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Ausência e dor: lamentos de um pastor namorado
Marina Machado Rodrigues
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
Universidade Federal Fluminense/UFF
mr.marina@terra.com.br
Ausência e dor: lamentos de um pastor namorado: O objeto deste trabalho é o estudo da écloga V, de Luís de Camões, “A quem darei queixumes namorados”, no que respeita à dimensão estética. O texto permitiu o exame de conceitos como petrarquismo, neoplatonismo e código cortesanesco; bem assim análises sobre as heranças clássica e italianizante, modelizadas e transformadas, quer pela mundividência maneirista, quer pela sensibilidade própria de Luís de Camões.
Palavras-chave: Literatura Portuguesa.Lírica de Camões.Écloga V
Absence and pain: the lament of a lovesick shepherd:The purpose of this paper is to introduce aesthetic considerations about Eclogue V, by Portuguese poet Luís de Camões, entitled “A quem darei queixumes namorados” (“Who shall I address lovesick laments to”). The text examines concepts such as Petrarchism, Neoplatonism and a courtier´s code; it also deals with the modelling and transformation of Classic and Italian heritages in the poem, either through a Mannerism worldview, or through Luís de Camões’ own aesthetic sensibility.
Key-words: Literature Portuguesa. Lírica de Camões. Écloga V
A revitalização da écloga, a partir do século XV, responde a duas necessidades fundamentais: uma de caráter estético e outra de caráter sociológico. A primeira - o ressurgimento da écloga enquanto forma clássica – é conseqüência do renascimento estético e cultural promovido pelo Quatrocento italiano, que resgata formas genesíacas das culturas grega e latina, como a ode e a elegia; e gêneros, como a tragédia ou a epopéia. A segunda surge como decorrência do cosmopolitismo, que teria favorecido, por antítese, a idealização do espaço campestre, recuperando mitos como o da idade do ouro ou o da aurea mediocritas, uma espécie de opção, pela via da utopia, à intensificação do gregarismo que a vida nas cidades propiciava e que também se consubstancia nas dicotomias: vida em sociedade/vida solitária ou vida urbana/vida comunitária aldeã, como ensina Cardoso Bernardes (BERNARDES, 1988, p.21). Essa oposição, já evidente nas Bucólicas de Virgílio, ganha em Sannazzaro uma dimensão bastante significativa, uma vez que reforça a identidade entre o estado pastoril e a autenticidade das palavras e atitudes.
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No séc. XVI, a écloga surge como alternativa da sinceridade discursiva, por vezes “funcionando como reação e como catarse”, em face do crescente contingente populacional concentrado nos centros urbanos. Neste sentido, a poesia pastoril constitui também “uma deliberada subversão ética do mundo empírico”, não apenas porque “se assume como uma contrafactualidade idealizada, mas porque sua semântica incorpora frequentemente temas de caráter sócio-político, em termos de denúncia ou de problematização” (BERNARDES, 1988, p.21).
Nas éclogas camonianas constata-se um universo pastoril ou piscatório, marcado pela carência e pelo inconformismo. O conflito vivido é eticamente insolúvel e resulta, essencialmente, de forças transcendentes - cujos desígnios inacessíveis - são responsáveis pela determinação da carência do pastor. Desta consciência, decorre uma constante interpelação dos valores da justiça e da lógica, sobretudo quando estes, apesar da estreita consonância com o código moral cristão, não se amoldam à evidência e à simplicidade da Natureza. Na écloga V, “ A quem darei queixumes namorados”, a interpelação se dirige à pastora, metáfora da antiNatureza, cuja transformação, provocada pela mudança e pelo tempo, interdita a relação amorosa no presente.
O poeta/narrador inicia o texto com uma interrogação para a qual já sabe de antemão a resposta: a quem dirigirá os lamentos de seu pastor namorado? Quem poderá dar ouvidos às súplicas que ele alega ter ouvido? Sob que nome proeminente elas poderão ganhar amplitude? O objeto de sua homenagem é D. Antônio de Noronha, “grão senhor famoso e excelente” pelas qualidades que reúne e pelo prestígio e fama de que goza nos meios cortesãos. Espera contar com a benevolência do mecenas (“Quem lhe fará divido gasalhado?”) porque alega ser D. Antônio um ser de exceção (“Especial em graças entre as gentes”), de quem emanam as graças espalhadas sobre a terra (“Em vós as graças todas se hão juntado/ De vós em outras partes se reparte”), metáfora da generosidade. O nobre é qualificado também como “estrela guia”, exemplo a ser seguido e garantia de que o canto pastoril fosse ouvido por todos em toda parte. Justificando a escolha do homenageado, declara que as qualidades do mecenas excedem o que buscava (“Em vossas perfeições, Grão Senhor, vejo, /cumprido inda além o meu desejo”) e que para cantar-lhe os feitos seria preciso “aparelhar um novo espírito”. A oposição entre o estilo humilde e o estilo sublime - o primeiro como um exercício preparador para o segundo - e a conseqüente diferença de tom entre o canto pastoril e o canto épico evidencia-se na estrofe abaixo:
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Em quanto aparelho um novo esprito,
E voz de cisne tal que o mundo espante,
Com que de vós, Senhor, em alto grito,
Louvores mil em toda a parte cante,
Ouvi o canto agreste em tronco escrito,
Entre vacas e gado petulante1:
Que quando tempo for em milhor modo
Por vós me ouvirá o mundo todo.
Aqui, metáfora e hipérbole servem ao discurso laudatório comum em dedicatórias.
Na parte introdutória (as quatro estrofes iniciais), observam-se: o pretenso tom confessional; a identidade entre poesia pastoril (canto agreste) e autenticidade de sentimentos - associação que remonta às raízes greco-latinas; bem como o desabafo que constitui o canto pastoril: (“Por dar alívio em parte a seu cuidado”).
Segundo o poeta/narrador, as súplicas ouvidas foram transcritas no tronco de uma árvore (“Ouvi o canto agreste em tronco escrito”) e o relato/documento atesta não só as dores do sujeito, mas a veracidade de seus sentimentos, na medida em que não pressupunha qualquer interlocução (“Cuidando de ninguém ser escutado”).
