Entrevista
O LIVRO COMO ARMA
Entrevista com Abdulai Sila
Érica Cristina Bispo
bispoerica@gmail.com

Abdulai Sila nasceu em Catió, na Guiné-Bissau, em 1º de abril de 1958. Após a proclamação da independência, em 24 de setembro de 1973, participou das brigadas de alfabetização, sob a orientação de Paulo Freire. Formou-se em Engenharia Electrotécnica pela Universidade de Dresden (Alemanha) e dedicou-se aos estudos das Tecnologias de Informação e Comunicação, tornando-se empresário nessa área. Junto com Teresa Montenegro e Fafali Kouduwa fundou a primeira editora privada guineense: a Kusimon Editora. Participou da fundação da revista Tcholona e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa/INEP na Guiné-Bissau.
Começou a escrever motivado por uma professora do Liceu onde estudou. Ao publicar três romances, em quatro anos, deu início a carreira como ficcionista. Sua obra hoje transita por vários gêneros. Começou com os romances Eterna Paixão (1994), A última tragédia (1995) e Mistida (1997). Produziu contos para Contos da cor do tempo (2004), livro comemorativo dos dez anos da editora Kusimon. E, recentemente, enveredou pelo gênero dramático, com a publicação de As orações de Mansata (2007). Tem obras publicadas em Cabo Verde, na França e no Brasil.
Além de ficção, Sila tem textos publicados em revistas de diversos países sobre economia, política, educação e desenvolvimento social.
Um traço curioso do escritor é a pronúncia de seu sobrenome, que é uma oxítona (Silá). A fim de transgredir a língua, o autor optou por ferir a regra e tirar o acento. A transgressão à língua é um dos traços de sua escrita, que mescla a língua portuguesa ao crioulo e às demais línguas nacionais da Guiné-Bissau, ora apresentando vocabulário, ora ignorando o leitor exógeno.
A entrevista foi feita em duas partes. Algumas respostas foram dadas no final de 2009 e outras em setembro de 2010. Na conversa, há a tentativa de esclarecer algumas questões acerca da função da escrita num país como a Guiné-Bissau, onde mais de 40% da população é analfabeta. Além de discutir o primeiro romance guineense, Eterna paixão, publicado apenas na Guiné-Bissau e em Cabo Verde.
- 1 -
Érica Bispo: No lançamento da edição brasileira de A última tragédia, você mencionou seu encontro com Paulo Freire. A educação e a figura do Professor (com letra maiúscula, como em seus livros) são constantes em sua obra. Por que tamanha reverência ao trabalho do magistério e à importância da educação?
Abdulai Sila: Acho que foi em 1976 que tive a ocasião de conhecer Paulo Freire. Eu fazia parte (de fato era o chefe) de uma Brigada de Alfabetização, que tinha por missão ensinar a ler e escrever aos nossos concidadãos mais velhos. Pessoalmente, achava e continuo a achar uma grande injustiça uma criança não ter a oportunidade de ir à escola. Como tinha familiares que foram vítimas dessa injustiça e tinha a consciência de que a construção do país requeria o envolvimento de todos, cada um dando o melhor de si (o que requeria certo nível de instrução), pus muito entusiasmo na alfabetização de adultos. O método de ensino que adotamos foi o que o professor Paulo Freire desenvolveu. Não era só o ler/escrever que estava em causa, mas todo um processo educativo, que desembocava na capacitação do concidadão para a assunção cabal das suas responsabilidades, para o exercício pleno da cidadania. E podes imaginar qual é uma das minhas maiores decepções? Quase trinta anos depois, esse objetivo tão nobre continua sendo uma miragem.
Érica Bispo: Num país em que poucos são os alfabetizados e em que o livro é um objeto de luxo, por que ter uma editora e escrever?
Abdulai Sila: Antes de mais, gostaria de dizer que esta questão é legítima. Ela faz tanto sentido que eu tenho tido que lidar com ela no meu dia a dia. E a resposta situa-se a dois níveis distintos.
