza de espírito não é suficiente para que o jardineiro conquiste o amor da princesa.
D. Duardos retira-se então da presença de Artada, que, imediatamente, procura a princesa e a ela fala sobre o amor declarado do hortelão. A donzela, não conseguindo mais resistir, descumpre sua promessa, e retorna à horta. Ao entrar no pomar, espanta-se com a vivacidade do mesmo:
Flérida – ¡Cuán alegros y contentos
estos árboles están!
En esto veo
que no son graves tormentos
los que sufre Julián (...)
en la cámara a do estó
veo llorar las figuras
de los paños
del dolor que siento yo,
y aqui crecen las verduras
con los daños (VICENTE, 1942, p. 94-95).
Esse parece-nos ser um momento chave da obra, porque Flérida, esquecendo todas as outras considerações, mostra-se preocupada apenas com a correspondência espiritual e emocional entre ambos. Agora a princesa preocupa-se com a intensidade do sentimento que o jovem nutre: será que ele sofre tanto por amor quanto ela? Flérida já não faz perguntas a respeito da identidade do rapaz, o que nos faz acreditar que o amor está se sobrepondo cada vez mais a tudo que é impróprio e alheio a tal sentimento.
Isso fica simbolizado também na cena que se segue. Nela, Flérida aproxima-se do “príncipe encoberto” e pede a ele que colha uma maçã – “Julián, ve tú ahora / y cógeme una manzana” (VICENTE, 1942, p.96). O hortelão sugere que, embora seja merecedora do fruto, esse simboliza o amor por ele cultivado, entretanto, como ela não demonstra corresponder a esse sentimento, adverte-lhe:
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D. Duardos – Lo que yo digo:
discordia quereis, señora.
¡Oh mi guerrera troyana¡:
¡paz comigo!
La manzana que quereis,
es discordia que traéis (...) (VICENTE, 1942, p.96).
A maçã é a causa da discórdia, porque, segundo a cobrança implícita de Don Duardos, Flérida não aprecia devidamente seu amor e não lhe corresponde da forma como ele gostaria. À crítica de D. Duardos, Flérida responde de modo sugestivo:
Flérida – ¿Qué hablas? ¿Estás dormido? (VICENTE, 1942, p. 96).
Após ouvir esse questionamento, D. Duardos interpreta de imediato que a princesa decidiu se render a ele, segundo depreendemos da maneira completamente explícita e do tom atrevido com que, a seguir, a ela declara seu amor:
D. Duardos – Yo no hago desconcierto
en andaros contemplando
noche y dia.
Diesa mía, no pequé
en adoraros, señora,
la hermosura.
¿Adónde estuvo escondida
vuesa Alteza, pues que sabe
mi pasión? (VICENTE, 1942, p. 96).
Gil Vicente mostra como no ânimo de Flérida ressurge, por um instante, a velha apreensão, precisamente pela declaração de amor ardorosa que recebe de D. Duardos. A personagem oscila novamente, esperando que o hortelão assegure-lhe definitivamente a identidade de grande cavaleiro. Contudo, D. Duardos insiste, com a determinação de sempre, em destacar a humildade extrema de sua linhagem. Com a mesma determinação, pretende que Flérida corresponda a seu amor, apesar de sua condição humilde. Embora tomada pelo sentimento da raiva, mostra-se impotente diante do sentimento amoroso que a avassala por completo. De modo algum “sem resistência”, e sim após longa e árdua luta contra o amor, Flérida começa a render-se:
Flérida – ¡Oh, hombre! ¿No me dirás,
pues que me quieres servir,
quién tú eres?
Dímelo a mi no más;
ya sola te lo quiero oír,
si quisieres (VICENTE, 1942, p. 99).
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A condição lembrada por Flérida é a da vassalagem amorosa, mas D. Duardos é quem dita as condições do encontro “en lugar que estén solas lãs estrellas de presente” (VICENTE, 1942, p.99). Flérida consente em um encontro direto com D. Duardos na horta, à noite, ainda que a dama Artada advirta-lhe da impropriedade de tal encontro “às escuras”. Entretanto, a donzela acaba cedendo, pois acredita que já não lhe resta outra alternativa.
Diz a rubrica da cena seguinte que, “mientras ocurrían estas cosas, Camilote había matado a D. Robusto y a otros caballeros, por el reto de Maimonda contra Flérida. Y sabiendo esto Don Duardos, se armó, fuése al campo y mató a Camilote”3 (VICENTE, 1942, p. 101).
Para que possamos compreender o significado dessa rubrica, é necessário fazer entender quem são estes personagens que não citamos até o momento. Por acreditarmos que cada um deles tem uma função preestabelecida e relevante dentro da obra, consideramos imprescindível clarificar o episódio que a todos eles envolve e destacar, sobretudo, o par Camilote e Maimonda.