A partir da 5ª estrofe, o poeta/narrador cede a voz ao sujeito lírico - o pastor não nomeado - que é o autor das queixas; o que faz do texto um solilóquio e o distingue das demais éclogas camonianas, com exceção da VIII, todas dialogadas. A escolha de tal estrutura reforça o pretenso tom confessional e ao mesmo tempo consubstancia a solidão do sujeito. A pastora não tem voz, é falada, ou melhor, é lembrada. Sua imagem é, ao mesmo tempo, identificada com o sol – tendo a beleza e o esplendor como sema comum – e com a água, conotando a frieza e fluidez de seus sentimentos. Os significantes sol/calor x água/frio, elementos vitais ao homem, associados à imagem da pastora e reunidos reforçam a idéia de que a amada é tão indispensável à sobrevivência do pastor como aqueles o são à Natureza. A aparente dicotomia é de fato complementaridade.
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O espaço é não nomeado; é genericamente o campo, onde o pastor apascenta o rebanho. Não é possível fixar a paisagem em imagens precisas, pois trata-se de referências arquetípicas. É uma Natureza que possui valor essencialmente subjetivo, convertida em intérprete privilegiada das dores do sujeito. Ela também servirá de actante, enquadrando a oposição entre passado e presente.
O texto situa a ação no crepúsculo2 (“Já declinava o Sol contra o Oriente, /E o mais do dia já era passado,”). Observe-se que a referência temporal está em perfeita consonância com o estado anímico do sujeito que é de profunda melancolia, clima típico da estética maneirista.
O pastor intenta compreender a transformação ocorrida com sua pastora, agora insensível aos apelos amorosos. Aventa diversas hipóteses para justificar-lhe a inumana condição: ou teria nascido no monte Píndaso3; ou seria feita de mármore, material que se iguala, pela beleza e dureza, à atual índole da pastora; ou fora convertida em pedra, perdendo a humanidade, embora a aparência desmentisse a metamorfose. Queixa-se de que a Natureza, ao operar tal transformação, converteu-lhe em pedra o coração. Se a formosura faz eclodir o desejo, a condição esquiva da pastora interdita a relação amorosa, restando o canto como desafogo. Na poesia camoniana, a metamorfose é sempre exterior ao sujeito lírico, mas implica consequências que se abatem sobre ele, sobretudo ao nível psicológico, ao contrário do que acontecia na poesia de Petrarca, para quem a metamorfose exprimia o enigma da mulher, que reúne beleza e dureza, halo espiritual e presença material, na irredutibilidade de seu ser.
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O sujeito lírico - perplexo diante do silêncio da pastora - alega que seu canto (se fosse ouvido) comoveria gente das mais remotas regiões; que teria o poder inclusive de amansar as feras de Hircânia4. Aliás, a fórmula “é mais fácil amansar feras/tigres do que o coração da dama” é um dos tópicos literários da tradição, referida em Virgílio, Petrarca, Tasso ou Boscán - como esclarece Faria e Sousa. Hipoteticamente, o pastor sugere a possibilidade de sensibilizá-la através do canto, mas percebe que a esquiva é diretamente proporcional à beleza; e que o apelo é intransitivo, ou pior, funciona às avessas: quanto mais a deseja, menos se mostra ela disposta a aquiescer (“Que fazem senão mais endurecer-te?”). A pastora se conforma como a Laura pétrea petrarquista: é a dolce nemica, a aspra fera, que leva o amante ao desespero, e à qual se associam temas como o contraste entre a irreversibilidade do seu estado e a renovação da Natureza ou o auto-aniquilamento.
Nas quatro estrofes que se seguem (7ª, 8ª, 9ª e 10ª), o sujeito argumenta, em tom persuasivo, que se a amada ouvisse seus apelos e deixasse a beleza vencer a crueldade veria “a fé tão limpa e pura”, perceberia então os propósitos e a firmeza de seu amor. Mas a adversativa corta, como a navalha, o fio de esperança que se inscrevia na hipótese, ao se dar conta da identidade entre os semas beleza e crueldade que conformam a Natureza de sua pastora (“Mas nunca achei milhor tua beleza, /Senão com ver-se em ti tua dureza”). Queixa-se de que o mal que o acomete (duro e grave) comoveria até um coração que não sente, não humano, portanto. Comoveria mesmo a morte, que não se apieda de qualquer ser vivo. Aqui, em tom argumentativo, estabelece uma relação silogística entre a Natureza humana e os seres inanimados (a água e a pedra) para demonstrar que mesmo a dureza do mineral está sujeita à ação da água, pela persistência e constância, como ensina o adágio. É quando interpelando a lógica racional questiona: como será possível que lágrimas não possam converter um coração? A lógica dos elementos não se aplica a seres humanos? Em que se apoia a ordem cósmica?
Na 11ª estrofe, as metáforas criam uma relação de identidade entre partes de seu corpo e elementos da Natureza: os olhos são fontes de que manam lágrimas; o peito é conotado como “viva frágua”, que queima com o infortúnio. A autonomia das partes do corpo reflete a herança do código cortesanesco e a consequente fragmentação do sujeito.
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Amor, Eros, para aumentar seus tormentos, faz arder sempre mais (acende a ardente chama) o desejo. Nesta estrofe, vocábulos e expressões associados criam a relação antitética entre fogo e água, tais como frágua, fogo, inflamar, acender, ardente chama e ardentes suspiros, fonte/lágrimas, atestando tanto a presença do desejo quanto a impossibilidade de realizá-lo. Neste espaço não urbano, o sentimento acomete livremente, não se submetendo aos códigos da rígida moral cristã. Não se trata já do “herético desejo” , ou do “baixo sentimento” que provocam culpa ou remorsos. O sujeito, vítima da beleza da amada, não pode deixar de desejá-la, mas é ele igualmente vítima do Amor contra quem é incapaz de lutar.