- 2 -
A nível pessoal a explicação é esta: tudo o que faço em termos culturais (escrever ficção, contribuir para a existência de uma editora de obras literárias etc) enquadra-se naquele conjunto de coisas que simplesmente gosto de fazer. Faz parte das atividades geradores não de dinheiro ou de qualquer outro beneficio material, mas que proporcionam imenso prazer. Fazendo parte daquilo que efetivamente gosto de fazer, essas atividades são, como acreditava o meu pai, imprescindíveis a essa indescritível sensação de realização. E essa realização pessoal, numa primeira etapa, adquire uma dimensão coletiva e extraordinária quando se tem em conta que, como você disse, poucos são os meus concidadãos que sabem ler ou se podem dar ao luxo de comprar um livro. E sabe por quê? Apesar da triste e anômala situação decorrente do fato de tanto o Governo como o Parlamento contar com elementos com capacidade muito limitada em termos de leitura/escrita, há um consenso a nível do povo em torno do valor e utilidade de se ser alfabetizado. Assim, se continuamos a ter uma taxa inaceitável de analfabetos é porque algo está errado. E esse algo vem de há muito tempo. Devo talvez lembrar que o meu primeiro emprego foi na alfabetização. Sempre achei que uma das maiores injustiças praticadas pelo colonialismo português foi justamente ter deixado tanta gente fora do sistema educativo, reduzindo dessa forma a sua possibilidade de promoção individual e coletiva. Trinta e cinco anos mais tarde constatar que essa injustiça continua sendo praticada é deveras frustrante! Nesse contexto, torna-se dever de cidadão intervir de modo a que essa injustiça seja banida. E o primeiro passo nessa direção é fazer com que esse algo a que me referi anteriormente como estrangulamento seja paulatinamente eliminado. Publicando contos tradicionais, em línguas locais, estaremos a “banalizar” (no sentido positivo) o livro e, por essa via, a ganhar adeptos para a leitura e a promover, naturalmente, a alfabetização. Quebrar esse mito construído ao longo de muito tempo acerca do livro, revelar autores locais, que escrevem sobre temas locais, resgatar essa vasta herança cultural veiculada oralmente e promover a sua mais ampla divulgação através do livro são, na minha opinião, algumas das formas mais eficientes de quebrar esse algo que tem impedido que houvesse um maior interesse e empenho das nossas populações em serem alfabetizadas.- 3 -
Érica Bispo: As palavras “recordar”, “lembrar” e suas cognatas compõem os três romances, sempre que se inicia um flashback. A memória dos acontecimentos factuais influenciou sua escrita?
Abdulai Sila: Sim, e muito! Já falei de alguns antes, isto é, de acontecimentos que afetaram sobremaneira a vida dos da minha e de outras gerações e que a gente não pode ignorar. Num momento em que tudo parece falir, em que esse edifício novo, que prometemos construir com nosso calor e com nossa inteligência parece desmoronar, pode ser útil lembrar que passamos por situações idênticas – ou até piores –, mas que conseguimos sempre ultrapassar. Para alcançarmos os objetivos coletivos que almejamos como nação, temos que proceder a mudanças, sobretudo a nível cultural. Uma mudança cultural baseada não nos valores que hoje prevalecem, mas naqueles que, por vários motivos, tendem a ser banalizados. Então, é preciso lembrar, ir buscar na nossa História os ingredientes, os valores morais, a motivação, de que hoje tanto necessitamos para levar de vencida as complexas tarefas que este momento histórico menos favorável nos coloca.
Érica Bispo: Na entrevista à Fernanda Cavacas, que abre a edição caboverdiana de Mistida (trilogia), você afirma que viveu intensamente a guerra. Você era bem novo durante a guerra. Eu gostaria de saber sobre essas suas lembranças da guerra.
Abdulai Sila: Não é fácil para mim falar da guerra de libertação. As minhas lembranças são horríveis! Perdi o meu melhor amigo de sempre, o meu irmão Idrissa, que numa manhã de fevereiro de 1972 foi gravemente ferido. Tinha na altura oito anos de idade, ficou paraplégico, viveu mais 6 anos. No mesmo dia, uma outra irmã minha, que tinha 10 anos, perdeu uma perna. Ela era a melhor futebolista de Catió… podes imaginar como foi a vida dela depois? O meu pai morreu pouco tempo depois em consequência do choque que teve ao ver metade da família a sangrar. A minha mãe foi quem aguentou mais, mas perdeu a alegria da vida. Tomou conta do meu irmão paraplégico. No dia em que ele morreu, ela passou a ser muito mais reservada. Quase que não falava com ninguém… Bem, tudo isso é o resultado de uma bomba, que caiu em frente de casa. Antes e depois desse dia houve muita coisa que aconteceu.