A afirmação do amor de D. Duardos pela oposição: o episódio sobre Camilote
Ainda na parte inicial da Tragicomedia de Don Duardos, depois de terminado o combate entre Primaleón e o príncipe encoberto, são introduzidos dois outros personagens: trata-se de Camilote e Maimonda. Assim é feita a apresentação do casal: “Ido Don Duardos y Primaleón, y asentada Flérida con la Emperatriz, entra Camilote caballero salvaje, con Maimonda su dama, cogida de la mano. Y siendo ella la cumbre de toda fealdad, Camilote la viene alabando de esta manera4 (VICENTE, 1942, p.130):
Camilote – ¡Oh Maimonda, estrella mía!
¡Oh Maimonda, frol del mundo!
¡Oh rosa pura!
¡Vos sois claridad del día!
Vos sois Apolo segundo
en hermosura! (VICENTE, 1942, p. 41).
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Camilote vai à Corte de Palmeirín, acompanhado por Maimonda, e tem como objetivo apresentá-la como sendo a mulher por quem é capaz de morrer. Desse modo, vai à presença do Imperador e de toda sua corte. Diante desses, Camilote continua exaltando hiperbolicamente a “beleza” de sua dama. Diante da “impropriedade” de tais elogios, que em nada retratavam a realidade, as cortesãs zombam dos atributos físicos da criatura. Contudo, Camilote não aceita que desmereçam sua dama e, ao defendê-la, refere-se pejorativamente à Flérida:
Don. Robu. – ¿Y en Flérida habláis vos?
(...)
¿puede ser mayor locura
que la excelsa hermosura
compararla con tizones (...)? (VICENTE, 1942, p. 48-49).
Camilote explica ao Imperador ter colhido uma grinalda de rosas por meio de perigosas façanhas e que vai entregá-la à dama mais “hermosa que nació en la vida humana”, Maimonda. Retruca, descontente, as afirmações de D. Robusto de forma desafiadora:
Camilote – Ante que hayamos enojos,
caballero, abrí los ojos
(...)
Y cualquiera caballero
de esta corte, que dijiere
que su dama
la4 merece por entero,
salga, y muera el que moriere
por la fama.
Y aún cualquier que dijier
que a Flérida conviene
más que a ella,
yo le haré conocer
que miente con cuanto tiene,
delante ella (VICENTE, 1942, p. 49-51).
O episódio de Camilote e Maimonda é introduzido duas vezes na peça: pouco antes do fim, na breve rubrica que reproduzimos anteriormente (na qual há a alusão ao duelo com D. Duardos e à morte de Camilote), e nesta parte inicial, onde o autor dedica cerca de trezentos versos a falas dos referidos personagens. O fato de Gil Vicente dedicar ao episódio grande espaço no interior da obra sugere, por si só, uma boa justificativa estética e ideológica para tal.
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Entre alguns estudiosos vicentinos prevalece a opinião, como a de José Saraiva, de que “Gil Vicente não conseguiu encontrar a unidade dramática” (SARAIVA, 1970, p. 129). Com relação a Don Duardos, particularmente, admite-se, às vezes, que o autor “aproximou-se um pouco mais” (SARAIVA, 1970, p.132) de tal unidade. Dámaso Alonso destaca, o que, segundo ele, poderia causar essa ruptura com a unidade:
poca proporción de la trama (...) Lo desmesurado del episódio de Camilote (ligado después, pero, ¡con tanta torpeza! a la cena principal) se justifica por la necessidad que este artista primitivo, amador de rudos contrastes, siente de intercalar en la comedia un tiempo de “scherzo”, algo en la línea de la farsa o del paso (...) En una buena parte de las obras vicentinas de alguna complejidad se retrasa o interrumpe la acción por la introducción de una chocarrera farsa. Así aqui, por los amores de la feísima dulcinesca Maimonda y el esforzado, quijoteso Camilote (ALONSO, 1942, p.17).
É essencialmente semelhante a opinião de Elza Paxeco, segundo a qual o episódio discutido se justifica somente pela sua função de distrair “o espírito do espectador, excitado pelo precedente encontro de armas e de corações” (PAXECO, 1983, p. 197). A observação de Alonso pode ser aceita com reservas, ou seja, caso se entenda como produtivo e essencial à temática da peça este “tiempo de scherzo”, e não como pausa ou desvio infundado no andamento dramático. Acreditamos, assim como Elias Rivers, que o episódio de Camilote “is clearly relevant to the theme of love, helping by contrast define the relationship between D. Duardos and Flérida” (RIVERS, 1961, p.761).