Na 12ª estrofe, o peito é comparado a um incêndio; e as lágrimas, como a água, serviriam para aplacar o fogo/ardência. Observe-se a plurivalência do vocábulo água: água que perfura a pedra, água dos olhos, decorrente da atitude esquiva da amada; água que defende (nesta estrofe o verbo defender tem o sentido de afastar), que apaga o incêndio, traduzindo rejeição ou afastamento. Mas a água, metáfora da indiferença dela, ao invés de apagar o fogo, exerce um efeito contrário: mais o acende. A impossibilidade é o combustível para a manutenção do desejo. No jogo: ele - fogo/ ela – água, reforça-se a impossibilidade da relação, já que sujeito e objeto ocupam posições antitéticas. Ainda, a associação entre o elemento água e a imagem da amada reforça o caráter fluido de seus sentimentos.
Nas duas estrofes que se seguem, 13ª e 14ª, o sujeito lírico compara o movimento dos dias e das noites com o seu sofrimento, queixa-se de que “seus trabalhos” (“meu trabalho e mal tão forte”) excedem as canseiras extremas, que sempre conhecem termo, enquanto que as suas não têm fim; ao contrário, ele espera, orgulhosamente, com o decorrer do tempo, mais tormentos ou a morte.
No Maneirismo, e especificamente na lírica de Camões, como ensina Aguiar e Silva (SILVA, 1971, p. 256-257), a poesia amorosa é constantemente dominada pelo tema da ausência, tanto no espaço quanto no tempo. Da distância (no tempo e/ou espaço), o amor e a amada são evocados pela memória, resultando da recordação um sentimento de desengano e frustração. Um dos temas em que se corporifica a ausência amorosa no tempo e no espaço é o “da meditação traspassada pela mágoa em torno das memórias de um amor passado e da amada distante”. O tempo é irreversível, aumentando a mágoa que ensombra o presente. O sofrimento nem na morte encontrará termo.
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Solidária com as dores do pastor, a Natureza, nas estrofes 15 e 16, também compunge-se: as rosas emurchecem; o lírio e o cravo perdem as cores e não florescem; as boninas se entristecem. O rouxinol e a andorinha emudecem. A lenda grega ilustra hiperbolicamente a dimensão de seus tormentos, maiores do que os das duas irmãs5. A relação entre o sujeito e a Natureza é tão íntima que ela é incapaz de oferecer alento ao amante, a quem a paisagem devolve, por reflexo especular imediato, os problemas de amor que o atormentam. Os montes, as árvores, os animais se mostram sensíveis aos lamentos do pastor, mesmo “sem ter sentido”, mas a pastora, aqui comparada à serpente, insiste em não ouvi-los. Na tradição cristã, Satã, disfarçado de serpente, instiga à queda, persuadindo Eva a desobedecer a uma ordem de Deus, originando a representação do animal como a personificação da tentação, do demônio e da enganação. É comum também a relação simbólica entre a serpente e o princípio sedutor da mulher.
Os apelos e as dores desiguais, desproporcionais, que são as dele, não têm qualquer efeito sobre o “peito endurecido”. Pelo contrário, como já denunciara perplexo, na estrofe 6, exercem um resultado contrário, incompreensível, por ser no mínimo antinatural.
Nesta écloga, a oposição entre dois tempos ilustra também duas concepções amorosas cujas características denunciam as influências da lírica medieval: o amor sob o signo da paixão, próprio do lirismo galego-português e um tipo de amor que se aproxima do clima psicológico experimentado pelo amante nas cantigas de amor, sob o signo do sofrimento. O passado corresponde à versão amorosa vigente nas cantigas de amigo, em que o desejo não fora interditado e a culpa não se interpunha entre os amantes. Como ensina Nadiá Paulo Ferreira (FERREIRA, 1996. P.14) , tal concepção amorosa não inscreve a dor, mas “a expectativa de se viver a verdadeira felicidade”, compreendendo o amor como “Promessa de Felicidade Fálica” e se afirmando como “um valor que está acima das leis morais de uma sociedade que exige das mulheres a castidade antes do casamento” (FERREIRA, 1996, p.14). O naturalismo aparente na proposição atesta tal fato - “Ali onde mil vezes me mostravas/Ser eu de ti o pasto desejado”. O verso foi mudado na 2ª edição, muito provavelmente, pela crueza inscrita – a identificação entre pasto/ alimento desejado.
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O erotismo se manifesta também nos símbolos do cervo e da fonte, como a tradição literária tem mostrado. Leodegário A. de Azevedo Filho, demonstrou exemplarmente, em sua leiturade As cantigas de Pero Meogo (AZEVEDO FILHO, 1981, pp. 122-123), as relações simbólicas de tais significantes na lírica trovadoresca:
>A imagem do cervo, como símbolo de sexualidade viril, tanto se encontra na mais remota tradição pagã como na própria tradição bíblica. Menendez Pelayo (hhe), a propósito, lembra o perdido opúsculo de São Paciano, Bispo de Barcelona, intitulado Kerbos ou Cervos, onde era combatido o costume pagão de se disfarçarem os jovens com máscaras de cervo nas Kalendas de Janeiro, para cometerem excessos de ordem sexual. Essa tradição pré-cristã, possivelmente, mesclou-se com a própria tradição bíblica, redimensionando-se, em sentido espiritual, o símbolo do cervo. Com efeito, nos Cantares de Salomão, 2, 8-9, lê-se: O meu amado é semelhante ao gamo, ou ao filho da gazela; eis que está detrás da nossa parede, olhando pelas janelas, espreitando pelas grades. E antes, 2,7: Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas gazelas e cervas do campo, que não acordeis nem desperteis o amor, até que este o queira.
Por isso Mendez Ferrin (ocpm) afirma que ‘a comparación do cervo ao amante é común coa literatura bíblica e que a imaxe da ferida pra simbolizar os males do amor ten un grande desenrolo en toda a literatura europea’ (op. cit. p. 59).