- 4 -
Vi muita gente morrendo na sequência de ataques e bombardeamentos. Convivi com muita gente que sofreu, no corpo e na alma, os efeitos da guerra. Saí de Catió tinha doze anos para frequentar o Liceu, em Bissau. Mas ia todos os anos, no fim de cada trimestre, a Catió para estar com a minha gente. Tendo começado em 1963, quando tinha 5 anos, a guerra só acabou em abril de 1974, pouco tempo depois de eu completar os 16 anos.Érica Bispo: O romance Eterna paixão é dedicado a seu irmão Idrissa. Como, em sua opinião, o enredo do romance o homenageia?
Abdulai Sila: O enredo em si não tem a ver com Idrissa, que faleceu quando tinha menos de 14 anos de idade. Devo esclarecer que, embora sendo o primeiro livro que consegui publicar, Eterna Paixão não é o primeiro que escrevi; e acontece que cada um dos anteriores já tinha uma dedicatória própria. Dedicar esse livro a Idrissa pode ter sido a forma que me ocorreu na altura de manifestar publicamente essa enorme cumplicidade que existiu ― e sempre vai existir ― com aquele que continua sendo meu melhor amigo. Vendo as coisas de um outro ângulo, acho que há um elemento comum que caracteriza as duas personagens (a real, Idrissa, e a fictícia, Dan), que se pode resumir nisto: uma enorme paixão por uma vida plena de adversidades.
Érica Bispo: Eterna Paixão costuma fisgar os leitores, quanto eles compreendem o contexto guineense, em que a desilusão da não concretização do sonho nacional idealizado e discursado durante os anos de luta armada. O romance traduz um pouco disso, denunciando a corrupção e apontando caminhos possíveis?
- 5 -
Abdulai Sila: Não posso esconder que quando iniciei a construção do enredo (já lá vão duas décadas), já era previsível o marasmo em que se encontra hoje o meu país. Já havia provas reais de que o “espírito da luta” já não existia mais, que os nossos concidadãos, que ontem abnegadamente participaram na concretização daquilo que para mim foi o maior feito deste povo no século passado – acabar com a colonização, aprofundando o processo de construção daquilo que Amílcar Cabral chamou de “Nação africana forjada na luta” –, estavam incompreensivelmente a enveredar por uma via em todos os sentidos oposta àquela que tinha sido anunciada. Estava acontecendo tanta coisa, tão nociva quanto ininteligível, assistia-se ao desmoronar de tantos sonhos “legítimos”, assistia-se a um desfasamento cada dia maior entre o discurso político e a prática diária, que entendi por bem ir buscar alguém de fora, (nesse caso Dan), carregado de uma boa dose daquilo que hoje se pode chamar de utopia, mas que no contexto da época era absolutamente exequível, para encarnar toda a desilusão e frustração que o cidadão comum sentia. Mas mais do que denunciar essa calamidade e ridicularizar os seus principais protagonistas, era necessário passar uma mensagem positiva, de fé e de esperança. É minha convicção que a literatura pode, sem ser doutrinaria nem tão pouco estereotipada, contribuir para a mudança cultural que se impõe, sem a qual continuaremos por muito tempo fazendo tanto mal a nós mesmos.
Érica Bispo: Daniel é uma personagem que se parece com muita gente. É engenheiro, como você; trabalha no Ministério de Agricultura, como sonhava Amílcar Cabral; se torna professor no modelo de Paulo Freire; ensina, entre outras coisas, a aldeia a se tornar autossutentável, como um dos ideais de Cabral, relativos ao fim da fome. O que você pode falar sobre isso?