Ainda que seja ligado à cena principal de modo não tão habilidoso, gerando um risco para o equilíbrio dramático do auto, o episódio de Camilote – conforme outras cenas aparentemente gratuitas na obra – “is related as subordinate variations on this basic theme of love” (RIVERS, 1961, p.759). Vale ressaltar que, sozinho com Maimonda, “o discurso de Camilote glosa tópicos da convenção cortês” (ALMEIDA, 1991, p.10), como o louvor da dama e a declaração de ciúmes. O cavaleiro, consciente das convenções, pede a Maimonda que o deixe louvá-la, ao que ela responde:
Maimonda – ¿Para qué?
Camilote – Porque es cosa sabida
que quien ama y no adora
no tien fé (VICENTE, 1942, p. 42).
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Muitas falas do personagem configuram-se, assim, como uma simples imitação dos considerados padrões poéticos e comportamentais corteses. Entretanto, a honraria hiperbólica convencional entra em conflito com a figura de Maimonda, apresentada como um ser deformado: “la cumbre de toda fealdad”, “la más fea creatura que nunca se vio”. Os elogios tecidos pelo cavaleiro selvagem, aplicados à sua dama, convertem-se em paródia5 do discurso estereotipado empregado por muitos amadores e, por esse motivo, imitável. Como esse processo mimético empreendido por Camilote é de tal execelência, apenas o contexto em que se insere nos permite afirmar que passa a adquirir “ressonância paródica” (ALMEIDA, 1991, p.11).
Já que Camilote tenta imitar padrões corteses, e por esse motivo seu discurso reveste-se em paródia, poder-se-ia pensar que o alvo indireto da mesma, realizada por meio do par de Maimonda, fosse o próprio o cavaleiro D. Duardos. Todavia, não consideramos que a figura do príncipe tenha sido o centro de interesse nesse processo. Isso porque acreditamos que não é de todo o amor cortês que está sendo satirizado, mas sim certo rigor dos códigos a ele inerentes. Rigor esse que possibilita seu uso até por aqueles não habilitados para tal, como um cavaleiro selvagem.
Embora os personagens da corte de Palmeirín ridicularizem as afirmações de Camilote acerca de sua dama como um “arbitrary attack upon the reality of beauty” (RIVERS, 1961, p.761), sabemos que o desejo do serviço amoroso e a gentilieza do amante fazem parte dos preceitos a serem seguidos pelos que pretendem fazer parte da corte do amor. Ainda que tenhamos consciência de que “Beauty is in the eye of the beholder” (RIVERS, 1961, p.761), não há dúvida alguma de que Camilote “es un admirador estralafario de uma grotesca fealdad” (ZIMIC, 1983, p.83). Isso se comprova no diálogo entre Camilote e Maimonda, ao qual talvez não se tenha dado a suficiente atenção. Reproduzimos os trechos mais significativos:
Camilote – ¡Oh, Maimonda, estrella mía! (...)
Maimonda – Todo loor es hastío
en la perfección seguro
y manifesta (...)
¡Pues a vos no se compara
ni ellas [las diosas soberanas] ni
[las estrellas] (...)
Maimonda – Ni el mundo por mi vida
Camilote – Mas eso me da miraros
que ver un vergel florido
con mil rosas.
Maimonda – Así me dije el espejo
de esa propria manera.
Camilote – Cada vez que mirais
matais de pura afición
a quel que os vió.
Maimonda – Ya un angel me dijo eso (VICENTE, 1942, p. 41-45).
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Podemos observar nesse trecho que o extremado narcisismo e a vaidade de Maimonda revelam um espírito bastante deformado. Atrás do desagradável aspecto físico da personagem, descobre-se uma feiúra moral, que é a verdadeira feiúra, segundo já identificou Wardropper: “Maimonda, in addition to being physical ugly, is also morally ugly: she is presumptuous” (WARDROPPER, 1964, p.5). Como afirma Maimonda a seu amador, dentro de sua presunção:
Maimonda – bien basta que en ser vos mío
se prueba mi hermosura
bien compuesta (VICENTE, 1942, p.41).
É compreensível que Camilote defenda a beleza de sua dama, não somente porque é uma “obrigação” estar ao serviço dela, mas talvez também pelo fato de que não enxergue, verdadeiramente, a existência de tal feiúra. Isso não por um “erro visual”, dadas as circunstâncias nas quais se apaixonou:
Camilote – Todo eso padeció
mi corazón dolorido,
que por fama
de esta dama se perdió,
y sin verla fui ardido
en viva llama (VICENTE, 1942, p. 47).