Mas nos parece pouco feliz a tentativa de Filgueira Valverde (pcv), a partir da insistência da junção de dois elementos (cervo e fonte) em querer ligar o tema à influência do Salmo II, 42.1 (A alma anela por Deus). A nosso ver, o referido Salmo não pode ser a fonte literária do tema, por ter caráter apenas místico: “Como deseja o cervo a água da fonte, assim deseja a minha alma a ti, Deus.” Ora, nas cantigas de Pero Meogo, o símbolo não esconde as suas conexões pagãs, opondo-se assim ao sentimento religioso e puro de anseio da alma por Deus. Se há influência bíblica na constituição do símbolo, esta se encontra, como acima indicamos, no Cântico dos Cânticos do Rei Salomão. Aubrey Bell (mlr) apesar de sua explicação unilateral ou apenas religiosa, de há muito havia defendido essa tese. Ainda assim, tal influência naturalmente se mesclou com a própria tradição pré-cristã ou pagã na Penísula Ibérica. Por isso, afirma Eugênio Asensio: “El ciervo, símbolo fálico, pertence a la mas típica herencia del paganismo hispánico.” (op. cit. p. 56). Na verdade, portanto, a mais remota origem do símbolo se perde na noite dos tempos... E o que nos interessa, para explicar o mito na linguagem poética do jogral galego-português, é a compreensão de que o cervo simboliza a sexualidade masculina, ao contrário do sentido que hoje tem, mesclando-se a tradição pagã com a tradição cristã.
Sobre as origens remotas do tema da fonte, ensina também Azevedo Filho:
(...) lembra Mendez Ferrin (ocpm) que, na época pagã, era costume render-se culto às fontes, através de oferendas de pão e vinho, em relação mais ou menos vaga com os ritos da fecundidade. Eugênio Asensio (pcr), bem antes, já indicava que a fonte é um símbolo complexo de sugestões, entre as quais a idéia de renovação e fecundidade. Ainda hoje, aliás, são comuns as referências ao tema: a fonte mágica, a fonte de amor, a fonte da juventude, a fonte da vida... Por isso, lembra ainda Mendez Ferrin (ocpm) não ser estranho que a influência religiosa da Idade Média tratasse de imprimir caráter cristão ao mito pré-cristão. A Bíblia, como se sabe, em particular nos Salmos e Provérbios, está repleta de símbolos ligados à fonte. Assim, é perfeitamente provável que tenha havido uma interpenetração semântica entre o conteúdo pagão e o conteúdo cristão da visão da fonte como origem da vida ou símbolo de fecundidade. Ou seja: a influência cristã ou bíblica teria, espiritualmente, redimensionado o mito pagão da fonte, envolvendo todos os seus ritos relacionados com o tema da fecundidade (1981, p.121).
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O verbo folgar, neste contexto, também reforça as referências eróticas contidas nos símbolos do cervo e da fonte.
Se o passado sugere a realização amorosa, o presente é marcado por dor e ausência. O sujeito persegue as imagens do passado, mas as buscas mostram-se infundadas (“No campo em vão te busco e busco o monte,”). A passagem do tempo transforma o amor sob o signo da paixão em amor impossível e as lembranças de um tempo feliz dão lugar ao discurso disfórico que atinge a paisagem e os seres vivos. O amor realizado no passado se transforma em engano no presente. Contudo, o amante desenganado não pode abrir mão de seu desejo e o descompasso entre amante e amada é responsável pelo sofrimento que se abate sobre ele, clima mental do qual participa também o trovador, na estética do amor cortês. Muito embora o amor camoniano não reproduza o modelo do amor cortês, é inegável que ambos partilham estados anímicos semelhantes. Afinal, entre a Idade Média e o século XVI medeiam a experiência de Petrarca e a dos petarquistas.
Na 18ª estrofe, a Natureza transformada – o lugar ermo (“Este lugar de ti desamparado”) - se opõe à Natureza esfuziante contemplada no passado. Na poesia camoniana, a mulher é, muitas vezes, o contraponto da Natureza, submetida que está aos padrões e códigos morais que interditam o desejo.
O sofrimento, amplificado pela lembrança da felicidade pretérita, engendra o apelo, expresso no imperativo, no uso da hipérbole e da metáfora encarecedora (“Torna meu claro Sol, vem já meu bem,/ Torna pois já pastora a este prado/ Ouve-me, pois me vês já morto e frio”). A argumentação também se vale da parábola ou do discurso exemplar, típicos das súplicas de amor camonianas, precedendo, de forma silogística, a interrogação na negativa:
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“Bem vês que por amor se move tudo,/ E não há quem d’amor se veja isento:/(...) A música do leve passarinho (...)/ A fera que é mais fera e o lião/ O cervo que escondido e emboscado,/(...) Se o animal insensível que não sente, /Também sente d’Amor a frecha dura,/ Por que te não abranda o fogo ardente/ Que procede de tua fermosura?”. Aqui o sujeito recorre ao mito bíblico6 de Josué para questionar a falta da pastora. Nas líricas do dolce stil nuovo, petrarquista e petrarquiana, em conformidade com a herança da lírica provençal, é recorrente a relação entre a luz e a presença da amada; ou dos olhos como via natural pela qual o amor penetra na alma e no coração do amante. Atente-se para a importância que a vista e o olhar adquirem na gênese e no desenvolvimento do amor nos tratados do neoplatonismo renascentista.
O sujeito passa a descrever os efeitos decorrentes da ausência da amada na paisagem e nos animais: (“Secou-se o campo dês que lhe negaste/ Dos teus fermosos olhos a luz pura”); (“Não pace o branco gado com secura”). Observe-se que o sentimento da Natureza ocupa um lugar de destaque na literatura do século XVI, como acredita também José Augusto Cardoso Bernardes:
(...) não apenas como pano de fundo, mas também como tema obrigatório e estruturante de grande parte da literatura da época. E, se em muitos casos, a sua representação se situa ainda próxima dos estereótipos latinos configurados em torno da oposição entre o ‘locus amoenus’ e o ‘locus horrendus’, de uma forma geral, a sua importância excede esses parâmetros, funcionando como quadro de referência positivo em que o sujeito poético projeta seus sentimentos, por identificação ou por contraste. Deste modo, a Natureza surge como confidente dos gostos e dos desgostos humanos, como espaço de celebração ou de lamentação ou ainda como cenário de utopias e ucronias que se substituem às próprias coordenadas da História. (BERNARDES, s/d, vol.II, p.21-22)
A secura do solo metaforiza Eros como penúria (Thánatos), índice da interdição. A ausência dos olhos da amada implica a morte da flora, que não sobrevive sem a luz do sol, exercendo o mesmo efeito sobre o sujeito, que definha. Nova alusão à fonte (“Secou-se a fonte donde já te olhaste/ Nega, sem ti, a terra dando gritos, Pasto às cabras e leite aos cabritos.”), desta vez pela negativa, - em oposição ao valor simbólico que sugeria nas cantigas de amigo. A notação temporal (agora) sublinha o contraste entre passado (melhor que agora) e presente (áspera e dura). A coita de amor, efeito da privação do objeto, está presente tanto na lírica medieval como no código petrarquista, mas a escolha do vocábulo gritos traduz os sentimentos de dor e angústia na visão subjetivada da Natureza, em perfeita consonância com o imaginário maneirista.