Abdulai Sila: Tem razão, Dan se parece com muita gente, sobretudo com gente da minha geração; uma geração que viu concretizado um sonho secular, que tem um compromisso com a História; uma geração que tem o orgulho ferido, mas que não abdica de lutar por aquilo em que acredita.
Érica Bispo: A descrição em seus romances é extremamente minuciosa. Elementos como “Land Cruiser”, “cerveja Cicer”, “sofá de couro”, “quadros surrealistas”, “livros de diferentes políticos africanos”, “blusa branca de seda” etc certamente não estão nos romances para “preencher espaço”. Para quem não vive, nem viveu na Guiné-Bissau, é um pouco difícil entender certas alusões. Você pode explicar algumas?
- 6 -
Abdulai Sila: Há certas situações caricatas que foram vividas neste país e que deixaram marcas, em vários aspectos, incluindo no léxico corrente. Por exemplo, na altura em que todos os governantes e dirigentes políticos tinham viaturas da marca Volvo, falou-se de “volvocracia” para se referir a toda essa gente e/ou ao regime estabelecido. São vários os termos e expressões que entraram na linguagem corrente, alguns deles pejorativos, aos quais convém, às vezes, fazer recurso não só para descrever os fatos e o ambiente em que ocorreram, mas também e sobretudo para denunciar certas práticas e opções, ridicularizando-as, revelando quão absurdas eram.
Érica Bispo: Você hoje colabora com o desenvolvimento do país através na sua empresa Sitec, que é uma das maiores firmas do país e especialista em serviços eletrônicos. Sitec é a tradução da sua Eterna paixão?
Abdulai Sila: Talvez. Sabe, uma das maiores lições que aprendi do meu pai é esta: “um ser humano tem que fazer duas coisas na vida para se sentir realizado: o que tem que fazer e o que gosta de fazer”. A Sitec é aquilo que tenho que fazer. Não posso negar que nela também há muita coisa que faço por gosto, mas essencialmente é das tais coisas que tenho que fazer para ganhar o meu sustento. Eu procuro as coisas que gosto de fazer em ações menos visíveis, aparentemente mais banais. E isso está essencialmente na área da Cultura, não tanto da Tecnologia. É evidente que dá um certo prazer provar a si próprio, nas lides diárias e nas realizações a nível técnico e profissional, que, apesar de todo o ambiente desfavorável em que operamos, conseguimos competir em pé de igualdade com qualquer pessoa ou empresa em qualquer parte do mundo numa área tão exigente e complexa; é também verdade que, através daquilo que tenho que fazer na Sitec, posso recorrer a essas mesmas realizações, nessa incessante batalha de “educar pelo exemplo” que aliás bem cedo aprendi com o professor Paulo Freire, para tentar convencer aos meus concidadãos mais jovens que se pode ter uma vida digna e condigna sem ter que se prostituir politicamente.
Érica Bispo: Para termimar, quem são seus autores preferidos? O que você gosta de ler? Algum deles motivou você a escrever? Algum deles é modelo para você?
- 7 -
Abdulai Sila: Embora a minha atividade profissional me obrigue a ler muita literatura técnica, devo confessar que é-me difícil dormir sem ler um livro de ficção; onde quer que eu vá, tenho sempre um livro comigo. Tive autores preferidos em várias fases da minha vida; no início, eram todos africanos: do Chinua Achebe ao Luandino Vieira, do Ngugi Wa Thiongo à Nadine Gordmer. Com o tempo e graças à ajuda de algumas pessoas amigas, fui descobrindo e apreciando no seu devido valor obras e autores de outras paragens. Por exemplo, durante os anos em que estudei em Dresden tive um amigo alemão que possuía uma rica biblioteca pessoal e um interesse especial por literatura afro-americana. Foi através dele que travei conhecimento com grandes escritores como, por exemplo, James Baldwin, Richard Wright e Toni Morrison. Esta última é aquilo que poderia considerar, pelos temas que aborda nos seus romances e pela maneira como escreve, como um dos meus modelos.
Érica Cristina Bispo
Mestra em Letras Vernáculas, área de concentração Literatura Portuguesa/UFRJ, 2005/
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas,
Área de concentração: Literaturas Portuguesa e Africanas/UFRJ
- 8 -