Camilote apaixona-se a partir do que escuta falar a respeito de Maimonda, de su fama: é o chamado amor por oídas5, ou seja, aquele que se dá não pela visão, mas por ouvir falar da referida dama. Esse trecho, como observou Almeida, “dá imediatamente azo a nova pretensão burlesca de Camilote” (ALMEIDA, 1991, p.12):
Emperador – Son los milagros de amores
maravillas de Copido,
oh gran dios (...)
Tales fuerzas no tuvieron
otros dioses poderosos
que hace ser
a los que nunca se vieron
enamorados deseosos
sin se ver (VICENTE, 1942, p. 46-47).
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Camilote tem uma visível preocupação de ser aceito como legítimo cavaleiro andante que tenha donzela a quem servir. Aliás, no mundo cavaleiresco é inconcebível que o cavaleiro não tenha uma. Don Quijote adverte a este propósito:
No puede ser que haya caballero andante sin dama, porque tan propio y tan natural les es a los tales ser enamorados como al cielo tener estrellas, y a buen seguro que no se haya visto historia donde se halle caballero andante sin amores; y por el mismo caso que estuviese sin ellos, no sería tenido por legítimo caballero, sino por bastardo y que entró en la fortaleza de La caballería dicha, no por la puerta, sino por las bardas, como salteador y ladrón (CERVANTES, 2004, p.114).
Camilote parece estar interessado nas suas excelências imaginadas, ao louvar sua dama, da mesma forma que ela está absorta nas suas próprias. Segundo Zimic,
ambos personajes adolecen de la misma enfermedad cegadora que es el patológico narcisismo y la fea soberbia. Y es así que teniéndose compañía física, Camilote y Maimonda están no obstante separados, por un vasto mar de mutua indiferencia y de ignorancia. Camilote y Maimonda se necesitan mutuamente, es cierto, pero no (...) en base a merecimientos y cualidades personales admirables sino tan solo para explotarse uno a outro, como soportes convenientes de la monstruosa vanidad que a ambos afecta. Camilote y Maimonda están por completo incapacitados para verse el alma (ZIMIC, 1983, p. 86).
Pelo que dissemos até o momento sobre esta relação tão carente de preocupação espiritual, alheia a toda aspiração ideal, compreender-se-á a estranheza do comentário de Rivers, segundo o qual “Camilote’s love is based directly on a platonic idea” (RIVERS, 1961, p.760). O crítico apóia sua opinião nas palavras do Imperador, de acordo com as quais o amor que “nunca [puede] ver de vista / traspasa la execelencia de amar” (VICENTE, 1942, p.47). Porém, é importante considerar estas palavras no contexto em que aparecem, como bem observou Zimic (1983). Ao longo do episódio de Camilote e Maimonda, o discurso do Imperador para com o cavaleiro selvagem está sempre carregado de sarcasmo e zombaria, como exemplifica a passagem a seguir:
Emperador – ¿Cuya hija es, si sabeis?
Camilote – Hija del Sol es, por cierto.
Emperador – ¡Bien parece!
¿En qué intención la traéis?
Camilote – Por mostrar por quién soy muerto
qué merece.
Emperador – Cobrastes alta ventura! (VICENTE, 1942, p. 44).
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No trecho acima, como em outros momentos da Tragicomedia, o Imperador zomba de Camilote, sem que esse repare, daí o contraste irônico. O fato de que Camilote tenha “palabras llenas de ternura y brío para hablar de su Maimonda”, segundo Dámaso Alonso (ALONSO, 1942, p.30), também não constitui a prova de que seu amor seja platônico, porque o que temos observado desse personagem leva à conclusão de que também o que diz é uma imitação do vocabulário amoroso convencional.
É significativo que no começo da peça existam suspeitas a respeito da sinceridade do próprio D. Duardos, com a implicação de que seu discurso amoroso represente uma simples convenção poética. Amandria desconfia das palavras do príncipe quando afirma que suas lamentações correspondem a “un modo de hablar general / que oís decir a amadores, / que a todos veréis quejar, / y ninguno veréis morir / por amores. (VICENTE, 1942, p. 63-64).
Entretanto, pela conduta de D. Duardos podemos concluir que suas palavras não são uma simples convenção, mas um fiel e sincero reflexo do seu sentimento. É muito expressivo precisamente o fato de que o discurso amoroso de D. Duardos seja parecido ao de Camilote, pois com isso o autor direciona nossa atenção ao conhecido problema da poesia amatória cortesã: convenção ou sinceridade?