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Na 20ª estrofe, a amada é novamente conotada como doce, mas cruel inimiga (inimiga x amiga das cantigas, receptiva aos apelos amorosos), repercutindo a imagem da Laura pétrea.
A passagem do tempo não minimiza o sofrimento (“Com meu chorar por ti, contino cresce;/ Este ribeiro, quando amor me obriga,”), ao contrário, só faz aumentá-lo. É sob o signo da desesperança que se move o sujeito.
A argumentação apoiada na experiência demonstra, por contraste, o absurdo da atitude feminina: (“Não há fera que a fome não persiga; Nem o campo sem ti já não floresce;”). Os olhos dele, obnubilados, já não veem: (“Cegos estão meus olhos, já não vem, /Pois que não podem ver meu claro bem.”). O oximoro, figura recorrente na estética petrarquista, é amplamente empregado na poesia camoniana: “compostos em concerto desigual”; “cara minha inimiga”; “abarco e nada aperto”; “em paz com minha guerra”; “mansa fera”,etc.. Tal recurso associa-se a processos de amplificação do conflito, como em: “doce cruel minha inimiga”, também típico do Maneirismo.
Mudando a estratégia e abrindo mão da argumentação racional, o sujeito apela aos sentimentos da amada, passando a enumerar os resultados provocados por sua ausência na paisagem e nos animais: a tristeza do campo sem flor, devido à secura (“Não chove ao pasto, já que há d’agoa falta)”; o gado perece com a falta de chuva: (“As mansas e pacíficas ovelhas/Sem ti perecem e o Céo também lhes falta;”); as abelhas não acham flor, pois os campos estão secos (“Não acham flor as melífluas abelhas;”); abrolhos são produzidos com as lágrimas vertidas pelo pastor (‘Com lágrimas que manam dos meus olhos,/ Produze a terra já ásperos abrolhos”).
O uso do imperativo funciona como um retorno ao discurso racional (“Torna pois já pastora a este prado/ Torna, vem já, meu Sol tão desejado,”) em que o amante enumera os diversos benefícios que a presença dela traria (“E restituirás esta alegria;/Alegrarás o monte, o campo, o gado,/Alegrarás também a fonte fria”). Aqui novamente a pastora é conotada como o sol, o que sublinha sua importância para a manutenção da vida dele e da Natureza, em relação especular. Também a aliteração em dura/dureza iguala pelo predicado dois termos: a pedra e a amada.
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Na estrofe 24, as lembranças da felicidade vivida tornam seus tormentos mais dolorosos. Reassegura a firmeza de propósitos (“Não te quero eu a ti mais que a meu gado? Não sou eu mesmo aquele que tu amaste?”) que contrasta com a inconstância dos sentimentos dela. Questiona as razões que a fizeram deixá-la de amá-lo (“Pois onde mereci tão grão desvio?”). Onde errou para merecer tanta indiferença? Aqui claramente se mostra a mudança e a passagem do tempo como degradação, de acordo com a ótica maneirista (“Teu coração de mim tens apartado/ E o lugar também desamparaste”). O verso: “E do primeiro amor que me mostraste,” admite a ambiguidade de sentidos: foi ela quem fez revelar a ele o amor ou ele foi o seu primeiro amor? Ou, ainda, a revelação foi simultânea? De qualquer modo, se configura a mudança de estado, responsável pelo dissídio, que é um estado de espírito tipicamente petrarquista e encontra no Maneirismo terreno favorável a seu pleno desenvolvimento. A harmonia refletida no petrarquismo renascentista transmuta-se numa visão dominada por sinais de inquietude e de preocupação. O caráter fugidio da figura feminina, bem como a dificuldade de captar sua essência, a impossibilidade de viver o amor como um sentimento gratificante, ou a aguda consciência do caráter inexorável da passagem do tempo e da insignificância do gênero humano em face da prepotência das forças que o comandam, instauram o dramático e doloroso sentido de dissídio petrarquista. O sentimento da Natureza ilustra-o muito claramente. Se o mundo natural, para a sensibilidade petrarquista, se faz espelho direto do que vai na alma do sujeito, neste contexto, as mágoas e os dramas que nele se projetam não podem deixar de se mostrar também muito mais violentos. O lamento proporcionado por uma tão profunda melancolia faz-se, por isso, um dos seus mais firmes suportes.
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No Renascimento, a imitação do código petrarquista não propiciava uma análise da psicologia do poeta dada a necessidade de harmonia que lhe era inerente. Também os pressupostos stilnovistas, incorporados pela estética de Petrarca, inviabilizaram o aprofundamento do conflito interior, ao envolver todos os tormentos de amor numa aura de suave doçura, incompatível com o clima mental que dominou a estética maneirista. Ao longo do século XVI, o conflito interior ganhou amplitude, gerando um sentido de desagregação e de ruptura muito mais profundo do que o vislumbrado na poesia de Petrarca.
Os laços entre sujeito e objeto são interditados; a amada ocupa um lugar de ausência, quer no tempo ou no espaço, quer em relação aos sentimentos do amante, fazendo-se dura e insensível aos lamentos e à visível desorientação experimentada por ele. Como observa Rita Marnoto (1997, p.591), o sujeito lírico da poesia camoniana configura-se, como em nenhum dos poetas portugueses de sua época, como um “ser fragmentado, disperso, repartido entre si e si mesmo” A memória coloca o seu pensamento diante de “farrapos de vida desconexos” e ele se vê repartido entre o mal do presente e o bem do passado, cuja representação tem tão viva dentro de si como se esta se achasse impressa em sua alma.
Os reflexos da ruptura da unidade ontológica estruturam-se em torno de duas linhas de força: discordia animi fluctuantis e tristitia et miseria. O acúmulo de sinais de inquietude, característicos da cosmovisão maneirista, tem como consequência cisões insanáveis na intimidade do sujeito. Sob o peso da melancolia, este se deixa prostrar num ensimesmamento depressivo.
Na tentativa de reversão da situação, pela via da razão, apela para a argumentação demonstrativa, usando como parâmetro a Natureza e a experiência, já que o apelo à sensibilidade foi impotente: (“Bem vês que por amor se move tudo, E não há quem d’amor se veja isento:”). Mostra que Amor rege os seres no universo, do mais reles e insignificante ao de mais alto pensamento (o homem). E justifica que na terra, no mar (“Até debaixo d’agoa o peixe mudo/ Lá tem d’amor também seu movimento;”) ou no céu (“A ave, que no ar cantando voa/Também por outra ave se afeiçoa.”), todos estão sujeitos à lógica da Natureza, que é a mesma sempre. Aqui fica claro que o sujeito concebe o amor sob uma ótica natural: o desejo é inerente aos seres vivos e não se render a ele é que parece ser um ato irracional.
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O texto sugere uma relação de identidade entre o canto dos pássaros e o do pastor. Mas entre os animais, o canto funciona como um chamado ao encontro amoroso, a que o outro acede. (“Cantando com amor suspira e chama, Té achar no amado e doce ninho/Aquele a quem busca e a quem ama;/Tendo só seu descanso em quem achara.”). No caso do pastor, o canto é ineficaz diante da impossibilidade, funcionando somente como um lenitivo.
A argumentação persiste. Agora toma como exemplo as feras, cuja metonímia é o leão, que também não se faz imune aos efeitos de amor (“A fera que é mais fera e o lião/Sempre acha outro lião e outra fera/Em quem possa empregar ũa afeição,”). Através do recurso da personificação, o pastor elucida as sensações experimentadas pelos seres humanos sob o signo da paixão: (“Também sabe sentir sua paixão,/Também suspira, morre, e desespera,/ Acena, salta, brada, ferve e geme,”). Mostra que mesmo o animal mais forte e temido teme os efeitos produzidos por amor, ao qual é impotente: (“E não temendo nada, Amor só teme.”). Na estrofe, observe-se a referência a Eros, que, segundo Junito Brandão, “é o amor personificado” e que “em grego, significa desejar ardentemente”; é “o desejo incoercível dos sentidos” (1995, p.209, v.II).
Em O banquete, de Platão, os discursos pronunciados em honra de Eros apresentam gêneses diversas e igualmente diversas concepções para o deus: 1) como deus uno: para Fedro (Eros era o mais antigo dos deuses) e para Ágaton, (o deus mais novo); 2) como deus duplo: para Pausânias e Erixímaco. Para o primeiro, Eros ligado a Afrodite Urânia se associava ao amor celestial e Eros ligado a Afrodite Pandêmia representava o amor físico. Já Erixímaco estende a duplicidade do deus à Natureza, às artes e às ciências; 3) Aristófanes acreditava que a função de Eros seria a de permitir aos homens reencontrar sua unidade perdida – logo, a felicidade - fracionada desde a origem; e Sócrates crê que Eros não seria um deus, mas um demônio, um intermediário entre os deuses e homens; filho de Pobreza e Expediente, de quem herdara a falta de bens (da mãe) e os meios de consegui-los (do pai).
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De acordo com Pierre Brunel (1997, p.323), A Idade Média concebia o deus como “um homem adulto e lúcido”, já a Renascença recupera o “motivo cultivado na Antiguidade do puer alatus, e aí se desenvolve a imagem do Amor cego: os pintores, notadamente, Piero della Francesca, representavam-no com os olhos vendados, simbolizando assim o que o sentimento tem de arbitrário e inconsciente”. Sobre a passagem do Eros cosmogônico ao pequeno deus Amor, ainda é Brunel quem explica que: “pode-se encarar o segundo como sendo a adaptação do primeiro às exigências pessoais dos sentimentos dos poetas, isto é, como sendo a força universal do desejo reduzida a proporções humanas, o que explicaria a miniaturização da figura do deus”.
Na 28ª estrofe, o pastor recorre ainda à imagem do cervo (novamente a notação erótica). O bosque é um espaço duplamente perigoso porque abriga o caçador, metáfora da morte; e Amor, igualmente passível de ferir e/ou de matar. O Poeta joga com os sentidos do verbo ferir em duas acepções: provocar ferimentos e magoar. Embora tema o caçador, ávido por eliminá-lo, o animal teme igualmente Amor, e por isso anda acompanhado por “amor e temor”. Para Camões, o Amor será sempre o tirano, a quem todos temem, até mesmo o mais forte dos animais.Construindo uma teoria geral, parte de uma situação particular, a do cervo, para demonstrar que os que amam, com razão (“Com justa causa”) experimentam juntamente amor e temor. A imagem do cervo se cola à do pastor. Sob a ótica camoniana, o Amor provoca, invariavelmente, sofrimentos. Reafirmando que qualquer animal está sujeito aos efeitos do Amor (“Também sente d’Amor a frecha dura,”), questiona por que só a amada não se deixa levar pelos apelos do desejo e não se deixa vencer pelo sentimento? (“Por que te não abranda o fogo ardente/ Que procede de tua fermosura?)”. A forma se vale da identidade entre olhar/luz do sol, mas o conteúdo não conduz à concepção neoplatônica da chama como elemento purificador do desejo. O código é chamado a significar, mas seu sentido é subvertido.