D. Duardos representa a correspondência entre a forma exterior e o sentimento sincero, já Camilote representa a dicotomia intransponível entre eles. Com relação a esse mesmo problema, é muito sugestivo que, enquanto Camilote sente a necessidade de ostentar nas cortes imperiais, D. Duardos afasta-se do mundo cortesão para poder revelar seus sentimentos, sozinho, no jardim. Como afirma Amandria,
Amandria – Si alguno al dios Apolo
hiciese adoración
por su dama,
y esto estando solo
y llorando su pasión
éste ama (VICENTE, 1942, p. 64).
Camilote apenas poderia representar a “miraculous omnipotence of Love” (RIVERS, 1961: 960) se levássemos em consideração que “até uma mulher feia parece lindíssima aos olhos de quem a ame” (CAPELÃO, 2000, p.26). Todavia, o cavaleiro selvagem mais se aproxima da imitação de uma convenção amorosa ditada pela vaidade e soberba. Dessa forma, o casal vai de encontro à verdade e à virtude que se espera de um sentimento verdadeiro. Não é estranho, portanto, o fato do amor de Camilote “conduzi-lo à sua própria destruição” (KLEIMAN, 2003a, p. 213).
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Pelo que expomos, compreender-se-á que o referido episódio não pode ser tão somente um “tiempo de scherzo” (ALONSO, 1942, p.17) e que sua brevíssima reaparição no final da obra não se deve de modo algum ao mero desejo de Gil Vicente fazer D. Duardos aparecer diante de Flérida em trajes principescos. Camilote e Maimonda representam a profanação da “santidade” do amor que afeta não somente a eles mesmos, mas a muitos “semelhantes” do cavaleiro D. Duardos. O episódio mostra, dessa maneira, como o verdadeiro amor se sobrepõe à forma cortês de amar quando puramente convencional, destacando a sinceridade do sentimento de nosso protagonista.
O triunfo do amor
Muitos diálogos de Don Duardos mostram que os cortesãos de Palmerín parecem cultivar apenas as meras aparências da beleza e do amor, com total despreocupação com a beleza interior, do espírito, da essência, das virtudes. Às afirmações arbitrárias de Camilote sobre a beleza de Maimonda, respondem D. Robusto e outros com afirmações possivelmente arbitrárias sobre a beleza de Flérida. Os oponentes do cavaleiro selvagem não atentam para o fato de que “na mulher o que se deve buscar não é tanto a beleza, porém a excelência de costumes” (CAPELÃO, 2000, p.19).
Nobreza de valores Maimonda não demonstrou, pelo contrário, somente arrogância e presunção. Faltava-lhe, portanto, a beleza física e a espiritual. Entretanto, não é a falta de nobres valores que os cortesãos de Constantinopla criticam-lhe: todos estão preocupados tão somente com os valores mais superficiais. É compreensível, portanto, que também Flérida, em alguns momentos, seja governada por esses mesmos valores que prevalecem no seu meio. Sua reação, ao deparar-se com Maimonda e Camilote, não difere da de outros cortesãos:
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Flérida – ¡Espantado es mi sentido!
¿quién hizo cosas tan feas,
namoradas? (VICENTE, 1942, p. 46).
Contudo, deve-se também observar que Flérida não é de todo guiada por valores do mundo cortês. Há certos trechos da peça nos quais a princesa evidentemente medita sobre a possível dicotomia entre ser e parecer. Ao querer conhecer o novo hortelão, não lhe perturba vê-lo em panos rasgados, porque, segundo assegura:
Flérida – El hombre queremos ver
que los paños son de lana (VICENTE, 1942, p. 59).
Em outro momento, maravilhada com a sensatez que “Julián” deixa transparecer em muitas de suas falas – como, por exemplo, quando afirma que “Buen vestido / no hace ledos los tristes” – ela exclama:
Com isso, Flérida revela também seu próprio bom senso que luta para prevalecer em um ambiente social muito adverso a ele. É D. Duardos quem estimula a jovem com seu amor sincero, ajudando-a a sobrepor-se a qualquer temor, a toda consideração imprópria e indigna de um espírito verdadeiramente nobre. Flérida alcança a mais árdua vitória, que é a vitória sobre si mesma, quando aceita o encontro com D. Duardos, às escuras. É nesse momento preciso que a ação é interrompida pela rubrica na qual é dito que D. Duardos foi enfrentar Camilote nos campos de batalha e que o último foi morto no duelo. Levando em consideração que Camilote simboliza todo o impróprio e impuro que pode afetar à procura do amor no mundo cortesão (do qual Flérida faz parte), sua morte no duelo vem representar o extraordinário triunfo de D. Duardos. Conforme salienta Zimic,Flérida – ¡Ojalá tuviesen condes
tu sentido! (VICENTE, 1942, p. 62).