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O pastor aventa a hipótese de que se a amada o visse talvez se compadecesse de sua dor na 30ª estrofe. Mas a adversativa mostra a consciência da impossibilidade e pontua o contraste entre as posições dicotômicas: a indiferença dela e a premência do desejo dele, marcada pelo advérbio já, imediatamente (“E bem pouco fizeras se me viras, Já que eu só por te ver suspiro tanto”). Ainda no campo hipotético se pergunta que sentimentos suas mágoas e suspiros poderiam (aqui a forma poderão deve ser lida como poderiam - fut. pret. ind.- já que se trata de uma situação hipotética) desencadear nela? Dor, piedade, amor (“sentimento”)? Mas a hipótese formulada se transforma em certeza desalentada na estrofe seguinte, uma vez que o diálogo com a razão faz saber serem os seus “pensamentos vãos”. A esperança é solapada (“O suspirar em vão também ao vento,”) e só resta ao sujeito conviver com os efeitos que a ausência e a indiferença dela lhe causam. Ele a acusa por suas dores (“Tormento é que somente a ti se deve.”) e assume uma postura demissionária em relação a si mesmo (“Quem te viu, e se vê de si ausente,”). O narcisismo projeta-se sobre a presença fluida da amada, donde decorre a deslocação da ruptura fenomenológica para o campo da dispersão no plano da ontologia. Daí resulta não só o engrandecimento do estado de fragmentação psicológica que domina o amante como a valorização do conflito entre ele e o que está para além dele. Nos versos que se seguem (“E se pode inda haver maior tormento, Muito mais passa[rá], mais levemente”), o pastor reproduz o sentimento característico das cantigas de amor, em que o orgulho masoquista é proporcional à dimensão do amor.
Em contraste com a antinaturalidade da condição de sua amada (“Só em ti não conheço a Natureza,”), a argumentação alega que mesmo os elementos mais pertinazes (a pedra, o ferro) ou mesmo a serpente, metáfora da maldade, são capazes de ceder. E compreende que o pranto/canto é impotente para exercer qualquer efeito sobre ela.
Manifestando-se ainda a oposição entre a Natureza iluminada pelos raios do sol - (“Tudo contente está, alegre tudo,”), simbolizando o excesso, a plenitude - e a infelicidade do sujeito (“Eu só, só, pensativo, triste e mudo.”) em face da carência, a Natureza ora reflete o estado anímico do sujeito ora se mostra esfuziante, contrastando com as dores do pastor e amplificando sua solidão. A repetição do indefinido (só) contrapõe-se ao advérbio (só), pontuando ao mesmo tempo a situação de exceção do sujeito e o deslocamento de sentido para o adjetivo só (sozinho), que reforça a solidão, a ausência e a dor.
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O amador declara o triunfo da pastora (palma) sobre as duas entidades que compõem a unidade agora cindida: o corpo e a alma, opondo vencido a vencedor. A um só tempo, manifesta-se o dissídio, na figura demissionária do pastor, e reforçam-se a solidão do corpo (só = sozinho) e a fragmentação do sujeito (sem alma). As implicações de fundo neoplatônico são aqui contraditadas. Segundo a teoria neoplatônica sobre a essência do amor, um corpo privado do seu espírito pode ter vida na alma do amante. O sujeito lírico, ao contrário, afirma que “sem alma não vive o corpo só”, o que implica a total impossibilidade de sublimar o sentimento. Reitera a constância de seu amor (“Na afeição, no querer, eu sou um só,”) e reafirma a disposição de servi-la (“Não acharás vontade mais cativa,”), pontuando a diferença entre o querer (o dele) e o não querer (o dela) e a perfeita proporção entre ambos.
Ainda na 35ª estrofe, reitera seu amor/desejo (“Que em quanto eu vivo for há de durar, /E o nó que me tem preso é de tal sorte,/Que não se há de soltar em vida ou morte.”), que está para além da morte (amor camoniano); e declara que a interdição espacial não poderá afetar a constância e intensidade do sentimento. (“Posto que vás por ágoa, ferro ou fogo/ Contigo em toda a parte m’hás de achar”). Segundo Rita Marnoto, na lírica camoniana, “a comunicação entre o amante e a mulher, enquanto ser beatificado, não se processa de um modo suficientemente tranqüilo e seguro, para que ele obtenha através dela, a desejada paz interior”. Nem mesmo após a morte o Poeta logrará a serenidade que o espírito de Laura proporcionava a Petrarca.
O pastor reafirma a disposição de amá-la enquanto viver (“Neste meu coração sempre estarás, /Em quanto a alma estiver com ele unida;)” e mesmo depois da morte (“Meu spirito também possuirás/ Despois que a alma do corpo for partida.”), o que configuraria a tentativa de constituir o amor utópico presente em grande parte da lírica camoniana (“Por mais e mais que faças, não farás/Que não te ame nesta e na outra vida;/Impossível será que eternamente/Estês de mim ausente estando ausente.”). Recorde-se o soneto “Sete anos de pastor Jacob servia”, em que o sujeito declarava: “- Mais servira, se não fora/ pera tão longo amor, tão curta vida”.
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Mas a lucidez acusa a impossibilidade de alcançá-la e igualmente a de esquecê-la (“Cá me acompanhará tua memória,”), a menos que o Lete apague de sua memória “tão longa história,/ tão grave mal, tão duro apartamento”. Aqui, a palavra contino tem o sentido de ininterrupto. O pastor torna a assegurar que mesmo depois da morte sua alma servirá a dela, antecipando a perpetuação do sofrimento.
Na 38ª estrofe, o pastor dá por terminado o canto e entra o narrador/poeta a dizer que o fim do canto dá lugar a novo pranto. Observe-se a ênfase na palavra triste em rima interna nos vss. 297 e 298, que intensifica o estado lutuoso no qual se encontra o sujeito. Mais uma vez, a Natureza se mostra solidária com o sofrimento do pastor (“As circunstantes selvas se abaixaram/De dó das tristes mágoas que escutaram.”).