Se podría decir que Don Duardos realiza la más maravillosa hazaña caballeresca, porque redime el alma pura de una doncella de algunos de los monstruos más temibles que la amenazam: la vanidad, la soberbia y el prejuicio contra el prójimo (ZIMIC, 1983, p. 92).
Antes de unir-se à Flérida, “El caballero lucha para vencer el mal” (ASENSIO, 1958, p. 9). D. Duardos precisa matar Camilote que é “el jayán de la soberbia que franquea la entrada al templo del amor puro y virtuoso” (ZIMIC, 1983, p. 92). Sendo Camilote um símbolo da soberba, é compreensível o porquê de D. Robusto e dos demais defensores da beleza exterior de Flérida serem derrotados por Camilote, enquanto D. Duardos sai vitorioso do duelo. Após ter matado Camilote, “Viene D. Duardos vestido de príncipe” (VICENTE, 1942, p.103) e anuncia significativamente à Flérida:
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D. Duardos – (...) él por Maimonda murió,
y yo por la hermosura de las gentes (VICENTE, 1942, p.103).
Dámaso Alonso acredita que Flérida chega a ter “la convicción de que, trás el jardinero Julián, hay um escondido noble. Así suaviza Gil Vicente lo arriscado de la decisión final” (ALONSO, 1942, p.29). Porém, é importante ter em mente o fato de que a revelação da identidade principesca de D. Duardos ocorre somente depois da morte de Camilote, cuja simbologia anteriormente buscamos interpretar.
Antes desse acontecimento crucial, Flérida suspeitava, tentava adivinhar, especulava acerca da linhagem do hortelão, mas não podia chegar a nenhuma conclusão segura. D. Duardos nunca cedia, nunca deixava de insistir em sua origem humilde. Quando Flérida aceita o encontro – embora sejam maiores suas suspeitas e as de suas damas de que ele não é vilão –, ela não sabe sobre sua linhagem muito além do que sabe no princípio, durante o primeiro encontro. Apenas está segura da nobreza do amor que o jardineiro cultiva por ela, o que é confirmado simbolicamente com a aparição de D. Duardos vestido como príncipe, depois do combate. É precisamente nessa ocasião que o príncipe exalta novamente a nobreza de seu amor – livre de considerações sociais impróprias – que o une à Flérida:
D. Duardos – Yo a vos amo, y no más,
Por princesa, por ventura,
no, ¡cuitado!;
que mucho queda detrás
de vuesa gran hermosura
vueso estado.
¡Por mi, por mi (que yo por vos,
y no serdes tan alta,
soy cativo),
dadme la vida, mi Dios! (VICENTE, 1942, p.104).
Elza Paxeco afirma que
D. Duardos quer ser amado por si próprio, não pela sua alta hierarquia. A ironia dramática, porém, nega vitória ao simples hortelão: e, depois de saber do triunfo contra Camilote, a cautelosa Flérida, compreendendo a identidade do pseudo Julián com o maior cavaleiro da Grécia e do mundo, sente crescer o seu amor (PAXECO, 1938, p. 199-200).
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Entretanto, se Gil Vicente apresentasse Flérida convencida da linhagem nobre de D. Duardos já antes desse encontro, representaria certamente um grave e incompreensível defeito de concepção ideológica e dramática. Em que sentido seria possível falar da afirmação renascente da personalidade que, segundo o próprio Dámaso Alonso (1942), Gil Vicente propõe dramatizar em Don Duardos? Para apreciar a intenção do dramaturgo nesta obra, é imprescindível perceber que Flérida vai ao encontro com D. Duardos somente por uma razão: o coração se rendeu por completo ao amor verdadeiro.
Flérida não conhecia a verdadeira identidade de seu hortelão, mas os leitores sempre souberam que “los panos viles” eram apenas um disfarce. Porém, isso não significa que Gil Vicente, neste auto, exclua da corte do amor aqueles que não têm elevada posição na sociedade. Basta dedicarmos a devida atenção aos amores de Julián y Costanza, o casal de hortelões:
Julián – ¡Costanza Roiz amada!
Costanza – Mi Julián, ¿qué mandais?
(...) [Se oye llamar a la puerta]
Mi amor, ¿qué fue ahora esto?
(...)
¿Qué mirais mi corderito?
Julián – Mirad, mi alma, el rosal
como está tan cordeal
y el peral tan lozano.
Costanza – ¡Cuán alegre y cuán florido
está, señor mi marido,
el jazmín y los granados,
los membrillos cuán rosados.
Julián – Pues, más florida estáis vos.
[Va Julián a la puerta]
Julián – Costanza Roiz vení acá,
que sin vos soy todo nada (VICENTE, 1942, p. 54-56).
Esses diálogos amorosos deixam a impressão de um sossego idílico, carente de tensão emocional, o qual se deve naturalmente ao fato de que Julián e Costanza se tratam como esposos apaixonados que estão gozando plenamente da felicidade conjugal, enquanto D. Duardos e Flérida estão empenhados, ao longo da obra, em conquistar a correspondência amorosa. As diferenças entre a linguagem dos hortelões e dos cortesãos ficam, assim, implícitas6.
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Analisando devidamente esses fatos, como também a função sugerida do conselho que Julián dá a D. Duardos a respeito de Grimanesa, a relação de Julián e Costanza é apresentada com implicações verdadeiramente transcendentais para a compreensão da obra: o amor não somente é acessível a uma pessoa comum, como esta também pode senti-lo de um modo tão profundo, romântico e refinado como qualquer nobre genuinamente apaixonado.
Com o amor de Costanza e Julián, Gil Vicente parece buscar mostrar ao leitor que as declarações de D. Duardos sobre a potencial dignidade e profundidade do amor humilde não são nada ambíguas, tampouco um mero recurso ou jogo teatral, e sim que se referem à realidade inerente à natureza humana. Julián e Costanza, “guardiões” da horta de Flérida, são também o inverso de Camilote, símbolo da soberba e da convencionalidade, que veda o espaço ao templo do amor verdadeiro.
Gil Vicente era provavelmente consciente da inevitável conclusão do leitor de que, apesar de todas as proclamações sobre a igualdade de todos perante o amor e sobre o triunfo incondicional do mesmo, D. Duardos é ainda assim um príncipe, daí a importância de incluir um casal também apaixonado, só que de baixa condição. Se é verdade que a sensibilidade dos hortelões está muito distante da demonstrada por D. Duardos, também é verdade que o espírito nobre do “hortelão” foi lapidado com o passar do tempo. Ao dedicar-se ao cultivo amoroso e cuidadoso da alma de Flérida, D. Duardos salva também sua própria alma para o verdadeiro amor7. Ele mesmo reconhece:
D. Duardos – (...) perdí de ser quien solía
por la mayor hermosura
de esta vida (VICENTE, 1942, p.97).
Quem era D. Duardos antes de se apaixonar por Flérida? Um cavaleiro andante e um cortesão que decerto se rendia às mesmas convenções sociais e literárias que todos os seus semelhantes. Não estava D. Duardos a caminho de praticar e sentir na sua vida apenas aquilo que praticavam e sentiam todos no seu mundo cavaleiresco e cortesão? O encontro com Flérida foi o começo de sua redenção. Gil Vicente faz com que compreendamos que a alma de D. Duardos, assim como a de Flérida, deveria liberar-se de todo o impróprio para poder entregar-se ao amor.
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Diríamos que o amor de D. Duardos e Flérida, no fim da peça, particularmente no momento de empreender juntos a viagem pelo mar rumo ao reino da Inglaterra, representa “el estado más dichoso de todos, la más feliz vida que acá se vive, la de dos que se amam” (ZIMIC, 1983, p.98). Tal amor não pode ser de forma alguma destrutivo, como quis Hart8: ao separar-se dos seus pais e de seu velho mundo, Flérida se propõe criar com D. Duardos uma vida nova, cheia de maravilhas, sonhos e indizível felicidade:
Artada – En el mes era de Abril,
de Mayo menos un día,
cuando lirios y rosas
muestran más su alegría,
en la noche más serena
que el cielo hacer podía,
cuando la hermosa infanta
Flérida ya se partía (...) (VICENTE, 1942, p. 107).
Paxeco observa que “à noite enluarada substitui-se uma escuridão quase completa, mais propícia para a fuga e de mais fácil apresentação cênica (...)” (PAXECO, 1938, p. 201-202). Momento antes de empreender a viagem, o Patrão de galeras também observa que “la noche hace escura” (VICENTE, 1942, p.106). De fato, as vontades de Flérida e D. Duardos – que no final amorosamente se respondem – começaram a entrar em consonância quando a donzela aceitou o encontro com o jovem na horta, encontro que se daria “sin sol, luna ni candela / (...) a horas y en lugar / que estén solas las estrellas de presente (VICENTE, 1942, p.99). Também a gloriosa viagem realiza-se em uma noite escura: “la más serena que el cielo hacer podía” (VICENTE, 1942, p. 107).
Por meio de Artada, Gil Vicente descreve a belíssima cena final da Tragicomedia de Don Duardos:
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Artada – Sus lágrimas consolaba
Flérida, que esto oía.
Fuéronse a las galeras
que Don Duardos tenía:
cincuenta eran por cuenta;
todas van en compañía.