O abatimento se expressa agora não no canto, que deu por terminado, mas nos gestos, que expressam o que lhe vai na alma, a ponto de não perceber que o dia já findara e que era necessário conduzir o gado ao curral. A sensibilidade às mágoas que o consomem é tal e o seu caráter inelutável tão marcado que ele acaba por vergar perante o peso, numa atitude passiva de consternação. Como esclarece Rita Marnoto (1997, p. 617), “a descrição introspectiva do sofrimento que domina o amante é uma atitude essencialmente especular e de índole passiva, donde o mundo natural se erigir em forma privilegiada de exprimir essa voluptas dolendi [voluptuosidade da dor], na medida em que ele se oferece como espelho fiel de um sentimento que se fecha sobre si próprio sem conduzir a ulteriores desenvolvimentos.”
A última estrofe reúne os índices que refletem a alma enlutada: ramo seco; mocho; funesto e triste pranto; negro manto, (des) gosto e cuidado; e novamente a interação entre o amante e a Natureza, da qual se exclui a amada. A tentativa de ultrapassamento ou de denegação da morte, pela via do amor, porém não se completa. Ao idealismo da proposta se interpõe o discurso da razão, pontuando a impossibilidade. A utopia se dissolve na melancolia expressa no canto e nos gestos de profundo abatimento. Ao pastor só resta o sofrimento porque mesmo a morte não daria fim ao seu cuidado.
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Em toda a poesia de ascendência petrarquista o tema das relações entre o canto e o pranto é bastante recorrente. O desconcerto em face da experiência implica a consciência da inanidade do canto e da impossibilidade de conciliar sonho e vigília, aparência e realidade (ao contrário do que se constata na poesia de Petrarca). Para o aretino, o consolo oferecido pela criação poética era o álibi que perpetuava e justificava o canto. Para Camões, o canto é um mero desafogo, incapaz de suplantar todos os seus males. O caráter fluido e inatingível da amada é a base da representação literária da fragmentação da ontologia do sujeito, já que a impossibilidade de acesso ao objeto gera a incansável tentativa de preencher o espaço existente entre o sujeito e o objeto através do canto. Mas Camões tem consciência da vanidade de tal operação, tanto assim que, na lírica camoniana, a relação entre o canto enquanto fonte de prazer ocupa um lugar de menor importância do que a relação entre o canto e o choro até porque o tom disfórico e o incongruente (o sem sentido do mundo) que dominam a poesia camoniana estão em perfeita consonância com o clima sombrio da estética maneirista.
A figura feminina, os lugares, o tempo e as experiências são apresentados de maneira esparsa. Entidades cósmicas como o tempo, os fados, o destino, constituem uma ameaça para a unidade do sujeito. O tempo associa-se aos fados para proporcionar ao amante os momentos de felicidade que depois lhe vai roubar, fazendo com que a memória desses bens dê azo a “males dobrados”.
O universo harmônico inerente à poesia de Petrarca dá lugar na poesia camoniana à noção de irredutibilidade dos termos, deixando a descoberto o conflito. Por outro lado, as dúvidas e incertezas são efeito da instabilidade e da mudança. Recursos como a antítese, a enumeração, o oximoro traduzem literariamente o estado anímico do sujeito e tendem a realçar a inquietude, o conflito e o sentido de fragmentação que o domina. O sujeito cindido oscila entre o amor sensual e o espiritualizado, entre os apelos da materialidade e a vontade de ascese, entre a fragilidade do homem e a coragem heróica, entre a rendição aos caprichos da Fortuna e a determinação afirmativa.
Do ponto de vista do amor, as óticas stilnovista e neoplatônica são aqui contraditadas, na medida em que nem o sujeito conseguirá ascender espiritualmente por intermédio da dama angelicada, que serviria de veículo à ascensão espiritual, nem, de acordo com a concepção neoplatônica, alcançar o bem e a virtude. Assim, a harmonia vislumbrada na obra de Petrarca transforma-se nesta écloga em angústia ditada pelo destino. E ao amante, em total estado de desalento, não resta qualquer esperança.
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REFFERÊNCIAS
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Marina Machado Rodrigues
Doutora em Letras (Literatura Comparada) UFF/2006
Professora adjunta da UERJ
Professora adjunta da UFF
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1Faria e Sousa esclarece que a expressão gado petulante seria um epíteto para cabras.
2Faria e Sousa observa que sempre que o Poeta se sente desalentado situa a ação no crepúsculo: “Adviertase que todas las vezes que el P. entra a algun assunto de sucesso triste, lo supone al anochecer.” (p.266).
3Monte áspero, situado na Frígia menor, Grécia, cujos habitantes se caracterizavam por grande rudeza.
4Hircânia é região da Ásia menor, habitada por animais ferozes
5Progne e Filomela eram as duas filhas de Pândion, rei de Atenas. Havendo uma questão entre este e seu vizinho, o tebano Lábdaco, o rei ateniense solicitou o apoio de Tereu, graças a quem obteve a vitória sobre o tebano. Em sinal de agradecimento, o rei deu a filha Progne em casamento ao herói. Da união, nasceu o filho Ítis. Mas Tereu se apaixonou pela cunhada, Filomela, a quem violou. Para impedir que esta contasse à irmã o acontecido, o cunhado cortou-lhe a língua. A moça, porém, encontrou um meio de revelar toda a verdade à irmã, bordando em uma tapeçaria o fato ocorrido. Progne resolveu punir o marido, vingando-se no filho, a quem matou e preparou como alimento, servido ao marido. Em seguida, fugiram ambas. Quando Tereu soube do crime, saiu com um machado em perseguição às duas irmãs. Alcançou-as em Dáulis, na Fócida. As moças imploraram clemência aos deuses, que, apiedados, transformaram Progne em rouxinol e Filomela em andorinha. Tereu foi transformado em mocho
6Bíblia, Livro de Josué, cap. 10, versículos 11- 14: 12. “Então Josué falou ao Senhor, no dia em que o Senhor entregou os amorreus na mão dos filhos de Israel, e disse na presença de Israel: Sol, detém-se (sic) sobre Gibeão, e tu, lua, sobre o vale de Aijalom. 13. E o sol se deteve, e a lua parou, até que o povo se vingou de seus inimigos. Não está isto escrito no livro de Jasar? O sol, pois, se deteve no meio do céu, e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro. 14. E não houve dia semelhante a esse, nem antes nem depois dele, atendendo o Senhor assim à voz dum homem; pois o Senhor pelejava por Israel.”