Al son de sus dulces remos
la princesa se adormía
en brazos de Don Duardos
que bien le pertenecía
Sepan cuantos son nacidos
aquesta sentencia mía:
que contra la muerte y amor
nadie no tiene valía (VICENTE, 1942, p.108-109).
Explicita essa última cena a sentença final de Gil Vicente, considerada o tema da peça, que na verdade se configura como uma variação “do venerável topos virgiliano omnia vincit Amor” (RECKERT, 1983, p.38). O amor, na Tragicomedia de Don Duardos, apresenta-se, assim, como valor inelutável ao qual apenas a morte pode equiparar-se.
REFERÊNCIAS
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ALONSO, Dámaso (ed.). Tragicomedia de Don Duardos. Vol. 1.Texto, estudios y notas. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1942.
BRASIL, Reis. Gil Vicente e o teatro moderno: tentativa de esquematização da obra vicentina. Lisboa, Minerva, 1965.
CAPELÃO, André. Tratado do amor cortês. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Madrid: Real Academia Española, 2004.
KLEIMAN, Olinda. “Figuras femininas e seus amores”. In: Gil Vicente 500 anos depois. Vol. 2. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 2003.
MUNIZ, Márcio Ricardo C. A educação pelo amor: uma leitura da Tragicomédia de Amadis de Gaula, de Gil Vicente. Dissertação de Mestrado em Letras - Literatura Portuguesa. São Paulo: USP, 1997.
PAXECO, Elza F. “Da tragicomédia de D. Duardos”. Revista da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, V, 1938, p. 193-203.
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RECKERT, Stephen. Espírito e letra de Gil Vicente. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983.
RIVERS, Elias L. “The Unity of Don Duardos”. Modern Language Notes, vol. LXXVI.,Nº. 8, 1961, pp. 759-766.
SANT’ANNA, Afonso R. de. Paródia, paráfrase e cia. São Paulo: Ática, 1988.
SARAIVA, António José. Gil Vicente e o fim do teatro medieval. 3ª ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1970.
VICENTE, Gil. Obras completas. Prefácio e notas por Marques Braga. 4ª ed. Lisboa: Sá da Costa, 1971.
______. Tragicomedia de Don Duardos. Editada por Dámaso Alonso. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1942.
WARDROPPER, Bruce. “Aproaching the Metaphisycal Sense of Gil VIcent’s Chivalric Tragicomedies”. Bulletin of the Comediantes, 1964, vol. 16, nº1.
ZIMIC, Stanislav. Estudios sobre el teatro de Gil Vicente (Obras de tema amoroso). Santander: Separata facticia del Boletín de la Biblioteca de Menéndez Pelayo, 57, 1983, p. 45-103.
Andreza Barboza Nora
Mestre/ Uerj/2008
Professora Assistente de Língua Portuguesa/ Literatura da Universidade da Força Aérea (Unifa)
Programa de Pós Graduação Ufrj – Letras Vernáculas
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1Esta é uma narrativa cavaleiresca concebida e intensamente divulgada na Península Ibérica quinhentista, como popular terá sido o ciclo do qual faz parte: o dos Palmeirins, lançado com a publicação de Palmeirín de Oliva, em 1551. Tornou-se texto disponível desde, pelo menos, a edição salmantina de 1512 (Cf. ALMEIDA, 1991, p. 7).
2 “entra para pedir o direito de vingança ao Imperador junto com Primaleón, seu filho, a respeito da ofensa de Gridonia”.
3 “Enquanto ocorriam estas coisas, Camilote matou D. Robusto e outros cavaleiros pelo desafio de Maimonda contra Flérida. D. Duardos, sabendo disto, armou-se, foi ao campo e matou Camilote”.
4“cavaleiro selvagem, com Maimonda sua dama, pegando-a pela mão. E sendo ela o cúmulo de toda fealdade, Camilote a vem elogiando desta maneira”.
5 Também o amor de D. Quixote por Dulcinéa é um “amor de oídas”.
6 Reis Brasil observa que “a fala dos hortelãos é do mais belo e significativo da peça”, embora não explique em que sentido específico o é (BRASIL, 1965, p.182).
7Márcio Coelho Muniz, em sua dissertação intitulada A educação pelo amor: uma leitura da Tragicomedia de Amadis de Gaula, de Gil Vicente, já observou como “a exaltação da sinceridade na expressão do amor corrobora a formação de um ideal de vida guiado pela honra e pela virtude” (MUNIZ, 1997, p. 85).
8 Para o autor, o amor entre D. Duardos e Flérida “appears as a disruptive force, which brings two people together only at the cost of driving them apart from everyone else” (HART, 1961, p. 106).